terça-feira, 31 de janeiro de 2017

BRASINHA, O EMBAIXADOR CULTURAL DO SERTÃO

*Jô  Drumond
  
José Oswaldo dos Santos, vulgo Brasinha, conhecido também como Embaixador Cultural do Sertão, é membro da Academia Cordisburguense de Letras e grande conhecedor da obra de Guimarães Rosa. O apelido Brasinha se deve a estripulias de infância. Estando sempre irrequieto na carteira escolar, os colegas diziam que havia uma brasinha sobre seu assento.

Trata-se de um senhor de meia-idade, falante, sorridente, comunicativo, com belíssimos olhos azuis, cujo brilho se torna mais intenso se o assunto for a obra de Guimarães Rosa. É parente do escritor, pelo lado da família Rosa. Dedica-se à literatura, mas garante seu “ganha pão” com o comércio.
É proprietário de dois estabelecimentos comerciais, sendo um deles singular, talvez único no gênero, chamado Ave Palavra. Ali há “de um tudo”, mas não se vende quase nada. Sem pretensão comercial, a loja Ave Palavra, título de uma obra póstuma de GR, é a menina dos olhos do proprietário. Sempre em seu estabelecimento predileto, Brasinha recebe todos os aficionados da obra Roseana, com largo sorriso e muita simpatia. 
Tal loja é um verdadeiro bric-à-brac, como dizem os franceses, ou seja, um amontoado das mais variadas coisas, sejam elas antigas, novas ou usadas. Nas prateleiras, há diversas coleções de objetos antigos. É impossível abarcar tudo com o olhar. O cliente se surpreende a cada momento. Para um forasteiro desavisado, aquilo não passa de quinquilharias, mas para Brasinha são objetos muito importantes, de grande valor afetivo. Cada um tem sua história. Apesar de não estarem à venda, há alguns souvenirs à disposição dos turistas, como camisetas e bordados típicos da região.
Entrei casualmente em sua loja, com algumas colegas, e acabamos ficando por lá uma tarde toda a ouvir os “causos” de Brasinha. Ele é uma pessoa incrivelmente ligada não apenas à literatura Roseana, mas à história de Cordisburgo.

Numa parede lateral interna, há um grande banner colorido, de cerca de 3 metros de comprimento por um metro de altura, contendo a foto de uma vereda, ou seja, de um lugar embrejado, pantanoso, cheio de palmeiras buritis. No fundo da loja, vê-se uma porta, com uma cortina bizarra, de plástico branco e grosso, bem resistente, com dizeres enormes “SÃO JOSÉ, LEVAI NOSSOS PEDIDOS AO PAI”. Pensei que o proprietário fosse muito religioso. Qual nada! Brasinha contou-me a história da pretensa cortina.

Segundo ele, certo dia, um vaqueiro saiu à procura de uma vaca desgarrada e avistou, no alto de uma serra, um vulto branco. Aproximou-se pensando que se tratava da vaca e encontrou, caída sobre a relva e presa a um monte de balões, a faixa dirigida a São José. O autor de tal façanha decidira enviar uma mensagem visual diretamente aos céus. Pode-se inferir que, no seu entender, o céu apregoado pela religião cristã, se encontra realmente sobre nossas cabeças, e que, São José, mesmo sem nunca ter aprendido a língua portuguesa, consiga ler sua mensagem. Causos como esse, só mesmo na terra de Rosa.

Na parede lateral de Ave Palavra, que dá para a esquina, lêem-se duas frases roseanas:

“Cordisburgo é o lugar mais formoso devido ao ar e ao céu, e pelo arranjo que Deus caprichou em seus morros e suas vargens. Por isso mesmo, lá, de primeiro, se chamou visa alegre”.

