quinta-feira, 14 de maio de 2020

CASAL CENTENÁRIO



Desde tenra idade, sempre tive um carinho muito especial por idosos. Órfão aos dois anos, fui criado por meus avós e acarinhado por seus amigos, todos de idade avançada. Eu sempre dizia que, quando crescesse, gostaria de trabalhar com algo que me permitisse contato com idosos. Depois de adulto, decidi fazer assistência social com especialidade em apoio a anciãos. Fazia atendimento em asilos e em residências particulares, na capital mineira. Foi um trabalho gratificante e prazeroso. Após a aposentadoria por tempo de serviço, retornei à minha terra natal, no interior de Minas, e continuei na mesma linha de assistência a idosos. Enquanto puder, continuarei meu voluntariado vitalício. Há muito mais idosos solitários do que se imagina, incluindo aqueles que moram com seus familiares. Filhos sempre às voltas com a criação dos rebentos, trabalho e estudos, não dispõem de tempo para dar atenção aos velhos. Muitos deles têm certa resistência a asilos comunitários. Habituados a seu cantinho e a seus objetos de estimação, gostariam de ali permanecer, com toda razão, até os últimos suspiros.

Semanalmente, visito dezenas de idosos. Meu voluntariado é salutar para ambas as partes. Sinto-me útil ao ajudar o próximo, como se fosse missão de vida. Imprevistos acontecem. Às vezes encontro casas fechadas porque o morador já foi levado pela indesejada das gentes.

Um dia não fui atendido, sem quê nem por quê. Sondei a vizinhança. Ninguém tinha notícia do idoso solitário. Entrei em contato com alguém da família. Nada de novo. Fiz contato com a autoridade competente para autorizar o arrombamento da residência e encontrei o corpo nauseabundo em vias de putrefação.

Certa vez, não fui atendido, mas tudo indicava que havia alguém em casa. As plantas estavam viçosas, flores na janela, roupas no varal... Como sempre, a primeira providência foi contatar os vizinhos. Tentativa infrutífera. Além de acionar a campainha, bati à porta e chamei a cliente pelo nome. Percebi que o portão lateral, que dava acesso ao quintal, estava apenas encostado. Tentei visualizar algo pelas vidraças das janelas. Nada vi, mas ouvi gemidos e uma voz rouca, quase inaudível: ─ Ajude-me! Socorro! Não chamei ninguém, arrombei a porta, imediatamente. Encontrei Dona Cremilda no chão, com fraturas em ambas as pernas. Ali estava havia dois dias, sem se alimentar, longe do telefone e sem condições de se locomover. Tomei as devidas providências e contatei seus familiares.

Bem, deixemos de lado os casos tristes. Gostaria de registrar uma história de companheirismo e solidariedade de um casal de idosos, que lutou contra o tempo e ultrapassou o centenário, por uma nobre causa, até cair de maduro. Seu Jacintho e Dona Isaura viveram uma existência sem grandes contratempos. Viram nascer, crescer e partir filhos, netos, bisnetos e já contavam com uma chusma de trinetos cujos nomes nem sabiam. Ficaram a sós, como se diz, um servindo de bengala ao outro. Ir à casa deles era-me motivo de contentamento. Recebiam-me com café coado na hora e pãozinho de queijo quente, um dos meus quitutes preferidos. Conversava com ambos, à mesa e, depois, conversava com cada um, separadamente, para uma atenção especial. Os dois já apresentavam indícios de breve sobrevida. Ela ia remediando um câncer que aos poucos lhe corroía as entranhas. Seu “Jacintim”, coração de “passarim”, como se pronuncia na região, tinha insuficiência cardíaca a cada dia mais acentuada. Às vezes eu tinha a impressão de que ele ficava ofegante apenas ao falar, como se fosse por esforço físico.Ele se dizia sempre preocupado com sua Isaura. Não podia morrer e deixá-la sozinha naquela casa enorme. Seria perigoso.

─ Há muitos malfeitores hoje em dia ─ dizia ele, como se tivesse condições de enfrentar bandidos. ─ Ela pode cair, sofrer alguma fratura, sem ninguém para socorrê-la. Além do mais, anda muito esquecida. Não se lembra de tomar os remédios certos nas horas certas. A pobre coitada carece de mim.

Ele estava realmente convencido de que não podia morrer antes dela, para não deixá-la ao desamparo. Por sua vez, Isaura tinha o mesmo tipo de angústia. Não se dava o direito de morrer, porque ninguém saberia cuidar tão bem do maridinho quanto ela. Conhecia seus gostos, manias e ranzinzices. Preparava seus quitutes preferidos, cuidava de tudo para que a vida lhe fosse mais agradável e ditosa. Não podia sequer imaginá-lo num asilo, convivendo com todo tipo de gente e tendo que suportar regulamentos, contra sua vontade. Não poderia jamais deixá-lo à mercê disso. O medo de abandoná-lo ao deus-dará dava-lhe forças para sobreviver, apesar da força da gravidade, que a atraía cada vez mais para o chão, ou melhor, para alguns palmos abaixo dele.

