sexta-feira, 3 de maio de 2019

A GAMELEIRA AMALDIÇOADA




Como foi dito na crônica “O contador de causos”, publicada nesta coluna em 02 de abril de 2016, era usual, no sertão mineiro, a organização de reuniões para audição de literatura oral, principalmente nos finais de semana. Em meados do século passado, Xibiu, um famoso contador de causos, era sempre convidado pelos fazendeiros dos arredores a contar suas lorotas. Formava-se uma pequena plateia que, muitas vezes, atravessava horas sem perceber o fluir do tempo, presa ao fio narrativo.

Esse contador de histórias tinha o dom da eloquência. Associava intuitivamente o volume, a entonação da voz e a mímica à narrativa, de modo a causar comoção. Xibiu sentia-se poderoso ao ter diante de si uma plateia seleta, manipulada a seu bel-prazer. O público, já predisposto, extasiava-se com facilidade, ao sabor das aventuras e dos mistérios. É lamentável que a maioria dessas histórias se tenha dissipado na poeira do esquecimento.

Em minha última ida ao sertão, em 2019, tive o privilégio de ouvir um dos “causos” que ele contava, antes de sua única viagem sem volta, com destino provável, onde deve estar fazendo a alegria dos querubins, serafins e ofanins.

Era uma vez, em uma encruzilhada não muito distante, uma grande Gameleira, debaixo da qual, nenhuma erva brotava. Os habitantes da circunvizinhança diziam que a terra ali era estéril porque aquela árvore era amaldiçoada. Debaixo dela, à meia-noite, os demônios se reuniam para dançar e fazer festa. Diziam também que, se alguém quisesse fazer algum pedido à entidade demoníaca, naquele local e naquele horário, seria prontamente atendido. Ninguém nunca tinha tido o desplante de se aproximar do satânico festim.

Havia nas redondezas um velho apelidado de Papudo ou Zé do Papo, que carregava, com constrangimento, um grande bócio. Um aprendiz de doutor, vindo da cidade grande, disse-lhe que aquela protuberância nada mais era que o aumento da glândula tireoide, ocorrente em regiões montanhosas ou distantes do mar, devido a problemas de absorção e fixação de iodo no organismo. Acrescentou que, para evitar esse e outros tipos de anomalias congênitas, a vigilância sanitária exigia a adição de iodo ao nosso sal cotidiano. Mencionou a possibilidade de uma cirurgia. Isso seria quase impossível. Zé do Papo nunca tinha botado os pés fora do sertão. Desconhecia as gentes e os hábitos estranhos da cidade. Além disso não dispunha de meios pecuniários para tal façanha.

Desacreditava a história da Gameleira, mas, certo dia, cansado de ser motivo de deboches, resolveu tirar a história a limpo. O fato é que o peso das pilhérias pesava mais que o papo. Como se diz no sertão, ele “comprou coragem” durante um bom tempo e, mesmo assim, meio temeroso, lá se foi, em direção à gameleira, em noite de lua nova. De longe avistou claridade, debaixo da árvore e começou a ouvir os sons da noitada demoníaca. Aproximou-se com humildade e pediu, com grande modéstia, que o livrassem daquele incômodo que o acompanhava havia muito tempo. Os demônios se apiedaram do pobre coitado. Num passe de mágica, seu papo apareceu pregado no tronco da árvore. Papudo passou a mão pelo pescoço para se certificar. Mistério!!! Não era simples crendice. Voltou despapado para casa, para espanto geral. A notícia correu por trilhas e veredas, sertão afora. Outro papudo, sabedor do ocorrido, resolveu fazer o mesmo. Porém, diferentemente do primeiro, chegou pisando firme, de nariz em pé, com ares arrogantes, dizendo com altivez, que, como haviam tirado o papo do outro, que tirassem o seu também. Os capetas não gostaram de sua petulância e decidiram dar-lhe a merecida lição: tiraram o papo colado na árvore e o colocaram na cacunda do forasteiro, que voltou descabriado, com um papo na frente e outro atrás.

Moral da história: nem o capeta tolera petulância. Todos devem ser tratados com educação e delicadeza.

Disseram-me que Xibiu narrava a festa e a dança demoníaca com profusão de detalhes, prendendo a atenção de todos com mímica e impostação de voz. Nunca teve acessos a livros, nem ao saber convencional, mas carregava muita sabedoria nos bolsos da vida. Aplicava-se na arte de encantar e de conduzir os ouvintes a universos nunca dantes vislumbrados. Apesar de jamais ter-se deslocado do sertão, era o guia perfeito para grandes viagens míticas.