“...quando escrevo sempre me sinto transportado para este mundo. Cordisburgo”

No alto da fachada lê-se, em letras garrafais: AQUI JÁ É O SERTÃO. Logo abaixo, vê-se o nome da loja em grandes letras: AVE PALAVRA. As duas portas de entrada são ladeadas por uma série de transcrições de neologismos roseanos, a saber;


Seguem abaixo, a quem interessar possa, alguns itens dos quais me lembro, vistos nas prateleiras de Brasinha, em 2010:

Comprei alguns souvenirs contendo citações Roseanas, entre eles uma plaquinha de madeira, que diz: “ser mineiro é mudar por fora e ficar o mesmo por dentro”; um pequeno painel para dependurar, no qual há a figura de um ursinho depressivo, tapando a carinha com as patinhas e a frase de Rosa: “Inútil fugir, inútil resistir, inútil tudo”. Comprei também camisetas com motivos da obra Grande sertão: veredas e um caminho de mesa bordado, no qual se lê: “um bom amigo é melhor do que uma boa carabina”.

Além de Brasinha, tive o privilégio de conhecer outras pessoas singulares, que certamente fariam parte do grande elenco de personagens do autor de Grande sertão: veredas, se este ainda estivesse entre nós.


Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

GRUTA DE MAQUINÉ E MUSEU GUIMARÃES ROSA

*Jô Drumond

GRUTA DE MAQUINÉ
 No início do século passado, no casarão em estilo colonial, onde funciona hoje o Museu Guimarães Rosa, em Cordisburgo, Dona Chiquitinha deu à luz um menino que hoje ilumina aquela cidade. João Guimarães Rosa (1906/1967), além de ter sido um dos melhores escritores brasileiros, tornou-se um mito em seu torrão natal. Há quase 30 anos, comemora-se, no mês de julho, a Semana Roseana, evento literário que agrega pessoas do Brasil e do exterior, todas elas aficionadas à obra do escritor. Quase tudo, naquela cidade, gira em torno de sua obra. Seus conterrâneos fazem questão de cultivar o encantamento pelo trabalho literário do grande mestre. Durante a Semana Roseana, os forasteiros são recebidos com grande alegria e entusiasmo. O lema de muitos cordisburguenses é: “se é amigo de Rosa, é nosso amigo”.
GRUTA DE MAQUINÉ

GRUTA DE MAQUINÉ
A três quilômetros da cidade, encontra-se a Gruta de Maquiné, berço da paleontologia brasileira. Turistas dos quatro cantos do mundo podem fazer, de uma só vez, duas belas viagens: uma subterrânea, em Maquiné, e outra pela Literatura, no museu de Cordisbugo. Ao visitar a gruta, o turista depara, a todo instante, com estalactites, estalagmites e esculturas naturais, algumas criadas por sua própria imaginação. Galerias e sete amplos salões se dispõem ao encantamento dos visitantes, assim como um rio, que escolheu, como leito, as profundezas da terra.

No museu Guimarães Rosa, o visitante tem o privilégio de percorrer o espaço onde o escritor nasceu e viveu. Pode também dar vazão à imaginação, em companhia dos tradicionais Miguilins, e enveredar pelas tortuosas e labirínticas trilhas literárias da obra roseana. Miguilins são crianças que, desde pequeninas, se preparam para a leitura dramática dos contos de Guimarães Rosa. A oralidade na obra desse escritor é algo excepcional. Qualquer excerto escolhido de qualquer obra se presta à leitura dramática. Ele escrevia como se estivesse contando um caso, oralmente. Tanto é que cada texto,  antes de ser publicado,  era lido diversas vezes, em voz alta, para que a sonoridade e o ritmo fossem testados.

