quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O MENINO QUE VIROU PAPAI NOEL


Zequinha era menino de frágil compleição, franzino, porém ladino. Nada passava despercebido a seus olhos vivazes. Por vezes, acompanhava sua mãe, Maria Abadia, no trabalho de diarista, para não passar o dia sozinho. Nas casas das patroas, via uma infinidade de brinquedos que gostaria de ter. Abadia dizia que não os podia comprar. Ele não conseguia entender. Ela trabalhava como todo mundo. Por que outros podiam, e ela não? O dinheiro de todos não era igualzinho ao dela? Pois então!
Zequinha ainda não tinha entendimento para questões monetárias. Seus brinquedos não eram tão atraentes quanto os que via nas vitrines e nas casas das patroas de sua mãe. Já os recebia usados, muitas vezes estragados ou quebrados.

Todo ano, no final da tarde do dia 25 de dezembro, a praça mais próxima de sua casa ficava repleta de crianças, com brinquedos trazidos pelo Papai Noel. O Bom Velhinho conhecia os endereços das outras crianças e não o dele. Caso o encontrasse, lhe explicaria como chegar até seu barraco, no Morro do Pintassilgo. O acesso não era muito fácil. Talvez ele não tivesse mais idade para subir ladeira como aquela. Combinariam um esconderijo em lugar plano e seguro, próximo à praça. Na manhã do dia 25, ele se levantaria bem cedinho e pegaria o mimo de Natal antes que um aventureiro lançasse mão dele. No entanto só via o Papai Noel na televisão. Onde seria sua residência? Certo dia pediu à mãe que o levasse até à casa do Bom Velhinho. Meio aturdida, ela lhe disse que ele morava em um lugar muito distante. Seria impossível ir até lá a pé, de bicicleta ou de lotação. Teria que fazer uma longa viagem de navio ou de avião. Ah! - exclamou o menino – para caber tantos presentes, ele deve ter um baita navio, um “navião”!

Quando Zequinha começou a ser alfabetizado, deixou de acompanhar a mãe. Passava as manhãs na
escola e, na parte da tarde, passava o tempo à porta de uma mercearia, oferecendo seus préstimos como engraxate. Um vizinho lhe repassara uma caixa de engraxate que havia pertencido a seu filho. Deu-lhe tintas e graxas já usadas, e o iniciou no ofício. Zequinha ficou radiante com a novidade. Acabou fazendo novas amizades com funcionários e clientes do pequeno comércio. Gostava do ambiente. Era bem mais divertido que ficar em casa vendo televisão. Muitas vezes, a tarde passava sem que aparecesse nenhum cliente, mas ele não se importava. Sua mãe, na volta do trabalho, passava por lá trazendo-lhe balas ou pirulitos. Subiam juntos a ladeira, contando reciprocamente as novidades do dia.

Todo ano, na tarde de 25 de dezembro, ele continuava indo à praça, para apreciar os novos brinquedos. Certo dia, assentado no banco da praça, a observar as novidades lúdicas, teve uma ideia. Como Papai Noel não sabia seu endereço ou não conseguia subir a ladeira, ele mesmo faria economias e compraria o que lhe agradasse, para brincar juntamente com as outras crianças. Durante um ano, economizou cada centavo e, na véspera do Natal, entrou em uma loja de brinquedos, juntamente com sua mãe, para escolherem juntos algo compatível com a quantia de que ele dispunha. Zequinha saiu de lá radiante. Não cabia em si de contente, carregando um caminhão de madeira, com carroceria verde e boleia vermelha. No mesmo dia, comprou também um saco de balas. Sua mãe achou um exagero, mas não o repreendeu pela quantidade de guloseimas. Afinal, ele tinha o direito de gastar seus trocados como bem entendesse. Nada de grave poderia lhe acontecer; no máximo, uma dor de barriga. No dia seguinte, lá estava ele entre as crianças, puxando seu caminhão com a carroceria abarrotada de balas, feliz da vida com o brinquedo que ele mesmo se deu. Um garotinho lhe pediu uma bala. Ele acabou distribuindo-as todas com a criançada. Naquela idade, já demonstrava seu traço de generosidade.

Com o tempo, o menino começou a entender a relação do trabalho com o dinheiro e a do dinheiro
com a aquisição do que bem lhe aprouvesse. Descobriu que nunca tivera bons brinquedos porque era pobre. Desde então, fez questão de trabalhar com afinco, para ganhar mais, mas não renunciou à vida de criança, nem à de estudante. Reservava tempo suficiente para brincar e para estudar.

