sexta-feira, 22 de maio de 2020

BOLA DE NEVE COVÍDICA

Nesta manhã, ao abrir os olhos, recebi a triste notícia de que meu amigo Gabriel havia fechado os dele para sempre. Foi levado pela mão da Covid 19, na viagem sem volta, para a qual somos todos candidatos involuntários.
Outras epidemias existiram, ao longo dos séculos, mas, na época em que os transportes eram movidos a capim, não se disseminavam com tanta rapidez. Na virada deste decênio, a Covid 19  (Corona Virus Disease 2019) poderia ter ficado restrita à cidade de Wuhan, na China, mas obteve o efeito  metafórico de “bola de neve”, avolumando-se numa velocidade vertiginosa, e tornando-se potencialmente desastrosa para a saúde pública e para a economia do mundo todo. De janeiro a abril de 2020 infectou mais de cinco milhões e matou cerca de trezentas mil pessoas em todo o mundo. O vírus viaja clandestinamente de um continente a outro, de avião ou de navio, sem pagar passagem e sem pedir licença. A pandemia veio para “balançar o galho”, como se diz no interior de Minas. Seria como se estivéssemos todos sobre um mesmo galho, balançado freneticamente por ela, com o sadismo de se deleitar com o “despencamento”. Nessa brincadeira, os frutos mais maduros (acima de 60 anos) caem com maior facilidade.
Dizem que para toda doença há uma cura, no entanto há que encontrá-la. Como ainda não existe vacina, nem tratamento para essa pandemia, o melhor que se faz é o isolamento social, sobretudo dos idosos e de pessoas vulneráveis (com doenças pré-existentes). Apesar do confinamento, para se contagiar basta que um intermediário transporte, em si ou nas compras de víveres, o maldito vírus para um grupo de risco. Caso um confinado se infecte, todos se infectarão, não por solidariedade, evidentemente. Acontece o que se chama “efeito curral”. Por infelicidade, isso tem ocorrido em asilos.
O chamado lockdown não pode ser duradouro. Seus efeitos são também devastadores. A classe rica se “desenrica”; a média se empobrece; a pobre se “miserabiliza” e morre de inanição.
Em pouco tempo, a Covid ganhou todos os continentes, todas as metrópoles, disseminou-se invisível e silenciosamente até chegar aos nossos vizinhos, aos nossos amigos, à nossa família.
Certa mãe, inconsolável pela morte de uma filha de 15 anos, declarou nas redes sociais ter perdido o fervor religioso que a havia acompanhado desde sempre. Não foi por falta de oração, disse ela. Centenas de joelhos se calejaram, de tanto orar por seu restabelecimento, em vão. Revoltada, a mãe declarou: “Se Deus existe, deve estar de férias ou está de sacanagem conosco.”
Outro internauta respondeu jocosamente que talvez ele tenha se cansado de esperar pela Terceira Guerra Mundial e tenha resolvido criar o coronavírus para diminuir o índice populacional do planeta, que ultrapassa os sete bilhões.
Uma terceira pessoa pegou o bonde andando e questionou: “Mas e o ‘crescei-vos e multiplicai-vos’ da Bíblia?”
A segunda retrucou: “Isso é conversa mole! Ordena a multiplicação e, ao mesmo tempo, cria o pecado original? Onde já se viu? kkkkkkkkkk”
Não entrei na conversa. Evito temas polêmicos. Sabe-se que desde a antiguidade, o Ser humano sente necessidade de crer em alguma divindade. Talvez sua pequenez, sua vulnerabilidade diante da morte e a incompreensão do sentido de existir tenham engendrado um sem-número de religiões e de seitas, todas elas com o afã de ajudar o Ser a ser feliz, ou, pelo menos, a aceitar o inexplicável com tranquilidade e resignação. A pessoa crê ou não crê. Ponto final. Os politeístas acreditam em vários deuses; os monoteístas em um só; os ateus em nenhum. Deus criou a criatura ou foi por ela criado? Que diferença faz? Para alguns, faz toda a diferença; para outros, nenhuma. É inútil discutir tema tão polêmico.
Voltemos ao que desencadeou tudo isso: a morte de meu amigo Gabriel. Ele era um dos leitores mais assíduos de minha coluna do jornal virtual www.acontecendoonline.com.br. Pedia-me que lhe enviasse todos os meus escritos, pela internet. Sempre me dava um retorno carinhoso, a cada nova leitura. Perdi um amigo e um grande incentivador.
Estou abalada e triste com a perda. Há quem acredite em vida após a morte e/ou em outras vidas. Quem sabe, mais dia, menos dia, reencontremos em outra dimensão as pessoas queridas que partiram antes de nós?  Na impossibilidade disso, há, pelo menos, o consolo de se ter essa esperança. Ela não “é a última que morre”? Filosofia e metafísica andam de mãos dadas sobre um precipício de profundezas abissais.
Jô Drumond  – 21-05-2020