Armazem

Tulha

No século passado, o casarão se prestava simultaneamente como residência e ponto comercial. A ampla fachada conta ainda hoje com 4 portas e 4 janelas, duas delas laterais (veja a foto). Ali funcionava o ganha-pão do Senhor Flordualdo Rosa (Seu Fulô): uma venda de secos e molhados. Desde tenra idade, seu filho Joãozito gostava de passar grande parte do dia no armazém, sempre atento aos “causos” dos fregueses. Dizem que todo mineiro é fabulista por natureza. Justamente esse gosto pela fabulação preservou a literatura oral da região, de boca em boca, junto ao balcão de Seu Fulô. As estórias ali contadas e recontadas se transformaram, mais tarde, em matéria-prima para os contos roseanos. Quando o renomado escritor e diplomata morava em terras distantes, até mesmo estrangeiras, escrevia a seu pai, solicitando novas estórias dos fregueses para serem fantasiadas a seu bel-prazer. 

No entanto pode-se assegurar que o que há de mais importante em sua obra não é cada “causo” em si, mas a maneira como é narrado. Trata-se de um trabalho meticuloso que enobrece e enriquece a língua portuguesa; um entrelace paradigmático e sintagmático inigualável. É por isso que alguns críticos dizem, acertadamente, que sua principal personagem é a própria linguagem.

Casa do Vaqueiro

Casarão Museu GR
O armazém está preservado tal qual nos velhos tempos: os mesmos móveis, as mesmas tulhas, os mesmos bancos, as mesmas vitrines... não se vendem mais secos e molhados, mas souvenirs para turistas e diversas marcas de cachaça, oriundas dos alambiques da região. Além de manter o mesmo aspecto de outras décadas, o casarão continua mantendo o encantamento em torno da obra roseana. Nos bancos convidativos a um dedinho de prosa brotaram boas estórias que ecoam nas trilhas literárias do grande mestre.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. 

de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES) 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

TERTÚLIA OURO-PRETANA

 Jô Drumond
  
Em Ouro Preto há um grupo de intelectuais que se reúne mensalmente para discutir assuntos do momento, assim como para fazer elucubrações literárias, boa música, poesia e gastronomia. A seleta confraria, além do prazer da prosa, tem direito ao repasto “dos deuses”, servido ao final de cada encontro. Enquanto os amantes da culinária se esmeram, na cozinha, os demais degustam bons vinhos na sala de estar. A discussão se torna cada vez mais acalorada, segundo o aumento do teor etílico no sangue.

Ouro Preto é uma cidade surpreendente. A cada visita descobrem-se novos ângulos, novas miradas estéticas, novos amigos, novas inspirações, e, por conseguinte, novos “causos”. Na última visita a essa cidade que sempre me encantou, meu marido e eu tivemos o privilégio de ser convidados, excepcionalmente, por amigos de longa data, a participar de tal tertúlia. A anfitriã, como muitos artistas e intelectuais ali residentes, um dia foi conhecer a cidade, apaixonou-se pelos ares ouro-pretanos e por ali foi ficando até se radicar definitivamente, sem nenhuma intenção de voltar para sua terra natal.

Do alto de uma vertente, pelas janelas do espaçoso casario onde fomos recebidos, tínhamos ampla visão do barroquismo tortuoso e assimétrico do perímetro urbano, com suas ruelas e becos centenários, repletos de fantasmagorias. A visão panorâmica abarcava o bruxuleio da cerração nos campanários iluminados das diversas igrejas.

Numa ocasião como essa, na qual todos gostam de se manifestar e de expressar suas opiniões, acontece comigo o inverso. Atenho-me a observar os participantes e as réplicas de cada um, como se estivesse num teatro. Fico atenta a todos os detalhes: entonação e timbre de voz, ênfase das réplicas, gesticulação, posição corporal, expressões fisionômicas, conhecimento de causa... Enfim, observar, para mim, é mais divertido que participar.