Dizia sempre à sua mãe que, quando crescesse, queria ser fabricante de brinquedos. O motivo era simples: gostaria de distribuí-los gratuitamente às crianças pobres.

Trabalhou e estudou, ao mesmo tempo, fez faculdade e tornou-se proprietário de uma grande fábrica de brinquedos. Na época do Natal, fazia religiosamente grandes doações às crianças carentes. O restante era vendido no mercado nacional e internacional.

Zequinha hoje, com 50 anos, conhecido como Senhor José, mora em bairro nobre, mas ainda mantém o hábito de frequentar, na periferia, a mesma praça de sua infância, na tarde de 25 de dezembro. Ele o faz não apenas por saudosismo. Observa atentamente os tipos de brinquedos que fazem mais sucesso nas diferentes faixas etárias. Daí surgem ideias para novas criações, em seu ramo de negócio.

O ex-engraxate desceu o morro e subiu na vida. A maior parte de sua fabricação é exportada para diversos países e faz a alegria de milhares de crianças de diferentes idades e etnias.



Jô Drumond

2019

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O SOVERTIDO


Vicentim, cabra honesto e trabalhador, morava com a família na zona rural mineira, próximo a um arraial que nem constava nos mapas. Trabalhava de sol a sol, labutando na agricultura para garantir o sustento da família. Em meados do século XX, não havia eletrificação rural. As fazendas operavam sem nenhum tipo de maquinário. Por conseguinte, careciam de braços fortes e numerosos para a lida diária. Andava cansado de briquitar na lavoura. Não podia contar com a ajuda dos filhos, ainda pequenos. Em épocas de plantio e de colheita, via-se na contingência de contratar mão de obra temporária, o que onerava muito seu ganha-pão.

Soube, por meio de um compadre, que o “negócio da China”, naquele momento, seria a pecuária, devido à alta vertiginosa do preço do gado. Seria investimento garantido e lucro certo. Vicentim vislumbrou a possibilidade de fazer um bom negócio, mas não dispunha de fundos, para começar. Zanzou por algum tempo, de fazenda em fazenda, levantando empréstimos com parentes e conhecidos. Acabou comprando uma pequena boiada, em detrimento da lavoura, relegada a segundo plano, ou a plano algum.

De vez em quando, Vicentim dava-se o direito ao maior de seus deleites: passar horas a fio, à beira do rio, em silêncio, perscrutando os segredos das funduras, à espera de que a isca atraísse peixes graúdos. Eram horas de tranquilidade e de relaxamento total. Esquecia-se das mazelas domésticas, das dificuldades financeiras, das encrencas com os vaqueiros e dos problemas pendentes, que não eram poucos.

O padrão de vida da família melhorava a passos largos, com a pecuária. Os preços do gado atingiram cifras até então inimagináveis. Era o melhor dos mundos possíveis, até que veio a peste e, com ela, a desolação. Grande parte do rebanho teve que ser sacrificada. Mais sacrificados ainda ficaram os pecuaristas, com sérios problemas de caixa. Vicentim encontrava-se encalacrado com seus credores, mas não deixava transparecer sua aflição. Era homem habitualmente sisudo e calado. Sua mulher Don’Ana, ao contrário, era alegre e falante. Envolvida nas lidas domésticas e na criação dos rebentos, dispunha de pouco tempo para elucubrações, mas, mesmo assim, percebeu que seu marido andava cada vez mais circunspecto. Evitava incomodá-lo com questionamentos. Certamente tinha problemas que não lhe diziam respeito. Era esperto e inteligente o bastante para se sair bem em qualquer empreitada.

Certo dia, Vicentim pegou seus apetrechos de pescaria e se dirigiu ao rio, como de costume. Dessa vez, seu retorno estava demorando por demais. Já se fazia tarde. A noite se avizinhava. Don’Ana pediu aos dois filhos maiores que fossem chamá-lo, à beira do rio. Não o encontraram, talvez devido ao lusco-fusco do fim do dia. Don’Ana não se preocupou. Podia ser que tivesse ido tomar umas biritas na venda do Getulão, com algum pescador amigo. Serviu a janta às crianças, ouviu mais um capítulo da radionovela preferida, em um rádio a pilha e, entre dezenove e vinte horas, ouviu o noticiário radiofônico A Voz do Brasil. Vicentim não perdia nunca tal emissão. Sentava-se ao lado do rádio, expulsava para longe as crianças ruidosas e ficava atento a tudo que se passava no País. Naquele dia, ele não chegou a tempo. Don’Ana, sempre encarregada de engambelar as crianças durante a transmissão, para deixá-lo em paz, sentiu falta da rotina e começou a cismar. Teria ele bebido em excesso e se esquecido do noticiário? Seria bem possível. Tratou de colocar os meninos nas respectivas camas, rezou o terço, o rosário, a novena… e nada de Vicentim. Encompridou a reza, apelando para o santo protetor dos pescadores, São Pedro. Nada de Vicentim. Manteria a lamparina acesa até sua chegada. Acabou perdendo o sono. Pegou a lamparina, foi até à despensa, onde ficavam as latas de chimanguinho, broas e pães de queijo. Passou um cafezinho no coador de flanela, fartou-se de quitandas e esperou o pachorrento passar do tempo. Não tinha noção das horas.

