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Jô Drumond - Escritora |
(No Dia
Internacional da Mulher, em 2018, uma homenagem à “professorinha que me ensinou
o be-a-bá”, em 1958)
Em meados do século XX, a jovem
Anatildes foi convidada para ministrar o curso primário às crianças das
redondezas na sede da fazenda do Senhor João Bento, situada no Morro das Mesas,
município de Coromandel (MG).
Em uma cozinha velha, desativada havia
tempos, foram colocadas pranchas de madeira, à
guisa de carteiras, sobre
estacas fincadas em piso de chão batido. Em lugar do antigo quadro-negro,
usariam uma grande janela lisa, de madeira, recostada à parede, oriunda de uma
demolição qualquer. Mas como escrever na improvisada lousa, se não havia giz,
nem apagador? Resolvia-se um problema de cada vez. No primeiro dia de aula, a
professora levou os alunos até o córrego mais próximo para que catassem
pedrinhas conhecidas na região como “toá” ou “tuá”. Eram pedras macias e
coloridas, que se prestavam para substituir o giz.
O pretenso quadro-negro seria apagado com
trapos.
Tendo carteira, quadro, giz,
apagador e professora, a escolinha foi inaugurada com dez alunos. Pouco depois
já havia dobrado o quadro discente.
Cada aluno levava de casa sua merenda.
Havia uma só classe de diferentes níveis.
A professorinha dava o melhor de si. Não era formada. Tinha apenas o
curso primário, feito na roça, que consistia em aprender a ler, a escrever e a
fazer as quatro operações. Anatildes era muito estudiosa. Na puberdade, ela já
tinha condições de assumir a regência de classe em tal escolinha. Autodidata,
debruçava-se sobre os livros, sem nenhum incentivo por parte da família. Pelo
contrário, a família insistia que ela se dedicasse a prendas domésticas, mais
condizentes com sua condição de futura moça casadoira. O fazendeiro João Bento,
todo garboso, foi à cidade dar a boa nova ao poder público:
-
“Afundei” uma escola, Seu Prefeito, lá no Morro das Mesas. Tá indo de vento em
popa!
Nas eleições seguintes, elegeu-se prefeito
um amigo do dito fazendeiro, o que propiciou a elevação do improvisado
educandário ao patamar de Escola Municipal, sob os auspícios da política local.
A Prefeitura de Coromandel abriu concurso para professores. Anatildes foi classificada em segundo lugar,
aos 15 anos. Devido a seu brilhantismo no concurso, foi convidada a participar
de uma seleção para aperfeiçoamento em um Educandário chamado Fazenda do
Rosário, sob a responsabilidade da renomada psicóloga e pedagoga russa Helena
Antipoff*, próximo a Belo Horizonte. Anatildes concorreu com 150 candidatas a
uma das 40 vagas, tendo sido aprovada com louvor para um curso de normalistas
rurais, com duração de quatro anos.
Naquela época não havia estradas de
rodagem a contento. As viagens eram muito demoradas devido aos buracos
recheados de poeira ou de lama. A jovem estudante tomou uma jardineira no
entroncamento da fazenda do Geraldo Bento, com destino à cidade de Patrocínio.
De lá tomou um trem que gastava nada menos que 24 horas para percurso de menos
de 400 km, até à capital do Estado. Partindo de Belo Horizonte, continuou
viagem, sacolejando-se em outra
jardineira até à Fazenda do Rosário.
Viajou chorosa e pesarosa. Seu
coraçãozinho, apesar de novo, já tinha sido entregue a um rapazinho da vizinhança,
chamado Tião. Mesmo querendo ficar, ela foi cumprir seu destino de professora,
naquelas lonjuras desconhecidas de todos dali.
Ficou um semestre, com os pés no internato, mas o pensamento voltado
para a distante Charneca, onde morava sua família e seu amado. Mergulhava a
cabecinha ora nos livros, ora nas nuvens. Nunca havia se distanciado de casa.
Sentia saudades dos pais, dos irmãos, da fazenda, dos alunos... queria voltar,
mas não ousava abandonar o curso.