A cada virada de ano, ao visitá-los, eu pensava que seria a última vez que lhes transmitia votos de um Feliz Ano Novo. Qual nada! Entrava ano, saía ano e eles estavam lá firmes e fortes, sempre sorridentes ao me receber. No entanto as leis da mãe natureza são mais fortes que a força de vontade. Algum dia, quer queiramos ou não, teremos que trilhar, mesmo a contragosto, o caminho sem volta, rumo à grande incógnita.

Certo dia, Isaura levou uma queda e fraturou o fêmur, ou vice-versa. A fratura pode ter precedido a queda. Isso acontece, depois de certa idade. Teve que ser levada a um pronto atendimento, em época de pandemia. Como era de se esperar, no hospital, foi infectada pelo coronavírus, e sucumbiu à covid 19, como tantos milhares no mundo todo. Passou a ser apenas um ponto a mais nas estatísticas de baixas, causadas pelo flagelo que assola a humanidade. Ao tomar ciência de seu passamento, Seu  Jacintho. teve um mal-estar instantâneo. Seu coração parou, em solidariedade ao da companheira.

Família reunida, velório duplo, redobrados prantos e duas covas, lado a lado, como sempre estiveram em vida. Seja lá onde for, imagino que um continue velando pelo outro ad aeternum.
Jô Drumond

quarta-feira, 29 de abril de 2020

FIDELIDADE CANINA


Um Senhor, já bem inclinado devido ao peso da idade, andava sempre acompanhado por um vira-latas de pequeno porte. Na verdade, o vira-latas não apenas o acompanhava. Passava maior parte do tempo sobre o cangote do velho corcunda. Habituado aos frequentes cochilos da idade, assentava-se em sua poltrona preferida, e dormitava quase o dia todo, com a cabeça pendida para o chão. Sobre seus ombros no cocuruto do pescoço, aninhava-se o cãozinho sonolento. Era uma cena habitual aos familiares, mas assaz interessante para os que por ali passavam. Quando o velho acordava, o cão apenas mudava de endereço: do cangote para o colo, do colo para o braço. Assim viveram em perfeita harmonia durante muitos anos, até que a fria mão da morte veio buscar o ancião.

O cachorro, sem nada entender, esteve presente durante todo o velório, sem direito a pular para dentro do caixão. Acompanhou o séquito até a porta do cemitério, onde foi impedido de entrar. Fecharam-lhe o gradil bem na ponta do focinho. Ali ficou postado, na esperança de uma brecha para entrar. Após o enterro, todos partiram, exceto o coveiro que o escorraçou mais uma vez antes de retomar seus afazeres. Do lado de fora, o cachorro gania sem cessar. O coveiro, incomodado com a persistência do cão, abriu-lhe o portão, para verificar o que ele queria. O animal entrou como um corisco e, sem nenhuma informação itinerária, foi diretamente à sepultura de seu amo, como se já soubesse de antemão o local onde fora enterrado. Farejou a terra remexida, alojou-se sobre o monturo da sepultura e ali permaneceu dias e noites sem se deslocar, a não ser para as necessidades básicas. Os coveiros, sensibilizados com tamanha fidelidade, começaram a trazer-lhe alimentos. Por ali foi ficando, ficando… tornou-se guardião daquela lúgubre morada. Viveu ainda longos anos sem arredar pé da sepultura de seu amo, até que a natureza providenciou-lhe o encontro dos dois, no além.

O coveiro não sabia o que fazer com o corpo do animal. Não tinha coragem de encaminhar para o lixão os despojos do ser mais fiel e amoroso que havia conhecido.

Não precisou de muita imaginação para resolver a questão. Decidiu dar-lhe guarita sob alguns palmos de terra fofa, junto daquele que velara por toda a vida. Lá ficaram ambos, amo e amado, unidos no silêncio da morte e na imensidão da eternidade.

Dizem que, às vezes, podem ser vistos a passear pelas nuvens, em meio a tufos de algodão. Com boa dose de imaginação, percebem-se entre cúmulos, os cabelos brancos do velhinho, e, logo abaixo, seu cãozinho de estimação, enroscado no “cangote da cacunda”.

Jô Drumond

quinta-feira, 2 de abril de 2020

O OUTONO EM QUE TUDO PAROU


Desde a Segunda Guerra Mundial, existe o temor de uma terceira grande beligerância, bem mais devastadora, considerando-se o avanço tecnológico dos últimos tempos.