O único relógio existente na casa, herança de família, não funcionava, havia anos. A noite parecia não ter fim. Don’Ana acabou cochilando, assentada na banqueta da cozinha, até o amanhecer. Antes que as crianças acordassem, foi até o rio, na esperança de encontrar algum traço do desaparecido. Seus pertences estavam sobre um toco, a rede, a vara de pescar e a caixa de iscas, no chão. Teria ele se afogado? Pouco provável. Sabia nadar. Às vezes, redemoinhos formados dentro d’água sugavam tudo que se encontrasse à superfície. Se ele tivesse sido engolido pelo “redemunho”, não haveria volta. Don’Ana se assentou no toco e começou a matutar: caso ele tivesse resolvido nadar, teria deixado suas roupas à margem. Caso tivesse usado a canoa para pescar, estaria vestido. Isso explicaria a ausência das roupas. A canoa poderia ter sido sugada. No entanto, nesse caso, não teria deixado a rede e a vara e as iscas à margem. Seguindo rio abaixo, encontrou a canoa, presa a um tronco de árvore. Dali foi diretamente ao bar do Getulão, para obter notícias. Todos ainda dormiam. Ousou bater à porta. Foi atendida com um grande bocejo e espreguiçamento, pelo dono da cachaçaria. Vicentim não tinha dado as caras por lá, na noite anterior. Ana voltou para casa, serviu o desjejum aos pimpolhos, pediu a um vaqueiro que ficasse com eles, arreou seu cavalo baio e saiu a campear o marido sumido. Cavalgou de fazenda em fazenda, tentando obter notícias. Esticou algumas léguas até o arraial, sem obter êxito. Marido sovertido. Quem sabe abduzido?

Don’Ana pensou então em outra possibilidade. Poderia ter sido atacado por uma onça. Organizou um mutirão de cavaleiros para vasculhar toda a área, em busca de algum sinal. Caso ele tivesse sido atacado, haveriam de encontrar pedaços de vestimentas ou de corpo, no matagal. A não ser que a onça o tivesse arrastado até seu esconderijo, para alimentar os filhotes. Era por demais doloroso divagar sinistramente em busca de possibilidades cada vez mais tenebrosas. Todos os esforços foram inúteis. As línguas de trapo insinuavam outros caminhos. Talvez ele tivesse se engraçado por uma lourona e se mandado com ela para a cidade ou para os quintos dos infernos. Houve até mesmo quem insinuasse sua partida com outro cabra macho, após ter resolvido, nunca se sabe, “sair do armário”. Don’Ana ouvia os disparates, desolada, sem saber o que fazer. Não entendia nada de negócios. Pediu aos vaqueiros que continuassem a ordenha diária, chamada, por ela de “tiração do leite”, que mantivessem a “fazeção” dos queijos, no horário de sempre, e a apartação dos bezerros, no final do dia. Pediu a um cunhado que assumisse a administração dos peões e do que se fizesse necessário, até a volta do marido.

Com o tempo, as coisas foram se ajeitando, os credores foram se acalmando, as crianças crescendo… e nem sinal de Vicentim. Teria fugido? Isso nunca! Não passaria tanto tempo sem dar notícias, nem sem ver os filhos. Era homem honesto, pai extremoso e marido carinhoso. Com certeza estava morto. Aguardariam os cinco anos de praxe, para oficializar o desaparecimento.

Don’Ana não era de se jogar fora. Mulher sacudida, de fibra, muito bem-apessoada. Alguns pretendentes foram se aproximando, discretamente, com a desculpa de obter notícias ou de oferecer seus préstimos. Ela os recebia com a devida cortesia, mas em momento algum a substituição do marido lhe passava pela cabeça. Caso alguém insistisse, ela faria como a Penélope da história que ouvira contar. Enganaria a todos cosendo e descosendo desculpas esfarrapadas até que o desaparecido aparecesse.