quinta-feira, 14 de maio de 2020

CASAL CENTENÁRIO



Desde tenra idade, sempre tive um carinho muito especial por idosos. Órfão aos dois anos, fui criado por meus avós e acarinhado por seus amigos, todos de idade avançada. Eu sempre dizia que, quando crescesse, gostaria de trabalhar com algo que me permitisse contato com idosos. Depois de adulto, decidi fazer assistência social com especialidade em apoio a anciãos. Fazia atendimento em asilos e em residências particulares, na capital mineira. Foi um trabalho gratificante e prazeroso. Após a aposentadoria por tempo de serviço, retornei à minha terra natal, no interior de Minas, e continuei na mesma linha de assistência a idosos. Enquanto puder, continuarei meu voluntariado vitalício. Há muito mais idosos solitários do que se imagina, incluindo aqueles que moram com seus familiares. Filhos sempre às voltas com a criação dos rebentos, trabalho e estudos, não dispõem de tempo para dar atenção aos velhos. Muitos deles têm certa resistência a asilos comunitários. Habituados a seu cantinho e a seus objetos de estimação, gostariam de ali permanecer, com toda razão, até os últimos suspiros.

Semanalmente, visito dezenas de idosos. Meu voluntariado é salutar para ambas as partes. Sinto-me útil ao ajudar o próximo, como se fosse missão de vida. Imprevistos acontecem. Às vezes encontro casas fechadas porque o morador já foi levado pela indesejada das gentes.

Um dia não fui atendido, sem quê nem por quê. Sondei a vizinhança. Ninguém tinha notícia do idoso solitário. Entrei em contato com alguém da família. Nada de novo. Fiz contato com a autoridade competente para autorizar o arrombamento da residência e encontrei o corpo nauseabundo em vias de putrefação.

Certa vez, não fui atendido, mas tudo indicava que havia alguém em casa. As plantas estavam viçosas, flores na janela, roupas no varal... Como sempre, a primeira providência foi contatar os vizinhos. Tentativa infrutífera. Além de acionar a campainha, bati à porta e chamei a cliente pelo nome. Percebi que o portão lateral, que dava acesso ao quintal, estava apenas encostado. Tentei visualizar algo pelas vidraças das janelas. Nada vi, mas ouvi gemidos e uma voz rouca, quase inaudível: ─ Ajude-me! Socorro! Não chamei ninguém, arrombei a porta, imediatamente. Encontrei Dona Cremilda no chão, com fraturas em ambas as pernas. Ali estava havia dois dias, sem se alimentar, longe do telefone e sem condições de se locomover. Tomei as devidas providências e contatei seus familiares.

Bem, deixemos de lado os casos tristes. Gostaria de registrar uma história de companheirismo e solidariedade de um casal de idosos, que lutou contra o tempo e ultrapassou o centenário, por uma nobre causa, até cair de maduro. Seu Jacintho e Dona Isaura viveram uma existência sem grandes contratempos. Viram nascer, crescer e partir filhos, netos, bisnetos e já contavam com uma chusma de trinetos cujos nomes nem sabiam. Ficaram a sós, como se diz, um servindo de bengala ao outro. Ir à casa deles era-me motivo de contentamento. Recebiam-me com café coado na hora e pãozinho de queijo quente, um dos meus quitutes preferidos. Conversava com ambos, à mesa e, depois, conversava com cada um, separadamente, para uma atenção especial. Os dois já apresentavam indícios de breve sobrevida. Ela ia remediando um câncer que aos poucos lhe corroía as entranhas. Seu “Jacintim”, coração de “passarim”, como se pronuncia na região, tinha insuficiência cardíaca a cada dia mais acentuada. Às vezes eu tinha a impressão de que ele ficava ofegante apenas ao falar, como se fosse por esforço físico.Ele se dizia sempre preocupado com sua Isaura. Não podia morrer e deixá-la sozinha naquela casa enorme. Seria perigoso.

─ Há muitos malfeitores hoje em dia ─ dizia ele, como se tivesse condições de enfrentar bandidos. ─ Ela pode cair, sofrer alguma fratura, sem ninguém para socorrê-la. Além do mais, anda muito esquecida. Não se lembra de tomar os remédios certos nas horas certas. A pobre coitada carece de mim.