Nota: A gameleira é considerada sagrada na África, sobretudo em Angola, onde se cultua o orixá Irokô, também conhecido como Tempo. Nos recônditos do Brasil ainda há resquícios dessa crendice. Há rituais e diversos trabalhos de encantamentos feitos ao pé da gameleira branca ou fícus doliaria.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

LABAREDAS VORAZES

A catedral de Notre Dame resistiu a batalhas e guerras, durante quase um milênio, mas não resistiu à voracidade das labararedas que abocanhavam tudo que encontravam pela frente. Fiquei em estado de choque ao ver, pela televisão, imagens das chamas. Era algo inimaginável. Já assisti a tantos concertos nessa catedral, já subi tantas vezes até o topo das torres, para apreciar a paisagem, já visitei o “tesouro” (parte reservada às relíquias) inúmeras vezes, já assisti a exames de futuros organistas, no enorme órgão de tubos, datado do século XVII. Quantas vezes apreciei aquelas rosáceas maravilhosas, as gárgulas feitas para o escoamento de água, porém com figuras medonhas e amedrontadoras, para espantar maus espíritos... Não! Não pode ser verdade! Deve ser montagem...pura ficção!

A imagem do monumento em chamas me remeteu ao primeiro e maior deslumbramento que tive diante de uma obra de arte: a fachada iluminada dessa mesma catedral. Em Teoria da Arte o efeito provocado pelo Belo absoluto no espectador se chama “estesia”. Trata-se de uma forte emoção, ou melhor, de uma comoção, acompanhada de tremor, frio na espinha e, às vezes, de vontade de chorar, diante de uma obra de arte: uma espécie de êxtase ou epifania.

Isso aconteceu comigo, na primeira vez que vi Paris, aos vinte anos, ao ser contemplada com uma bolsa
de estudos, pela Embaixada da França. Inexperiente e tímida, oriunda do sertão mineiro, nunca havia entrado em um avião. Não sabia como me comportar em situações desconhecidas, mas tampouco queria demonstrar ignorância. Já havia viajado muito em telas cinematográficas. Tentava então imitar os passageiros dos filmes, em aeroportos e viagens internacionais. Atravessei o oceano temerosa. Não tinha a mínima ideia do que ia encontrar pela frente. Eu falava francês. Menos mal. No aeroporto de Paris, peguei uma “navette”, pequeno ônibus que faz o longo trajeto até à cidade. Depois tomei um táxi e me dirigi ao Fiap (Foyer International d’Accueil de Paris) uma construção moderna, que recebia estudantes estrangeiros, a convite do governo francês. Eu não conhecia vivalma na cidade luz. Na recepção, disseram-me que eu dividiria um grande quarto com outras estudantes estrangeiras, que participariam do mesmo curso, na Universidade de Sorbonne Nouvelle. Excelente notícia. Não queria ficar sozinha. Ao entrar no quarto, percebi que eu era a última a chegar. As outras, já instaladas, estavam de saída. Assim que coloquei a bagagem no chão, minhas futuras colegas me disseram em francês. – “Vamos dar um passeio. Quer vir conosco?” Deixei a bagagem no meio do quarto e saí atrás delas. Estava anoitecendo. Tomamos o metrô na estação Glacière, e, após algumas baldeações, saímos em uma rua enxameada de transeuntes, todos muito apressados, como se estivessem correndo “para tirar o pai da forca”, como se diz no sertão. Fixei bem a fisionomia das companheiras e não desgrudei os olhos delas um segundo sequer. Eu não saberia voltar ao Fiap. Não saberia nem mesmo fazer sozinha as baldeações do metrô. O medo de me perder era tal, que as seguia, no meio da multidão, com os olhos fixos em suas silhuetas.

A um dado momento, ao virar uma esquina, percebi um clarão. Levantei os olhos e estremeci. Chorei
de emoção. Nunca havia visto nada tão esplendoroso, tão monumental. Até hoje, não me canso de apreciar a beleza e a grandiosidade da construção. Dizem que as catedrais góticas, todas elas altíssimas, com muita entrada de luz pelos vitrais, tinham como objetivo mostrar ao fiel sua pequenez diante da grandiosidade do Senhor. Esse estilo arquitetônico primava pela verticalidade da construção, com torres pontiagudas, janelas e imagens alongadas, tudo remetendo ao infinito. Ao se sentir diminuto, o espectador buscava, e ainda busca, uma âncora na fé, na religião.

Mais tarde, as catedrais barrocas tinham objetivo similar. Todos os elementos estéticos visavam a
provocar intensa emoção: volutas, flores, monstros, anjinhos, elementos contorcidos e espirais, jogo de claro-escuro, efeitos ilusórios e de perspectivas... A profusão de elementos decorativos era tamanha que o olhar do espectador se perdia na riqueza de detalhes, no exagero da decoração, e na magnificência do douramento. Tudo isso fazia com que o fiel se sentisse atordoado, sem chão. Naquele momento, onde buscaria um eixo que o sustentasse? Na religião, evidentemente. Assim, os cálculos dos templos não eram apenas matemáticos. Tinham objetivos mais abrangentes.