Quinze anos se passaram sem notícias. Certo dia, um compadre do casal teve que ir à capital. Ao chegar à rodoviária, resolveu engraxar as botinas. Havia cinco grandes cadeiras de engraxate, alinhadas. Ocupou uma delas para a devida prestação do serviço. Foi atendido por um rapaz moreno e falante. O engraxate da última cadeira, na extremidade oposta, era muito parecido com Vicentim, mas, diferentemente dele, era bem mais magro, usava cabelos longos, barba e bigodes. Assuntou com o engraxate tagarela e soube que o colega em questão era originário da zona rural e se chamava Vicente. Caso fosse o compadre, escondido atrás da barba e do bigode, evidentemente não queria ser identificado. Antes de sair, aproximou-se discretamente para ouvir a voz do suspeito. Era por demais parecida com a de Vicentim, para não dizer a mesma. Nada disse. Nada fez. Voltou para o interior e expôs o ocorrido aos irmãos do sumido. Por ora, não diriam nada à Don’Ana, nem a ninguém. Iriam à capital, para se certificar, e, se fosse o caso, trazer de volta o fujão, mesmo que fosse a laço. Dito e feito. Três deles embarcaram para a capital e apareceram de surpresa, na rodoviária. Um deles assentou-se na quinta cadeira, diante do suposto irmão desaparecido. Ao vê-lo, Vicente desviou o olhar. Começou a engraxar cabisbaixo, sem mirar o cliente. Os outros dois ficaram de pé, ao lado, a observar. Nada disseram. Vicente não sabia o que fazer. Não tinha certeza de ter sido identificado. Resolveu manter a farsa. Ao terminar, seu irmão lhe disse que não tinha dinheiro trocado e o convidou a acompanhá-lo até à lanchonete, para trocar uma nota de cinquenta reais. Vicente ainda continuava mantendo a esperança de não ter sido reconhecido. Ao se aproximarem da lanchonete, os três o cercaram e acabaram com a farsa. Queriam uma justificativa plausível para tamanho disparate. Como abandonar os pais, a esposa, os filhos, os irmãos, os amigos, uma vida, sem mais nem menos. Vicente se pôs a tremer e, logo após, a chorar. Disse que tinha sido obrigado fugir por estar sendo ameaçado de morte por parte de Miguelão, a quem devia muito dinheiro. O negócio do gado inicialmente ia bem, até a chegada da peste. Com a enorme quantidade de baixas no rebanho, não havia meios de liquidar as dívidas. Teve que fugir para não morrer.

Os quatro se dirigiram a um lugar mais reservado, para prosear à vontade. Primeiramente fizeram o levantamento dos créditos e dos credores. O irmão mais velho sugeriu que a família pagasse as dívidas menores. Quanto à mais vultosa, causadora do transtorno, já havia sido liquidada naturalmente. Com a morte de Miguelão, seus familiares haviam vendido tudo e se mudado para outro Estado. Como dizia um jogador de futebol, “para cada problemática, uma solucionática”.

Outro problema se interpunha. Como justificar sua prolongada ausência? Como teria ele saído da beira do rio e ido parar na capital? Como teria vivido todo esse tempo? Por que não havia feito contato com a família? Confabularam e combinaram então de tapar o sol com a peneira. Esses e demais questionamentos que surgissem seriam computados na conta de uma amnésia temporária. O mistério permaneceria. Ele não se lembraria de nada, até segunda ordem. Quem sabe, um dia, encontrasse alguma desculpa convincente ou tivesse hombridade de recobrar a memória? A farsa deveria ser mantida até mesmo para seus pais, que não mereciam tal desgosto, assim como para Don’Ana, que havia “penelopado”, durante quinze anos, à espera de seu Ulisses.

