segunda-feira, 1 de abril de 2013

Bullying de ontem e de hoje


Jô Drumond
O que se chama hoje bullying (assédio moral ou sexual) sempre existiu, mas só agora, além de denominado, tem sido combatido e condenado. Trata-se de atitudes agressivas ou indelicadas por meio de chacotas, de piadinhas, de insistências impertinentes, de certas formas de perseguição ou coação que, de alguma maneira, causam constrangimento a outrem.
Minha geração passou por inúmeras situações constrangedoras na vida escolar, profissional e familiar. Cada um se defendia à sua maneira, sem o suporte jurídico dos dias atuais. Em minha época de colegial, em algumas salas de aula havia um vistoso coração vermelho, em cetim, afixado numa das paredes. Logo abaixo do coração postava-se uma corbeille com flores artificiais e alfinetes. Toda semana, no primeiro dia de aula, sob o olhar vigilante de toda a classe, cada aluna que havia comungado na missa de domingo, ao entrar, dirigia-se ao local e espetava uma das flores no coração. Era o código estabelecido para destacar aquelas que se encontravam em estado de graça, com a alma limpa de impurezas. As que porventura não pudessem fazer aquele gesto simbólico sentiam-se constrangidas diante do olhar perquiridor da turma. Algumas colegas, com ares maldosos punham-se a caraminholar quais teriam sido os pecados daquela semana. Hoje, isso poderia ser considerado como assédio moral, pelo fato de expor o aluno a uma situação desconfortável. No entanto, naquela época, era impensável opor-se a tal prática. Se alguém ousasse se contrapor à ordem estabelecida poderia até mesmo ser expulso da escola.
Por falar em coração, ainda jovem, ao procurar pela primeira vez um cardiologista, passei por uma situação extremamente embaraçosa, que talvez fosse, hoje em dia, motivo de queixa junto ao Conselho Regional de Medicina. Marquei consulta com o médico de minha mãe, um senhor de meia idade, com mais de 30 anos de experiência. Ao perceber que eu estava sozinha, o médico ordenou, em tom peremptório, que eu ficasse só de calcinha. Pensei que fosse me indicar a porta do banheiro ou de algum lugar reservado para que eu me despisse, e que me fornecesse um roupão, mas não. Fez questão que fosse ali mesmo, diante de seus olhos. Ao começar a tirar a blusa percebi seu olhar guloso e ansioso, na expectativa do que estava por vir. Sem entender o motivo de ter que me despir para obter um diagnóstico cardíaco, obedeci, muito a contragosto. Não podia duvidar da integridade nem da competência daquele que era considerado o melhor e mais respeitável cardiologista de Belo Horizonte. Ao tirar a blusa e o sutiã, ouvi de sua parte, um elogio indireto. ─ Em sua família todas as moças têm corpo muito bonito! (Minhas irmãs eventualmente acompanhavam minha mãe, durante as consultas.) Fingi não ter ouvido. Seu olhar penetrante era devasso, libidinoso e repugnante.  Ao começar a tirar a calça comprida ouvi a seguinte observação: ─ Olhe! Veja bem que coincidência! Você e minha mulher usam a mesma marca de calcinha: valisère. Tive vontade de sair correndo, de sumir dali para nunca mais voltar, mas continuei fingindo ter ouvidos moucos. Parece-me que ele percebeu a enormidade de meu constrangimento e se ateve à consulta usual, que poderia ter sido feita com a paciente vestida. Talvez sua tara se abstivesse apenas ao streep tease no consultório, possivelmente com tardias ressonâncias em seu desempenho sexual na alcova conjugal. Nunca mais voltei a tal consultório, nem relatei o fato a ninguém, mas guardei sempre uma lembrança de constrangimento e de indignação.
bullying nunca foi benéfico a ninguém, a não ser aos sádicos, aos masoquistas ou aos possuidores de algum desvio de conduta.  É bom que seja combatido e condenado em todas as circunstâncias. Por outro lado, o pânico que se tem, nos dias de hoje, de ser acusado de assédio, acaba inibindo alguns relacionamentos. Um olhar masculino de admiração por uma bela donzela ou um elogio mais afoito pode acabar em aborrecimentos dentro de uma delegacia e, por conseguinte, pode vazar para os jornais, causando constrangimentos ainda maiores. nunca foi benéfico a ninguém, a não ser aos sádicos, aos masoquistas ou aos possuidores de algum desvio de conduta.  É bom que seja combatido e condenado em todas as circunstâncias. Por outro lado, o pânico que se tem, nos dias de hoje, de ser acusado de assédio, acaba inibindo alguns relacionamentos. Um olhar masculino de admiração por uma bela donzela ou um elogio mais afoito pode acabar em aborrecimentos dentro de uma delegacia e, por conseguinte, pode vazar para os jornais, causando constrangimentos ainda maiores.


