sábado, 14 de março de 2020

INCIDENTE

“A vida é muito curta para ser levada a sério”
Oscar Wilde

Dias e noites, no hospital, parecem bem mais longos para certos pacientes de CTI ou UTI,  sobretudo quando não podem ler, nem ver televisão. Experimentei isso nestas últimas noites maldormidas. A claridade da televisão me fazia doer a cabeça; as letras, todas elas indefinidas, se embaralhavam diante dos olhos. Não tendo o que fazer, nada fazia. Sem poder mudar de posição, devido à benfazeja parafernália de monitoramento, aguardava o passar do tempo. Enquanto ele passava, muita coisa passava também por minha cabeça contundida. Pus-me a pensar na insignificância da vida, na força do imprevisto e nas “fortuidades” dos acidentes. Numa fração de segundos todos os planos e projetos se anulam. Momentos antes, eu programava uma bela viagem; momentos depois, via-me presa a um leito de UTI, sem autonomia alguma.

Na noitinha da última segunda-feira, ao sair da reunião da Academia de Letras do Espírito Santo, na Praça João Clímaco, centro de Vitória (ES), fui, juntamente com alguns confrades, assistir a um sarau na Biblioteca Pública Municipal, quase ao lado, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. Terminado o evento, ao descer, em grupo, uma pequena escadaria, preocupada em apoiar minha amiga Ester Abreu (presidente da Academia) que tem certa dificuldade de locomoção, distraí-me. Não percebi a existência de um desnível na calçada, desequilibrei-me e bati violentamente com a cabeça no asfalto. Meus cabelos loiros, sedosos e cheirosos em segundos se ensoparam de sangue e da negra lama do asfalto, em noite chuvosa. Por pouco não serviram de tapete para um carro que por ali passava. Fui salva do atropelamento pelo confrade Marcos Tavares, que fez com que o carro parasse a tempo. Fiquei estatelada no chão, inerte, sem tentar aluir do lugar. O sangue jorrava aos borbotões. Fui retirada dali como um corpo-objeto, sem reação alguma, e colocada em uma cadeira, buscada às pressas na biblioteca.  Todo meu corpo  tremia convulsivamente, não de frio, nem de medo; talvez pela volume de sangue esvaído.

Cabeça meio confusa. Parecia que aquilo não estava acontecendo comigo. Eu era apenas testemunha de algo nebuloso, que não cabia em meu entendimento. O confrade Álvaro Silva, para quem eu ia dar carona, acabou me levando, em meu carro, até o Pronto Socorro do Hospital Santa Rita. Percebi que ele estava muito tenso, ao volante, mas tudo me era indiferente naquela hora. Nada me dizia respeito.

Ao chegar ao Pronto Socorro, fui espetada por agulhas impiedosas, suturada, revirada pelo avesso em parafernálias de tomografia e de raios X. Diagnóstico: fraturas na órbita esquerda e parede posteriolateral  do seio maxilar; fratura dos ossos nasais e hemorragia intracraniana. Dali para a UTI do mesmo hospital foi um passo. Percebi que poderia estar a poucos passos da morte, mas isso, para mim, não tinha a mínima importância. A apatia, a indolência ou o que quer que fosse naquele momento talvez tenha funcionado como autoproteção contra o desespero ou contra o medo. Não sei explicar. Isso fica a cargo do confrade psicanalista Ítalo Campos, que não estava presente.

Depois de atendida, diagnosticada, ciente do risco e acompanhada por familiares, tive reação contrária. Reuni as forças que restavam para me agarrar à vida. Sabia que meu futuro dependia da gravidade do choque e do fluxo hemorrágico. Decidi, naquele momento, que não queria morrer, em hipótese alguma. Não sei se isso ajudou na recuperação. Se estou relatando o fato, é porque sobrevivi, pelo menos, por enquanto.

Na última noite maldormida na UTI, pus-me a cismar sobre questões de difícil entendimento: vida e morte se opõem ou são interdependentes? Sem vida não haveria morte, como sem luz não há sombra. A morte brota juntamente com a vida, no momento da concepção, ou ela se nutre da vida para se concretizar? Como se concretizar no nada absoluto? Quanta incongruência!

Lembrei-me de ter lido, tempos atrás, um texto conciso, hermético, repleto de paradoxos que suscitam a reflexão. Sua autoria é atribuída a uma figura meio mítica, o Chinês Lao-Tsé (séc. VI a.C.). Segundo ele, da essência infinita do universo brotam, sem cessar, as existências finitas. O ser humano, como uma onda, brota, cresce e se desfaz. Mas a vida (o oceano) continua. Sob esse prisma do pensador, a discussão sobre a origem da vida torna-se absurda, pois ela não tem origem nem fim. Por outro lado, os seres vivos existem e (des)existem.

Seja como for, é difícil aceitar que tantas mentes brilhantes se transformem em inútil pó, ou sejam esmagadas sob as rodas de um carro, sem aviso prévio, “atrapalhando o trânsito”, como aconteceu com um conhecido meu. Entre as duas calçadas, na travessia de uma rua estreita, encontrou a eternidade. Nunca chegou a seu destino. Ou era esse seu destino final?