Mais uma questão a ser resolvida. Como seria seu retorno ao lar? Não poderia aparecer subitamente, do nada. Os três irmãos decidiram preparar o espírito de toda a família e organizar uma festa de recepção, com data e hora marcada, para que Vicentim fosse recebido em grande estilo e, sobretudo, sem perguntas.
Jô Drumond   –  26/outubro/2019


domingo, 24 de novembro de 2019

PARATY PARA TI

                                         RUA DO FOGO
Uma das curiosidades de Paraty (RJ) é a Rua do Fogo. Trata-se de uma das poucas ruas da cidade que preservam o nome original. Antes de existir iluminação elétrica, a cidade de Paraty era totalmente iluminada por tocheiros, espalhados pelas ruas. Em determinada hora da noite, as tochas eram apagadas, com exceção das que iluminavam a Rua do Fogo, frequentada 24 horas por dia. Daí a razão de seu nome. Tratava-se da zona boêmia, ao lado do cais e de uma igreja.
Os marinheiros chegavam sedentos de prazer, após longa estada no mar e encontravam próximo ao porto o refrigério de suas agruras: mulheres belas, perfumadas e sedutoras para uma sessão de chamego e de descarrego da libido em troca de algumas moedas a mais no bolso para o pão cotidiano. Ao sair do meretrício, os pecadores tinham a chance de pedir perdão pelos pecados ali cometidos, na igreja Santa Rita de Cássia, estrategicamente construída junto à zona boêmia. Como sempre, os trocistas dão outra razão para a denominação de Rua do Fogo. Segundo eles, era ali que os marinheiros apagavam seu fogo, após longa abstinência sexual.
Tal rua hoje toda florida é uma das mais charmosas da cidade. Deveria se chamar de Rua das Flores.

Planejamento das ruas em forma de canaletas

As ruas, em pedras brutas, inicialmente abaixo do nível do mar, foram projetadas em forma de canaletas. Como só existia transporte equino, elas ficaram sujas de urina e de estrume de animal. A preamar lavava-as, e as canaletas escoavam a sujeira para o mar. Para atravessar as ruas, eram colocadas pinguelas feitas de largas tábuas ligando um meio-fio ao outro. Próximo ao porto isso ainda acontece. No centro da cidade, para evitar a invasão da maré, o nível da rua foi elevado. Mesmo assim, em muitos locais, há dois degraus à entrada das residências, para evitar inundação durante as altas marés que acontecem, eventualmente, dependendo da posição dos astros.
(foto) Igreja Santa Rita de Cássia – rua com pinguela

O tráfego de automóveis é proibido no centro histórico.

As irregularidades do calçamento obrigam os passantes a um vagaroso caminhar, para evitar quedas, principalmente em época de chuvas, quando as pedras ficam escorregadias. As pedras do calçamento das ruas, vinham de Portugal, como lastro, nos porões dos navios. As pedras brutas eram aqui substituídas por lastro infinitamente mais valioso: ouro e pedras preciosas

Cidade plana com ruas curvas

Paraty não teve crescimento espontâneo, nem caótico como muitas cidadezinhas brasileiras. Foi uma cidade projetada no papel. Como é plana, as ruas deveriam, logicamente, ter sido traçadas em linha reta. No entanto, todas elas são curvas ou parcialmente interrompidas por uma construção, como na segunda foto, de modo que o raio de visão seja curto.
Segundo informações turísticas, recebidas in loco, isso foi propositado, para facilitar a fuga dos moradores, em caso de invasão. Entretanto, há outras explicações para o mesmo fato. Uma delas seria para evitar o vento encanado; outra seria para otimizar a distribuição de sol nas residências; uma terceira opção também plausível do “entortamento” da ruas estaria ligada à maçonaria pelo fato de serem encontrados, em algumas esquinas, os três cunhais de pedra lavrada, que poderiam estar relacionados ao triângulo maçônico.