*Jô Drumond é membro da: 
AEL (Academia Espírito-santense de Letras)
AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras)
AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras)
IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES)

terça-feira, 26 de março de 2013

A GRUTA DO AMOR


                                                                                                                                            *Jô Drumond
                                                                                     O tranquilo e aconchegante lago Le Bourget

Vitória - Rio / Rio - Paris / Paris - Grenoble / Grenoble - Chamberry / Chamberry - Aix-les-Bains / Aix-les-Bains - Le Bourget-du-Lac.  Esse foi o roteiro que percorri para chegar ao cenário que inspirou um dos mais belos poemas do romantismo francês, “Le lac” [O lago], e os mais belos poemas do livro de Lamartine intitulado Méditations (1820), considerado a primeira compilação lírica do romantismo francês. O sucesso imediato e extraordinário de tais poemas celebrizou seu autor da noite para o dia. Le Bourget-du-Lac é um lugarejo tranquilo, com casas de veraneio plantadas às margens do lago Bourget. Hospedei-me num belo sobrado, de propriedade de uma amiga francesa, Christine Blanchard, com vistas para o lago, tendo como pano de fundo o lume das águas e o paredão dos Alpes. Entre as águas e a cadeia de montanhas encaixa-se o balneário Aix-les-bains. Éramos seis. Apenas eu fazia questão de visitar um local desprezado pelos companheiros de viagem: a gruta, na qual o poeta Lamartine e sua musa se refugiaram durante uma borrasca, num idílico passeio de barco. Suponho que meus companheiros de viagem não se interessassem pela gruta pelo fato de desconhecerem a história de amor lamartineana, tramada pelo acaso e rompida pelo destino.
No outono de 1816, o poeta foi a Aix-les-Bains na tentativa de se curar de uma depressão nervosa e conheceu uma bela jovem que se encontrava no mesmo local à procura de ares salutares, na tentativa de domar uma tísica que lhe consumia aos poucos. Habitualmente, Julie Charles passava temporadas de cura na região, enquanto seu marido, um renomado físico, trabalhava em Paris.
Julie e Lamartine se conheceram e se entrelaçaram num amor platônico, denso e profundo, tendo como cenário o espelho translúcido do lago, os alvos flocos de nuvens nele refletidos e as fímbrias sombrias da mata no debrum crepuscular. Como mola propulsora desse idílio, o enigma que pairava sobre Julie e para o qual se sentia impelida: o mistério do outro mundo.
No inverno do ano seguinte, os enamorados se reencontraram em Paris e se comprometeram à retomar os paradisíacos ares de Le Bourget na alta estação. Todavia quis o destino que Lamartine passasse a temporada solitariamente, suspirando pela amada. O agravamento do estado de saúde reteve Julie em Paris no último outono de sua vida. A notícia da perda inexorável do ser amado provocou ao mesmo tempo em Lamartine uma profunda dor e um desejo ardente de mudar o imutável, de ponderar o imponderável e de alcançar o infinito. O lamento pungente de um reencontro impossível, a reflexão plangente sobre a fugacidade da vida e o apelo veemente para o que tempo suspendesse seu voo desencadearam no poeta uma verve lírica de rara beleza, que vem encantando muitas gerações desde o início do século XIX.
Voltando ao nosso veraneio do século XXI em Le Bourget-du-Lac, ninguém se animava a me acompanhar na caminhada, não muito longa, até o refúgio que serviu de abrigo aos dois enamorados, em noite de tempestade. Eu ansiava observar o lago sob o mesmo prisma dos enamorados, respirar os mesmos ares, sentir o cheiro da gruta, pisar as pedras por eles pisadas enfim, encurtar a distância temporal que nos separava.
Depois de muita insistência, convenci meu marido e meu irmão a me acompanharem. Não havia indicação alguma no caminho. Chegamos ao fim da linha, numa vertente junto ao lago, onde alguns pescadores nos indicaram a direção. Teríamos que subir novamente a íngreme ladeira até a primeira curva, onde deveria haver uma trilha, tomada pelo matagal. Não foi difícil encontrar a entrada. Embrenhamo-nos mato adentro por uma trilha praticamente inexistente, cheia de obstáculos, com riscos de escorregões e quedas em ribanceiras. Por momentos, pensei em desistir. A falta de acesso indiciava o total abandono da gruta. A duras penas, conseguimos nos aproximar. Não havia sinal de que algum vivente a tivesse visitado nos últimos tempos. Saí de lá desolada pelo desleixo daquele local, que poderia ser um belo ponto turístico, com matizes literários.
*Jô Drumond é  membro da: 
AEL (Academia Espírito-santense de Letras).
AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras)

AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras)

IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).