Tive mais sorte que ele. Perdi o sono, mas não perdi a esperança. Deixei de lado as reflexões existenciais e passei a pensar em futuros projetos. Por um triz afortunado aqui estou, mas poderia estar trilhando caminhos ignotos dos viventes rumo a não sei o quê, ou talvez não estivesse trilhando caminho algum, por ter chegado ao fim.

Jô Drumond
Março 2020

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O CARNAVAL DE OUTRAS ERAS


É interessante observar que, desde tempos remotos, as festividades carnavalescas sempre estiveram relacionadas à fecundação da terra e da espécie humana. Na Antiguidade, a terra era concebida como um organismo feminino; a colheita, como termo de uma gestação.

As procissões fálicas, em homenagem à deusa da fertilidade, Deméter, tinham o objetivo de despertar o riso e a alegria e, por conseguinte de suscitar fecundação, reflorescimento e colheita abundante na natureza, da qual fazemos parte. Isso sempre engendrou um fenômeno social conhecido como “os filhos do carnaval”. Trata-se do alto índice de natalidade nove meses após tais festividades populares, responsáveis por um grande número de filhos fortuitos, vindos ao mundo sem programação prévia.

As festas dionisíacas e saturnais (correspondentes ao atual carnaval) coincidiam com os rituais agrários. Todas elas mantinham a mesma linha de pensamento: o riso, a alegria e a licenciosidade desencadeavam um poder mágico sobre a natureza tornando-a fecunda. Houve época em que, durante as comilanças públicas, em dias festivos, comia-se e bebia-se a ponto de perder os sentidos. Não havia nenhum tipo de recriminação para tais atos. Pelo contrário, isso era visto como algo positivo. Essas comilanças eram acompanhadas por risos fragorosos, exultantes e plenos de satisfação, que influenciariam o florescer da terra. Considera-se, até hoje, que o riso alegre é vivificador. Elimina emoções negativas e estimula o desejo de viver.

Cerca de 560 anos a.C., havia manifestações populares, com diálogos, músicas, cantos, danças, fantasias e representações caricaturais do mito dionisíaco. Durante as procissões, os "Komastes" (homens fantasiados com falso ventre e falso traseiro) usavam enormes falos postiços, simbolizando a fertilidade, o crescimento e a abundância.

Em tempos de antanho, o carnaval (festa medieval popular), era a segunda vida do povo, na qual reinavam fantasia, liberdade, igualdade, abundância e alegria. Nas cidades, tais celebrações chegavam a durar três meses por ano. Ao contrário da festa oficial, na carnavalesca havia uma espécie de liberação temporária e abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Sua tônica era e ainda continua sendo a descontração por meio da subversão da ordem estabelecida. Um bufão era sagrado rei (rei Momo do carnaval de hoje), roupas eram vestidas pelo avesso, calças se punham na cabeça em lugar do chapéu...

Diferentemente da Antiguidade, na Idade Média, durante cerca de um milênio, o riso foi abolido da esfera oficial, em cultos religiosos e cerimônias feudais, mas era permitido em praça pública. Riso e seriedade correspondiam a uma moeda de duas faces: a oficial, relacionada à seriedade, à opressão, às restrições, às intimidações; e a outra face, da esfera popular, relacionada ao riso, ao amor, à renovação, à fecundidade, à abundância, à comilança e ao sexo.

Sacro e profano coexistiam, mas não se fundiam. Acreditava-se que apenas a seriedade podia expressar a verdade e o bem. Em compensação, paralelamente, ritos cômicos, tolerados pela Igreja cristã, degradavam ritos e símbolos religiosos. No início do cristianismo foi instituída, por exemplo, a festa dos loucos, na qual tudo era permitido: embriaguez, glutonaria e obscenidades de toda sorte. A justificativa dessas festas apoiava-se no fato de que o ser humano tinha duas naturezas: a da seriedade, cultivada e aceita oficialmente; e uma segunda natureza inata, contrária à primeira. O homem era comparado a um tonel de vinho que devia ser destapado de vez em quando, devido à fermentação. O vinho da sabedoria faria com que o homem explodisse, caso se mantivesse na constante fermentação da piedade e do temor divino. Destarte, as festas e os folguedos correspondiam à válvula de escape da rigidez imposta pelo poder constituído.

A igreja fazia com que algumas festas cristãs coincidissem com as pagãs, a fim de cristianizar os homens. A bufonaria era permitida para que os fiéis voltassem depois dela, com duplicado zelo, ao serviço do Senhor.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

PARENTESCO ATÍPICO

Numa determinada agência bancária no interior do Ceará, havia um cliente pretensamente acima de qualquer suspeição, porém bastante suspeito. Tratava-se de um Monsenhor, sério, honesto e de moral ilibada.