Em um dado momento, naquela “soirée”, viajei no tempo. Senti-me como se estivesse num encontro dos Inconfidentes, no século XVIII, sem sedição, sem risco da famigerada derrama, sem ideal libertário, mas numa acalorada discussão a respeito da conturbada vida política e econômica do país. O perfil do grupo se aproximava sobremaneira do perfil dos inconfidentes: cidadãos instruídos, intelectualizados e bem informados; maioria diplomada em outras plagas, com alto poder aquisitivo e posição de destaque na sociedade.  Nas reuniões atuais, discutem-se desmandos e corrupção no poder, altos juros bancários, impostos, desemprego, aumento da pobreza... No século XVIII, discutiam-se as mesmas questões, evidentemente com a devida atualização política, econômica e social: desmandos e corrupção dos governantes, jugo da coroa portuguesa, impostos escorchantes, miséria do povo... Porém faltava-me um Tiradentes, ou seja, um jovem exaltado, entusiasta, falastrão e sem grandes posses, para quebrar a hegemonia do grupo.

Subitamente, não sei por que cargas-d’água, alguém perguntou se Sabará ficava dentro do Quadrilátero  Ferrífero. Um dos presentes, que se dizia historiador, aproveitou a ocasião para nos passar informações gerais, em tom professoral. Segundo ele, o Quadrilátero ocupa uma área de 7.000 km2, próxima a Belo Horizonte. Além de Sabará, citou Rio Piracicaba, Congonhas, Casa Branca, Itaúna, Itabira, Nova Lima, Santa Bárbara, Mariana, Ouro Preto, entre outras localidades. Disse também que essa região coloca o Brasil, ainda nos dias de hoje, em posição de destaque, no cenário mundial, na produção de ouro e ferro.

A partir daí, a conversa tomou o rumo das minas e dos veios de ouro. Não é por acaso que o Estado tem esse nome. Durante o ciclo áureo da extração,  entre 1700 e 1820, o Brasil foi o maior produtor mundial do “vil metal”. Metade das reservas de ouro do Brasil ainda se encontra em Minas Gerais.
 Outro senhor, que se dizia geólogo, aproveitou a ocasião para “vender seu peixe”. Começou a explanar sobre os três grandes conjuntos de rochas que caracterizam o Quadrilátero. Depois, passou a citar formações rochosas. Esbanjou terminologia técnica, que a ninguém interessava. Sua fala era por demais árida para aquele tipo de encontro. Alguns dos presentes esboçavam bocejos. Outros se mostravam entediados. Os mais inquietos se levantavam, davam uma volta pelo salão e aproximavam-se das janelas para apreciar a paisagem. Ainda insatisfeito com a demonstração de sapiência, o dono da palavra passou a descrever os tipos de rochas propícias à mineração.

Foi então que tudo mudou. Eis que, “não mais que de repente”, surgiu “meu” Tiradentes: um jovem exaltado, dono de uma verdade diversa daquela, com menos diplomações, mas com muito conhecimento técnico do assunto e “bala na agulha”. Ele tomou a palavra e desbancou o Doutor, afirmando exatamente o contrário: aquele não era um tipo de solo peculiar à exploração de ouro. Tal jovem, cujo nome me escapa, já meio ébrio e cansado de tanto palavrório, fez questão de contradizer o sabichão. Ambos engataram uma divertida discussão do tipo bate-rebate, cada um se esforçando para ganhar a credibilidade da plateia. Em um dado momento, o mais velho, já impaciente com a petulância do jovem, disse:
— Meu filho, eu tenho conhecimento de causa. Essa é minha especialidade. Eu sou geólogo, com PHD em formações rochosas.
— O senhor pode ser doutor, pós-doutor, pode ser o “escambau” mas não entende “porra” nenhuma disso.
Todos riram fragorosamente pela surpresa da réplica e pelo inesperado vocabulário chulo. A anfitriã, para evitar maiores exaltações, convidou delicadamente a todos para a sala de jantar. A lauta ceia  transcorreu na santa paz, com suave fundo musical e temas mais amenos, como convém a comensais civilizados. Como dizem os franceses, “tout est bien qui finit bien”.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. 
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)