terça-feira, 29 de maio de 2018

ALEGORIAS NO SERTÃO MINEIRO



Em fevereiro de 2018, desloquei-me de carro, de Vitória até Guimarânia, a terra dos Guimarães (MG), num percurso de mais de mil quilômetros, para assistir a um desfile escolar de rua, com bandas, fanfarras e carros alegóricos.

Alguém insinuou que seria melhor fazer a metade desse percurso, até à Marquês de Sapucaí, no Rio. Além de mais perto, o desfile certamente superaria em muito o da pequena cidade mineira. Para mim, seguramente não superaria. O evento de Guimarânia teria sabor de infância e de mineirice. Lembro-me com saudades dos desfiles escolares de minha infância e juventude, em Patos de Minas, durante na Fenamilho (Festa Nacional do Milho), todo mês de maio, e em setembro, na Festa da independência brasileira.

O desfile de Guimarânia superaria também os de minha juventude, pelo fato de ter sido feito em homenagem a uma pessoa que me é muito querida, à ex-professorinha que me ensinou o “be-a-bá”, há seis décadas. Anatildes Nunes foi também a pioneira na pesquisa histórica da “terra dos Guimarães”, situada na região do Alto Paranaíba.

 Em 2.012, na ocasião dos festejos do aniversário da cidade, ela publicou sua pesquisa em formato de livro: História de Guimarânia – o que o povo conta e os documentos registram. Foi um trabalho moroso e difícil, que constou da busca de documentos e de fotos, nos quatro cantos do município, assim como de entrevistas feitas com idosos da região, no afã de resgatar o que o tempo havia apagado.

 “Trata-se de uma história tecida com fios coloridos de boa vontade, respeito, paciência, persistência e muito carinho”. Foi o que afirmou a prefaciadora do livro, Valci Aparecida Xavier Guimarães, que, na época, ocupava o cargo de Secretária de Educação e Cultura do município. A brilhante ideia dos mentores projeto, Valci e o prefeito Virmondes Machado, foi concretizada graças à perseverança da pesquisadora. A publicação foi feita em tiragem restrita de 500 exemplares, sob os auspícios do poder público, na ocasião do cinquentenário de Guimarânia.

Em 2018, houve um grande desfile comemorativo do 55º aniversário da cidade, organizado pela administração atual. A temática central do evento foi a pesquisa feita por Anatildes. Cada carro alegórico e cada “pelotão” referia-se a um capítulo do livro. Foi uma justa homenagem feita à grande educadora e a seu minucioso trabalho; uma feliz ideia que merece nossos aplausos.

O evento se iniciou às 16:00 horas, com a banda da polícia militar, seguida de um carro alegórico que abria o desfile, contendo, em uma imponente uma poltrona vermelha, a autora do livro. Os pelotões ou blocos de alunos das escolas locais, desfilaram intermediados por fanfarras de diversas cidades e por carros alegóricos, referentes aos temas abordados: A ocupação da terra, o surgimento do arraial, a emancipação, o desenvolvimento sociocultural, o progresso, as comunidades rurais, a educação, a saúde, o futebol, a religiosidade, as festas, celebridades e autoridades municipais ao longo dos tempos, usos e costumes de antanho, entre outros.

Não vou me ater aos detalhes do desfile. As fotos falam por si. Encerro essa curta nota citando o último parágrafo do prefácio de Valci Guimarães, no qual ela se refere à autora do livro: “... se Guimarães Rosa afirmou que ‘o sertão é o mundo’, essa mulher, verdadeira tecelã, teve a ousadia e a coragem de tecer e registrar um mundo de histórias vividas e contadas por pessoas que se tornam iguais em sentimentos e lutas em suas travessias de vida.”

domingo, 18 de março de 2018

“BURROCRACIA”

Se se pode complicar, pra que simplificar?” Esse ditado, às avessas, adapta-se a algumas circunstâncias que beiram a irrisão, no que se refere à burocracia.

JÔ DRUMOND 
O inventário de meu padrinho arrasta-se por mais de uma década: exaustivas idas e vindas a cartórios e Fóruns, trocas de advogados, agrimensuras desencontradas, desavenças na demarcação de divisas, demandas de novas documentações... A cada dia surgem novas exigências. O processo continuará emperrado até não se sabe quando. Uma extravagância hílare exigida, é a anual “prova de morte”, ou seja, a atualização do Atestado de Óbito, como se o morto pudesse renascer das cinzas, tal qual Fênix.


O mito de Fênix remete-me a uma circunstância inusitada. Certo dia, meu marido me enviou uma mensagem, de seu local de trabalho, dizendo que me havia deixado um presente, sobre a escrivaninha. Estranhei o fato de ser presenteada fora de data comemorativa. O estranhamento aumentou, quando percebi que se tratava de um simples envelope tamanho ofício. Assim que o abri a surpresa se multiplicou.  Tratava-se nada menos que um contrato de prestação de serviços de cremação entre mim e o Parque da Paz. Minha primeira impressão foi a de que ele desejava minha morte. 
Depois, ao ouvir sua justificação, louvei a iniciativa. Ele havia feito também um contrato em seu nome, no intuito de simplificar a vida da família, na hora do adeus. Resolvi ler o teor integral do texto. A alínea 1.3 da cláusula nº 1, “Dos serviços”, me provocou boa gargalhada: “Os serviços serão prestados uma única vez e somente depois de pago o seu preço na pessoa do próprio contratante ou na de quem ele expressamente determinar”. Certamente quem redigiu tal disparate acreditava também no “renascer das cinzas”, de Fênix.