- Com tantas moçoilas assanhadas atrás do
meu Tião - matutava ela - ele vai acabar se enrabichando por alguma delas. Com
certeza não me esperará por quatro anos. É tempo demais!!!
Numa enevoada e fria manhã de julho,
recebeu, juntamente com a correspondência familiar, um bilhetinho ditado por sua
irmã e afilhada que, por acaso, era eu, aos 4 anos de idade. O bilhetinho dizia
apenas o seguinte: “Madrinha, esta noite, eu chorei, chorei, chorei e chorei.
Sabe por que? Estava com saudades de você.”
Ao
ler essas palavras, ela se pôs a chorar e tomou a decisão definitiva de voltar
para seu torrão natal. Porém, três semanas após ter voltado à Charneca, recebeu
um convite irrecusável, da educadora Helena Antipoff, para um curso
superintensivo de treinamento para professores rurais, que duraria de agosto a
dezembro, com três turnos diários de aulas. Partiu novamente rumo à Fazenda do
Rosário, porém com menos pesar. A temporada seria curta.
Aluna
brilhante, de tão estudiosa, foi apelidada de “gramática”. Assim era chamada
pelas colegas que sempre recorriam a ela nos momentos de dificuldade
gramatical. A Fazenda do Rosário foi um
forte elo entre dois mundos completamente díspares: o de uma filha da
aristocracia russa, cujo sonho era ensinar, e o de uma filha do sertão mineiro,
cujo sonho era aprender.
Ao concluir o curso, Anatildes foi
trabalhar na Escola Rural Monsenhor Fleury, no arraial do Pântano, onde lhe foi
destinada uma classe heterogênea, com 64 alunos, com idade que variava de seis
anos e meio a quatorze. Foi nessa escola, que aprendi com ela o “bê-a-bá” e muitas coisas mais. Anatildes, minha irmã,
madrinha e professora, iniciou-me nas letras, em cujas brenhas me enveredei com
gosto, e de onde nunca mais quis sair.
Posteriormente ela fez um curso
intensivo chamado Madureza, correspondente ao segundo grau, submeteu-se ao
vestibular, graduou-se em pedagogia, fez cursos de pós-graduação e dedicou-se
integralmente à educação.
Seis décadas após ter perdido o primeiro namorado,
nas brumas do tempo, ela reencontrou casualmente seu Tião. Ambos, viúvos e
aposentados, casaram-se e radicaram-se em Guimarânia. Atualmente, aos 78 anos,
com livros publicados, ela tem participação efetiva na vida cultural da pequena
cidade plantada em plena cratera de um vulcão há muito extinto.
A professora Anatildes, a cidade de
Guimarânia, a fazenda da Charneca e as veredas do sertão mineiro fazem parte de
minha história de vida. Foi ali, no coração do Brasil, que meus pequeninos pés
começaram a palmilhar a vastidão do mundo.
NOTA
*Helena Antipoff (1892-1974) era filha
de um general do Exército Imperial Russo. Oriunda da aristocracia, pôde estudar
Ciências, na renomada Universidade de Sorbonne, em Paris, num
período em que se
interessou muito pela Psicologia e pela Filosofia. Posteriormente,
especializou-se em Psicologia Educacional em Genebra. Na Suíça, a convite de
seu orientador, Édouard Claparède, integrou-se na equipe do Instituto
Jean-Jacques Rousseau, dedicando-se à investigação da relação entre a
aprendizagem e a medição da inteligência. Veio para o Brasil em 1929, onde
fundou a Sociedade Pestalozzi (1942). Ela foi também a fundadora da cadeira de
Psicologia da UFMG.
No final da década de 1930, Helena
Antipoff se interessou pela situação dos alunos docentes da zona rural. Com o
objetivo da fixação do homem ao campo, em melhores condições de vida,
dedicou-se à preparação de professores da zona rural, para mantê-los em seu
meio ambiente. Com esse objetivo, utilizando-se de métodos adequados às
condições sociais e às aspirações das comunidades, recolheu fundos e adquiriu a
Fazenda do Rosário, com cerca de 220 hectares, em Ibirité, a 26 k, de Belo
Horizonte, onde faleceu após mais de 4 décadas de absoluta dedicação à Atividade
educacional.