A marca da Maçonaria em Paraty

Casa com abacaxis e trombetas. Os abacaxis simbolizam o poder (com suas coroas); as trombetas, além de decorativas, serviam para o escoamento de água
Perseguidos na Europa, os maçons começaram a migrar para o Brasil, no século XVIII. No ciclo do ouro, foi fundada uma loja maçônica em Paraty (1833). Como eles                     não eram perseguidos aqui no Brasil, ousavam exibir   seus símbolos nas fachadas das residências. No centro histórico veem-se desenhos com simbologia maçônica nas fachadas, assim como esquinas, como foi dito acima, cunhais em pedra, em forma de triângulo, símbolo importante da maçonaria.
Com o progresso econômico de Paraty, os maçons resolveram demarcar a vila com seus símbolos característicos, para se fazerem reconhecer por confrades vindos de outras partes do mundo. Supõe-se que, por meio da simbologia nas fachadas, o forasteiro iniciado saberia distinguir o grau no morador, em sua confraria. Muitas outras simbologias maçônicas encontram-se na construção das casas, como, por exemplo, no posicionamento das janelas e na estrutura urbana da cidade. A forte referência do número 33, grau máximo da ordem, encontra-se presente na escala das plantas das casas (1:33:33) e na quantidade de quarteirões da cidade.  Antigamente havia o cargo de fiscal de quarteirão. Havia, portanto, 33 fiscais, para 33 quarteirões.
No século XVIII as portas e janelas em Paraty eram pintadas de branco e azul-hortênsia (cor da maçonaria). Pressupõe-se, portanto, que Paraty tenha sido urbanizada por maçons.
Sabe-se que a maçonaria surgiu entre pedreiros que construíam catedrais e igrejas  na Europa, durante a Idade Média. O termo maçon (“pedreiro”, em francês) esteve ligado à arte de construir, até o final de 1600, e influenciou a arquitetura mundial. Com o passar do tempo, houve crescente interesse na área social e beneficente. A ordem passou a receber pessoas ligadas à beneficência, sem nenhuma ligação com a construção. Com isso ampliou-se o leque de atuação da maçonaria moderna, que continua secreta. Sabe-se que ela influenciou fatos históricos e culturais em todo o mundo. No Brasil, teria influenciado na independência do País, na proclamação da República, na abolição da escravatura e até mesmo na criação da bandeira nacional. D. Pedro I era maçom, assim como José Bonifácio, tutor de D. Pedro II.
Paraty histórica
 A cidade Paraty (RJ) começou como simples entreposto comercial na época da colonização. Foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, em 1958,  e em julho de 2019, foi declarada Patrimônio Histórico da Humanidade, pela Unesco, por sua mescla única de riquezas naturais e históricas.
Paradoxalmente, a falência comercial e o êxodo da população que salvaram a cidade.  O desenvolvimento inicial se deveu, sobretudo, à sua posição estratégica, no fundo da baía da Ilha Grande. Por terra, o Caminho do Ouro da Piedade ligava a vila litorânea às minas de ouro, em Minas Gerais. O porto de Paraty chegou a ser o 2º mais importante do país.
No século XVIII, com a decadência da extração de ouro, Paraty decai comercialmente. No século XIX, com o ciclo do café, a cidade vive dias gloriosos. Todo o café, oriundo do Vale do Paraíba, era transportado pela trilha dos burros na Serra do Mar, e embarcado para a Europa, no porto de Paraty. Além do café, para burlar a proibição do tráfico de escravos, o desembarque de africanos era feito pelo Porto de Paraty.
Em 1870, a construção da linha férrea no Vale do Paraíba (1864), ligando Rio a São Paulo afetou intensamente a atividade econômica da região. Outro fator agravante foi a abolição dos escravos, em 1888. Na época, houve um êxodo em massa da população. Dos 16.000 habitantes, restaram apenas 600, entre eles, velhos, mulheres e crianças.
Com a criação de novas estradas de rodagem entre as cidades maiores, o lugarejo ao qual já era difícil o acesso ficou isolado. As trilhas restantes dos áureos tempos eram intransitáveis em períodos chuvosos. Felizmente, o isolamento de Paraty e sua decadência comercial possibilitaram a preservação da Mata Atlântica, do sistema ecológico, da estrutura arquitetônica da cidade, assim como de seus usos e costumes. Isso acabou gerando o terceiro ciclo comercial, ancorado no turismo.
Com a abertura da BR 101 (Rio/Santos) nos idos de 1980, a cidade recebeu novo impulso, com o turismo. Como atração turística, além da preservação arquitetônica, da beleza da paisagem e das florestas, há 65 ilhas e mais de 300 praias, na região.
Paraty atual
O turismo representa hoje sua grande fonte de renda. Para que a cidade se mantenha movimentada o ano todo, além das festas tradicionais e das festas religiosas, que não são poucas, há uma série de eventos fora de temporada, sendo os mais conhecidos a Flip (Feira Literária Internacional de Paraty) e o Festival da Cachaça ou Festa da Pinga. Festividades diversas agitam a cidade, ao longo do ano, como o festival de Jazz, o festival de cinema, o encontro de ceramistas e o encontro internacional de aquarelistas. Foi este último que me atraiu para a charmosa cidade. No mês de agosto, aquarelistas de todo o Brasil e do exterior afluem para pintar as belezas naturais da região, sob a batuta de grandes mestres do pincel. Passam uma semana desligados da rotina e ligados ao Belo que se apresenta o tempo todo diante de seus olhos, como se pedisse para ser registrado por suas palhetas multicoloridas.
(foto)  Professores do Encontro Internacional de Aquarelistas, em 2019
Jô Drumond - 2019