sexta-feira, 15 de março de 2013

SALVO PELA RETÓRICA

(Conto baseado em fato real)                                                                                                                        *Jô Drumond
Um mendigo perambulava pelas ruas de uma cidade interiorana do Estado do Espírito Santo, sem teto, sem pão e sem destino. Vivia da caridade alheia, cada vez mais rara nos tempos atuais. Abordado por ele, Pedro, um professor de literatura, com tempo disponível para um dedo de prosa, estranhou o eloquente linguajar do mendigo, com vocabulário requintado e português castiço. Perguntou-lhe o que fazia, antes da mendicância. O maltrapilho não se lembrava. Perguntou-lhe também sobre sua família. Ele tampouco se lembrava. Todavia algumas leituras feitas não haviam caído no esquecimento. Citava personagens e relatava trechos de grandes clássicos da Literatura universal.
Se fosse um pedinte comum, o professor poderia achar que ele estivesse omitindo informações pessoais por motivos torpes. Talvez fosse um criminoso foragido tentando se esconder no anonimato. Mas aquele homem esguio, de porte aristocrático e linguagem escorreita, embora roto e faminto, não poderia ser um foragido, muito menos um bandido. Devia ter tido berço e educação formal. Movido pela curiosidade, Pedro tentou obter dados que pudessem identificá-lo, mas o mendicante não recordava nem mesmo o próprio nome. Ele poderia estar mentindo, mas poderia também estar com amnésia, talvez com o mal de Alzheimer. O professor voltou para casa encabulado. No dia seguinte, antes de ir para o trabalho, procurou pelo pedinte, na praça da matriz, local ideal para a abordagem dos devotos, que porventura lhe davam alguns trocados.
Conversa vai, conversa vem, Pedro soube a razão do apelido escolhido pelo próprio mendigo.
─ Como não me lembro de meu nome, escolhi Ulisses porque estou sempre em busca de minha Ítaca. Quem sabe há alguma Penélope à minha espera?
─ Você já leu a Odisséia? ─ perguntou-lhe o professor.
─Já li e reli Ilíada e Odisseia de Virgílio, Eneida, de Homero, a Divina Comédia... aliás, minha vida se enquadra no primeiro volume da trilogia, intitulado por Dante de, O inferno. Só não fiz minha travessia para o outro mundo porque ainda não encontrei a barca de Caronte.
─ Você diz não se lembrar de nada, mas se lembra de autores, títulos e personagens!
─ Às vezes, leituras antigas emergem em minha memória, por algum tempo, e submergem no reino de Hades.
─ Se você quiser, posso lhe emprestar alguns livros.
─ Você faria isso? Ficar-lhe-ia imensamente grato. Tenho todo o tempo do mundo para “viajar” na literatura.
Desde então, Pedro não conseguia pensar em outra coisa. Como deixar aquele ancião exposto às intempéries, alimentando-se de restos e migalhas? Como ajudá-lo? Seu salário de professor mal supria às despesas mensais da família. No colégio onde trabalhava, andou comentando o fato com alguns alunos. Um deles, internauta assíduo das redes sociais, se prontificou a desvendar tal mistério. Pediu ao Professor que o levasse até o mendigo. Discretamente, simulando o uso do i-phone para telefonar, tirou diversas fotos, às escondidas, postou-as na internet acompanhadas, de um pequeno texto explicativo. O retorno foi imediato. Uma família do interior do Estado de São Paulo reconheceu Bartolomeu, desaparecido há alguns meses. Sua mente tinha realmente sido tomada pelo mal de Alzheimer. Carregava na memória muita sombra e poucas luzes. Às vezes reconhecia parentes próximos, ao sabor dos lampejos fugidios de uma mente combalida.
Sua família se encarregou prontamente do regate. Todos queriam saber como ele havia se deslocado para tão distantes paragens. Ele não reconheceu ninguém, tampouco matou a curiosidade dos que vieram ao seu encalço. Os familiares, de sobreaviso, temendo a recusa do retorno ao lar, viajaram munidos de fotos recentes, de álbuns antigos e de documentos comprobatórios de identidade. Meio desconfiado, sem se dar o direito à contestação, lá se foi Ulisses, com um pé atrás, acompanhado por uma deplorável Penélope, sem charme algum, mas com alguns tênues traços de antiga belezura. Acompanharam-no também dois rapazes que se diziam seus filhos, mas que ele acabara de conhecer.
Deixou-se levar, silenciosamente, sem alegria nem tristeza, porém apreensivo com o que encontraria pela frente.
─ Como será minha verdadeira Ítaca? – perguntava a seus botões -. A considerar pela decadência de Penélope, o “lar, doce lar” deve estar bem aquém de meus anseios!  Aedos de Ítaca, acalentai-me!

*Jô Drumond é  membro da: 
AEL (Academia Espírito-santense de Letras).
AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras)
AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras)
IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).