Um belo dia, chegou à cidade o inspetor Juarez, vindo do Sul do país para averiguar a situação do banco. Encontrou uma dívida enorme em nome de uma cooperativa criada pela paróquia e administrada extraoficialmente por um Monsenhor. Segundo o gerente, o religioso se recusava a pagá-la, alegando ser a dívida oriunda da cooperativa. Feita a auditoria, averiguou-se que se tratava de uma cooperativa fantasma. A relação entre banco e cliente andava cada vez mais tensa. De um lado, acirramento da cobrança; de outro, recusa peremptória.

Certo dia, a autoridade religiosa foi convidada a comparecer à agência bancária. Dirigiu-se à gerência, onde se encontravam o gerente e o inspetor. A conversa começou dentro da normalidade, mas, à medida que avançava, os ânimos se alteravam assim como o tom das vozes, cada vez mais audíveis por todo o ambiente. O entrevero foi causado evidentemente pela inadimplência e pela recusa sistemática do religioso em quitar a dívida. O desacordo cada vez mais tenso entre os interlocutores, e o consequente aumento do nível de intensidade em decibéis fizeram com que funcionários e clientes parassem para assistir à discussão. O Monsenhor, vendo-se obrigado a pagar o que devia, comunicou ao inspetor, em voz alta, que ele seria excomungado da Igreja Católica. Muito à vontade, em tom de deboche, o inspetor lhe respondeu, no mesmo tom, que, por sua vez, ele já excomungara o Monsenhor havia muito tempo. Ninguém conseguiu conter o riso. O religioso saiu acabrunhado e envergonhado devido à presença, no recinto, de muitos frequentadores da igreja.

Como havia muitos “abacaxis a descascar”, Juarez acabou alongando a inspeção naquela agência bancária. Casualmente, conheceu uma linda e meiga garota, chamada Juliana. Pediu a autorização dos pais da donzela para iniciar o namoro e, alguns meses depois, pediu solenemente sua mão em casamento. A cerimônia religiosa deveria ser realizada na catedral da cidade, onde o Monsenhor atuava.

Após a enrascada no banco, os fuxicos se multiplicaram assustadoramente. Não se falava em outra coisa, na pequena cidade. Isso complicou a vida dos noivos, cuja cerimônia religiosa foi sistematicamente recusada por todos os padres da cidade, em sinal de apoio ao colega ofendido. A cada dia procuravam um padre diferente. A resposta era sempre negativa. Apelaram então para o Bispo. Conseguiram, por meio dele, a autorização para o matrimônio na capital do Estado, longe de tudo e de todos.

Esse foi o primeiro empecilho a ser transposto pelo noivo. O segundo era de ordem familiar. Franciele, a mãe da noiva, gostava do pretendente, mas tinha certas restrições. Primeiramente pela grande diferença de idade. Juarez era viúvo, pai de seis filhos. Em segundo lugar, porque se tratava um desconhecido, vindo sabe-se lá de onde. Além do mais, pretendia levar a futura esposa para bem longe dali. Lamentava ter tido tanto esmero na educação da menina, para entregá-la em mãos desconhecidas, e, além disso, perdê-la de vista. Juliana era primogênita, criada com muito rigor, em internato de freiras, muito bem preparada para o papel de esposa.

Um dia, a futura sogra chamou o noivo em particular e lhe disse:

─ Veja bem! Eu queria ver minha filha formada e gostaria que ela continuasse a viver aqui junto à família. Você quer levá-la para bem longe, antes da formatura. Apesar de meu contragosto, esse casamento “é de gosto” para Juliana. Caso eu não o aceite, vou ter que ouvir a ladainha já esperada, por parte dela, pelo resto da vida. Façamos o seguinte: eu permito que você leve minha filha, mas com uma condição. Levará também uma de suas irmãs. Não gostaria que ela ficasse sozinha, sem alguém da família para lhe dar apoio.

Estando ambos de acordo, a mãe passou então à fase da preparação do enxoval. No dia da partida, Juliana foi surpreendida por um revólver calibre 38 dentro da mala. Questionada a respeito, a mãe lhe disse simplesmente:

─ É só pra caso de precisão, minha filha.

Juliana nunca precisou usá-lo. Ao chegarem ao destino, ela e a irmã Luciana foram muito bem recebidas pelos filhos de Juarez. Prova disso é que seu filho primogênito acabou se casando com Luciana. Anos mais tarde, um irmão de Juliana foi visitá-la e acabou se engraçando pela filha caçula de Juarez. O visitante conseguiu trabalho no Sul e acabou constituindo família por lá. Mais um casamento entre as duas famílias. O parentesco às vezes se embaralhava para as pessoas de fora. Os colegas e amigos faziam brincadeiras para decifrar a confusa parentela. Quando criança, o filho único de Juarez /Juliana teve dificuldade em entender que um de seus irmãos era também seu tio. O casal viveu em perfeita harmonia até que a morte de Juarez os separou, vinte e um anos depois.

Como diz o provérbio francês, “tout est bien qui finit bien”. A união das duas famílias ficou mais que consagrada, com os três desponsórios. Quanto ao Monsenhor, após o “famoso” episódio na agência bancária, ficou tão vexado junto aos fiéis, que solicitou transferência para outra cidade. Nunca mais foi visto pelos paroquianos.