Ele estava realmente convencido de que não podia morrer antes dela, para não deixá-la ao desamparo. Por sua vez, Isaura tinha o mesmo tipo de angústia. Não se dava o direito de morrer, porque ninguém saberia cuidar tão bem do maridinho quanto ela. Conhecia seus gostos, manias e ranzinzices. Preparava seus quitutes preferidos, cuidava de tudo para que a vida lhe fosse mais agradável e ditosa. Não podia sequer imaginá-lo num asilo, convivendo com todo tipo de gente e tendo que suportar regulamentos, contra sua vontade. Não poderia jamais deixá-lo à mercê disso. O medo de abandoná-lo ao deus-dará dava-lhe forças para sobreviver, apesar da força da gravidade, que a atraía cada vez mais para o chão, ou melhor, para alguns palmos abaixo dele.

A cada virada de ano, ao visitá-los, eu pensava que seria a última vez que lhes transmitia votos de um Feliz Ano Novo. Qual nada! Entrava ano, saía ano e eles estavam lá firmes e fortes, sempre sorridentes ao me receber. No entanto as leis da mãe natureza são mais fortes que a força de vontade. Algum dia, quer queiramos ou não, teremos que trilhar, mesmo a contragosto, o caminho sem volta, rumo à grande incógnita.

Certo dia, Isaura levou uma queda e fraturou o fêmur, ou vice-versa. A fratura pode ter precedido a queda. Isso acontece, depois de certa idade. Teve que ser levada a um pronto atendimento, em época de pandemia. Como era de se esperar, no hospital, foi infectada pelo coronavírus, e sucumbiu à covid 19, como tantos milhares no mundo todo. Passou a ser apenas um ponto a mais nas estatísticas de baixas, causadas pelo flagelo que assola a humanidade. Ao tomar ciência de seu passamento, Seu  Jacintho. teve um mal-estar instantâneo. Seu coração parou, em solidariedade ao da companheira.

Família reunida, velório duplo, redobrados prantos e duas covas, lado a lado, como sempre estiveram em vida. Seja lá onde for, imagino que um continue velando pelo outro ad aeternum.
Jô Drumond

quarta-feira, 29 de abril de 2020

FIDELIDADE CANINA


Um Senhor, já bem inclinado devido ao peso da idade, andava sempre acompanhado por um vira-latas de pequeno porte. Na verdade, o vira-latas não apenas o acompanhava. Passava maior parte do tempo sobre o cangote do velho corcunda. Habituado aos frequentes cochilos da idade, assentava-se em sua poltrona preferida, e dormitava quase o dia todo, com a cabeça pendida para o chão. Sobre seus ombros no cocuruto do pescoço, aninhava-se o cãozinho sonolento. Era uma cena habitual aos familiares, mas assaz interessante para os que por ali passavam. Quando o velho acordava, o cão apenas mudava de endereço: do cangote para o colo, do colo para o braço. Assim viveram em perfeita harmonia durante muitos anos, até que a fria mão da morte veio buscar o ancião.

O cachorro, sem nada entender, esteve presente durante todo o velório, sem direito a pular para dentro do caixão. Acompanhou o séquito até a porta do cemitério, onde foi impedido de entrar. Fecharam-lhe o gradil bem na ponta do focinho. Ali ficou postado, na esperança de uma brecha para entrar. Após o enterro, todos partiram, exceto o coveiro que o escorraçou mais uma vez antes de retomar seus afazeres. Do lado de fora, o cachorro gania sem cessar. O coveiro, incomodado com a persistência do cão, abriu-lhe o portão, para verificar o que ele queria. O animal entrou como um corisco e, sem nenhuma informação itinerária, foi diretamente à sepultura de seu amo, como se já soubesse de antemão o local onde fora enterrado. Farejou a terra remexida, alojou-se sobre o monturo da sepultura e ali permaneceu dias e noites sem se deslocar, a não ser para as necessidades básicas. Os coveiros, sensibilizados com tamanha fidelidade, começaram a trazer-lhe alimentos. Por ali foi ficando, ficando… tornou-se guardião daquela lúgubre morada. Viveu ainda longos anos sem arredar pé da sepultura de seu amo, até que a natureza providenciou-lhe o encontro dos dois, no além.

O coveiro não sabia o que fazer com o corpo do animal. Não tinha coragem de encaminhar para o lixão os despojos do ser mais fiel e amoroso que havia conhecido.

Não precisou de muita imaginação para resolver a questão. Decidiu dar-lhe guarita sob alguns palmos de terra fofa, junto daquele que velara por toda a vida. Lá ficaram ambos, amo e amado, unidos no silêncio da morte e na imensidão da eternidade.

Dizem que, às vezes, podem ser vistos a passear pelas nuvens, em meio a tufos de algodão. Com boa dose de imaginação, percebem-se entre cúmulos, os cabelos brancos do velhinho, e, logo abaixo, seu cãozinho de estimação, enroscado no “cangote da cacunda”.

Jô Drumond