Continuando a temática macabra, remeto-me ao falecimento de meu pai, na década de 80, no interior de Minas. Foi-nos solicitado seu título de eleitor, para que o corpo fosse liberado. Era impossível localizar tal documento. Seu título não tinha mais razão de existir. O voto deixa de ser obrigatório após os sessenta anos. Meu pai, já centenário, não votava havia mais de quarenta. Um de meus irmãos empenhou-se na busca do documento, em vão. Percebendo a inutilidade do intento e a urgência do enterro, procurou o necrotério uma vez mais, justificou o desaparecimento do título de eleitor e solicitou a liberação do corpo. Mediante resposta negativa, num ímpeto de indignação, disse-lhes que ficassem com o corpo e que fizessem dele bom proveito. Na saída do hospital, foi interceptado por alguém que se prontificava a lhe entregar o “pacote” indesejado.

Sabe-se que para o efetivo funcionamento de uma sociedade, é mister uma estrutura organizada, composta de regras e procedimentos preestabelecidos. Porém a conhecida morosidade do sistema burocrático descamba para uma definição pejorativa de lentidão ou de atraso de vida.

Lamentavelmente, como se vê, não satisfeita em nos perseguir vida afora, a burocracia dá o ar de sua graça também na hora da partida, como no caso de meu pai, assim como após, na “desvida”, como no caso de meu padrinho.

quarta-feira, 7 de março de 2018

O MORRO DAS MESAS

Jô Drumond  -  Escritora 

(No Dia Internacional da Mulher, em 2018, uma homenagem à “professorinha que me ensinou o be-a-bá”, em 1958)

  



Em meados do século XX, a jovem Anatildes foi convidada para ministrar o curso primário às crianças das redondezas na sede da fazenda do Senhor João Bento, situada no Morro das Mesas, município de Coromandel (MG).

Em uma cozinha velha, desativada havia tempos, foram colocadas pranchas de madeira, à
guisa de carteiras, sobre estacas fincadas em piso de chão batido. Em lugar do antigo quadro-negro, usariam uma grande janela lisa, de madeira, recostada à parede, oriunda de uma demolição qualquer. Mas como escrever na improvisada lousa, se não havia giz, nem apagador? Resolvia-se um problema de cada vez. No primeiro dia de aula, a professora levou os alunos até o córrego mais próximo para que catassem pedrinhas conhecidas na região como “toá” ou “tuá”. Eram pedras macias e coloridas, que se prestavam para substituir o giz.  O pretenso quadro-negro seria apagado com trapos.  Tendo carteira, quadro, giz, apagador e professora, a escolinha foi inaugurada com dez alunos. Pouco depois já havia dobrado o quadro discente.

Cada aluno levava de casa sua merenda. Havia uma só classe de diferentes níveis.  A professorinha dava o melhor de si. Não era formada. Tinha apenas o curso primário, feito na roça, que consistia em aprender a ler, a escrever e a fazer as quatro operações. Anatildes era muito estudiosa. Na puberdade, ela já tinha condições de assumir a regência de classe em tal escolinha. Autodidata, debruçava-se sobre os livros, sem nenhum incentivo por parte da família. Pelo contrário, a família insistia que ela se dedicasse a prendas domésticas, mais condizentes com sua condição de futura moça casadoira. O fazendeiro João Bento, todo garboso, foi à cidade dar a boa nova ao poder público:

 - “Afundei” uma escola, Seu Prefeito, lá no Morro das Mesas. Tá indo de vento em popa!

Nas eleições seguintes, elegeu-se prefeito um amigo do dito fazendeiro, o que propiciou a elevação do improvisado educandário ao patamar de Escola Municipal, sob os auspícios da política local. A Prefeitura de Coromandel abriu concurso para professores.  Anatildes foi classificada em segundo lugar, aos 15 anos. Devido a seu brilhantismo no concurso, foi convidada a participar de uma seleção para aperfeiçoamento em um Educandário chamado Fazenda do Rosário, sob a responsabilidade da renomada psicóloga e pedagoga russa Helena Antipoff*, próximo a Belo Horizonte. Anatildes concorreu com 150 candidatas a uma das 40 vagas, tendo sido aprovada com louvor para um curso de normalistas rurais, com duração de quatro anos.