Filmes, seriados e livros repassam às novas gerações cenas reais e ficcionais dos horrores da guerra e do holocausto. Percebe-se que a insensatez do belicismo é capaz de colocar a humanidade em risco por motivos nem sempre plausíveis.

Nunca se pensou que a Terceira Grande Guerra fosse deflagrada por uma pandemia provocada por um inimigo invisível e antagônico; fragilíssimo (passível de ser destruído com água e sabão) e poderosíssimo (capaz de dizimar grande parte da população mundial em tempo recorde). Veem-se as mais diversas nações unidas contra um adversário comum: o coronavírus. Sua rapidez de disseminação em todos os continentes é espantosa. A Covid 19 é inofensiva às crianças e tem certa complacência com a juventude, embora seja impiedosa com os idosos. Por ironia, esse vírus outonal dizima sobretudo aqueles que se encontram no outono da vida. Ele ronda a “morte saison”, epíteto que se dá, em francês, à estação contígua ao outono, em que não há frutificação, no polo Norte.

Sabe-se que o diagnóstico desse mal se confunde inicialmente com o de uma gripe comum, mas, em
poucos dias, o vírus pode provocar alterações pulmonares, obstruir as vias respiratórias e matar por asfixia, um dos mais temíveis tipos de morte. O auxílio do pulmão artificial nem sempre é suficiente.

O mundo está quase todo parado. No Brasil, ruas e avenidas, fervilhantes no dia a dia, encontram-se completamente desertas; praias ensolaradas sem banhista algum; bares, comércio, indústria, estabelecimentos de ensino... de portas cerradas. As Forças Armadas foram acionadas para ajudar no que se fizer necessário. Apenas setores essenciais da engrenagem social continuam funcionando, como abastecimento de víveres e de combustíveis, atendimento médico-hospitalar e farmacológico, assim como uma parcela dos transportes.

Plagiando o título do filme datado de 1951, “O dia em que a terra parou”, pode-se dizer que 2020 está sendo o ano em que a terra parou. As futuras gerações, com o devido distanciamento temporal, tomarão conhecimento do que se passa hoje em dia, per omnia saecula saeculorum, por meio de registros documentais e/ou ficcionais.

Elas verão o rompimento das fronteiras geográficas e a diluição das fronteiras sociais; verão pipocar problemas de relacionamento familiar, no confinamento domiciliar obrigatório; verão a tensão permanente no ar. Todos são vulneráveis. A qualquer momento, aos primeiros sintomas de simples gripe, pode-se ser isolado dos familiares, em um cômodo da própria morada e posteriormente em hospitais, em caso de agravamento. Também verão a agonia e o pavor da morte solitária por asfixia, em isolamentos, sem mão amiga, sem palavra de conforto, sem ombro de apoio; verão a desolação dos que restam, pela partida abrupta de entes queridos, sem gesto de adeus; verão o luto fechado pelos que se foram e o temor do luto futuro pelos que se irmanarão a eles, rumo ao imponderável; verão, sobretudo, a efemeridade da chama da vida e a espera agônica do temeroso porvir.

Com o agravamento da crise, as aglomerações e a circulação urbana são desaconselháveis. Em alguns países e/ou cidades, como em Paris, devido à propagação alarmante do vírus, é decretada a proibição de sair de casa, salvo em casos excepcionais. Os infratores se veem sujeitos a onerosas multas. À primeira vista, parece exagero, mas essa medida cautelar tem um motivo matemático muito simples. Com a multiplicação diária dos contaminados, em um futuro próximo, não haverá hospitais suficientes para milhares de enfermos, nem cemitérios para os mortos. Hospitais de campanha estão sendo construídos da noite para o dia, em campos de futebol e em outros espaços urbanos disponíveis.

Muitos dos incansáveis profissionais da saúde, expostos à denominada Covid 19, apesar de todas as medidas cautelares de proteção, estão morrendo, na luta inglória de ajudar os desventurados.

A população, confinada em seus lares, é bombardeada por informações, em tempo real, pelos meios de comunicação. Pelas redes sociais, recebem também toda sorte de fake News amedrontadoras, criadas certamente por mentes sádicas, com o intuito de causar o pânico e/ou o descrédito dos dados oficiais.

Observa-se que a desventura, em larga escala, tem deflagrado muita solidariedade entre países, todos unidos contra um inimigo comum; os menos afetados ajudam os que se encontram em estado de calamidade pública. Gesto humanitário bonito de se ver.

O que estamos vivenciando no momento é algo totalmente inusitado; poder-se-ia dizer: inimaginável ou ficcional. Todos nós somos atores involuntários dessa tragédia humana, com desfecho ignorado.

Jô Drumond / 31 de Março de 2020