Lá se foram algumas décadas, e muita água correu no rio Sena, ao lado da Catedral. No entanto, sinto ainda a força do impacto da primeira mirada de Notre Dame. O impacto de hoje foi diferente. Fiquei atônita. Como muito bem se expressou o Presidente Emmanuel Macron, ao se aproximar do incêndio: “Uma parte de nós está queimando”. E digo mais: continuará queimando per omnia saecula saeculorum.




quinta-feira, 11 de abril de 2019

IMPREVISTO PREVISÍVEL





Uma vida parou sob um ônibus que levava muitas outras, vida afora. Imprevisto previsível, com diagnóstico preciso: Nada a fazer. Motivo: desatenção do pedestre.

De sua janela, Malu viu uma massa disforme, ensanguentada. Era o que restava de uma mente brilhante, prensada no asfalto. Mário voltava para casa, após um dia extenuante de trabalho. Seu cão de estimação atravessara a rua para recebê-lo, com pulos e lambidas de satisfação. Entretido com o animal, não observou o trânsito.

Malu o esperava com mesa posta, vinho no decantador e flores na jarra. Não podia ser! Fechou a janela e fechou-se para o mundo. Não, não era ele! Podia ser, mas podia não ser. A qualquer momento, entraria porta adentro, alegre, bonachão, tentando adivinhar, pelo olfato, os eflúvios vindos da cozinha. Estava um pouco atrasado, mas jantariam juntos, com certeza. Malu deambulou pelos cômodos, sem saber o que fazer. Sobre o criado mudo, pegou o livro que Mário estava lendo nos últimos dias, em francês. O título indiciava mau agouro. Tous les hommes sont mortels (Todos os homens são mortais), de Simone de Beauvoir. Brincadeira do destino? Leitura interrompida...ou seria a vida? Abriu aleatoriamente o livro na página 553. Havia uma frase sublinhada por ele, que inferia o niilismo do tempo e do espaço: “J’avançais pas après pas vers l’horizon qui reculait à chaque pas”. (Eu avançava passo a passo em direção ao horizonte, que recuava a cada passo). Até o acaso estava contra ela. Fechou o livro, assentou-se no sofá e fechou os olhos.

Horas depois, tudo silenciara do lado de fora. Não mais sirenes, nem atropelo de curiosos. Apenas o inseguro farfalhar das árvores, expostas ao vento. Pela fresta da janela, observou uma mancha escura no asfalto. O anoitecer silenciava o alarido da rua. A lerdeza do tempo aumentava sua ansiedade.

O telefone tocou. Recusou-se a atender. Letárgica, pôs-se a zanzar dentro dos limites domésticos. Tudo parecia mudo, estático, abandonado. Roupas dele, sem vida, no armário; barbeador sobre a pia do banheiro; colônia masculina... abriu o frasco. Inspirou fundo para sentir a presença desejada. Pegou na estante O livro do desassossego, de Fernando Pessoa, mas não passou da décima página. Espera doída, sofrida; coração em atropelo. Espraiou-se no sofá e começou a pescar, na memória, flashes de uma existência compartilhada. Se o mau pressentimento se concretizasse, nada faria mais sentido. Por que estudar uma vida inteira, especializar-se, trabalhar o dia todo, todos os dias, para acabar um estorvo, no meio da rua “atrapalhando o tráfego”, como diz a música de Chico Buarque?

Meio a reflexões, Malu passou parte da vida a limpo, desde o dia em que se haviam conhecido, na praia de Ipanema: o encantamento inicial, o namoro, o noivado, o casamento, a vida a dois, os passeios, a feliz cumplicidade nas minudências do cotidiano, a viagem por fazer, na semana seguinte... uma viagem programada e esperada há tanto tempo não podia se reduzir a nada. O Nada é mais implacável que o tempo - pensava ela -. Ele abocanha sorrateiramente o que bem lhe apraz, a qualquer momento, sem pedir licença.

Malu acabou adormecendo no sofá. Acordou assustada, às seis horas da manhã com o toque do telefone. Temendo má notícia, não atendeu. Arrancou os fios da tomada. Foi ao quarto do casal, na esperança de que Mário tivesse entrado sorrateiramente durante a madrugada. Cama vazia. Tudo na mais perfeita ordem.

Quarenta minutos após, toque de campainha. Quem poderia chamar assim tão cedo? Não abriria a ninguém. Melhor seria prolongar a espera ou fugir da agonia. Como fugir? Para onde? Observou, na prateleira, garrafas enfileiradas, convidativas. Vislumbrou uma possibilidade prática de fuga sem deslocamento. Tomou whisky como se água fosse. Abocanhou com avidez todo o estoque de Valium e adormeceu placidamente.

Jô Dumond