Naquela época não havia estradas de rodagem a contento. As viagens eram muito demoradas devido aos buracos recheados de poeira ou de lama. A jovem estudante tomou uma jardineira no entroncamento da fazenda do Geraldo Bento, com destino à cidade de Patrocínio. De lá tomou um trem que gastava nada menos que 24 horas para percurso de menos de 400 km, até à capital do Estado. Partindo de Belo Horizonte, continuou viagem, sacolejando-se  em outra jardineira até à Fazenda do Rosário.

Viajou chorosa e pesarosa. Seu coraçãozinho, apesar de novo, já tinha sido entregue a um rapazinho da vizinhança, chamado Tião. Mesmo querendo ficar, ela foi cumprir seu destino de professora, naquelas lonjuras desconhecidas de todos dali.  Ficou um semestre, com os pés no internato, mas o pensamento voltado para a distante Charneca, onde morava sua família e seu amado. Mergulhava a cabecinha ora nos livros, ora nas nuvens. Nunca havia se distanciado de casa. Sentia saudades dos pais, dos irmãos, da fazenda, dos alunos... queria voltar, mas não ousava abandonar o curso. 

- Com tantas moçoilas assanhadas atrás do meu Tião - matutava ela - ele vai acabar se enrabichando por alguma delas. Com certeza não me esperará por quatro anos. É tempo demais!!!

Numa enevoada e fria manhã de julho, recebeu, juntamente com a correspondência familiar, um bilhetinho ditado por sua irmã e afilhada que, por acaso, era eu, aos 4 anos de idade. O bilhetinho dizia apenas o seguinte: “Madrinha, esta noite, eu chorei, chorei, chorei e chorei. Sabe por que? Estava com saudades de você.”

Ao ler essas palavras, ela se pôs a chorar e tomou a decisão definitiva de voltar para seu torrão natal. Porém, três semanas após ter voltado à Charneca, recebeu um convite irrecusável, da educadora Helena Antipoff, para um curso superintensivo de treinamento para professores rurais, que duraria de agosto a dezembro, com três turnos diários de aulas. Partiu novamente rumo à Fazenda do Rosário, porém com menos pesar. A temporada seria curta.

Aluna brilhante, de tão estudiosa, foi apelidada de “gramática”. Assim era chamada pelas colegas que sempre recorriam a ela nos momentos de dificuldade gramatical.  A Fazenda do Rosário foi um forte elo entre dois mundos completamente díspares: o de uma filha da aristocracia russa, cujo sonho era ensinar, e o de uma filha do sertão mineiro, cujo sonho era aprender.

Ao concluir o curso, Anatildes foi trabalhar na Escola Rural Monsenhor Fleury, no arraial do Pântano, onde lhe foi destinada uma classe heterogênea, com 64 alunos, com idade que variava de seis anos e meio a quatorze. Foi nessa escola, que aprendi com ela o “bê-a-bá”  e muitas coisas mais. Anatildes, minha irmã, madrinha e professora, iniciou-me nas letras, em cujas brenhas me enveredei com gosto, e de onde nunca mais quis sair.

Posteriormente ela fez um curso intensivo chamado Madureza, correspondente ao segundo grau, submeteu-se ao vestibular, graduou-se em pedagogia, fez cursos de pós-graduação e dedicou-se integralmente à educação.

 Seis décadas após ter perdido o primeiro namorado, nas brumas do tempo, ela reencontrou casualmente seu Tião. Ambos, viúvos e aposentados, casaram-se e radicaram-se em Guimarânia. Atualmente, aos 78 anos, com livros publicados, ela tem participação efetiva na vida cultural da pequena cidade plantada em plena cratera de um vulcão há muito extinto.

            A professora Anatildes, a cidade de Guimarânia, a fazenda da Charneca e as veredas do sertão mineiro fazem parte de minha história de vida. Foi ali, no coração do Brasil, que meus pequeninos pés começaram a palmilhar a vastidão do mundo.


NOTA
*Helena Antipoff (1892-1974) era filha de um general do Exército Imperial Russo. Oriunda da aristocracia, pôde estudar Ciências, na renomada Universidade de Sorbonne, em Paris, num


período em que se interessou muito pela Psicologia e pela Filosofia. Posteriormente, especializou-se em Psicologia Educacional em Genebra. Na Suíça, a convite de seu orientador, Édouard Claparède, integrou-se na equipe do Instituto Jean-Jacques Rousseau, dedicando-se à investigação da relação entre a aprendizagem e a medição da inteligência. Veio para o Brasil em 1929, onde fundou a Sociedade Pestalozzi (1942). Ela foi também a fundadora da cadeira de Psicologia da UFMG.
No final da década de 1930, Helena Antipoff se interessou pela situação dos alunos docentes da zona rural. Com o objetivo da fixação do homem ao campo, em melhores condições de vida, dedicou-se à preparação de professores da zona rural, para mantê-los em seu meio ambiente. Com esse objetivo, utilizando-se de métodos adequados às condições sociais e às aspirações das comunidades, recolheu fundos e adquiriu a Fazenda do Rosário, com cerca de 220 hectares, em Ibirité, a 26 k, de Belo Horizonte, onde faleceu após mais de 4 décadas de absoluta dedicação à Atividade educacional.