Um Senhor, já bem inclinado devido ao peso da idade, andava sempre acompanhado por um vira-latas de pequeno porte. Na verdade, o vira-latas não apenas o acompanhava. Passava maior parte do tempo sobre o cangote do velho corcunda. Habituado aos frequentes cochilos da idade, assentava-se em sua poltrona preferida, e dormitava quase o dia todo, com a cabeça pendida para o chão. Sobre seus ombros no cocuruto do pescoço, aninhava-se o cãozinho sonolento. Era uma cena habitual aos familiares, mas assaz interessante para os que por ali passavam. Quando o velho acordava, o cão apenas mudava de endereço: do cangote para o colo, do colo para o braço. Assim viveram em perfeita harmonia durante muitos anos, até que a fria mão da morte veio buscar o ancião.
O cachorro, sem nada entender, esteve presente durante todo o velório, sem direito a pular para dentro do caixão. Acompanhou o séquito até a porta do cemitério, onde foi impedido de entrar. Fecharam-lhe o gradil bem na ponta do focinho. Ali ficou postado, na esperança de uma brecha para entrar. Após o enterro, todos partiram, exceto o coveiro que o escorraçou mais uma vez antes de retomar seus afazeres. Do lado de fora, o cachorro gania sem cessar. O coveiro, incomodado com a persistência do cão, abriu-lhe o portão, para verificar o que ele queria. O animal entrou como um corisco e, sem nenhuma informação itinerária, foi diretamente à sepultura de seu amo, como se já soubesse de antemão o local onde fora enterrado. Farejou a terra remexida, alojou-se sobre o monturo da sepultura e ali permaneceu dias e noites sem se deslocar, a não ser para as necessidades básicas. Os coveiros, sensibilizados com tamanha fidelidade, começaram a trazer-lhe alimentos. Por ali foi ficando, ficando… tornou-se guardião daquela lúgubre morada. Viveu ainda longos anos sem arredar pé da sepultura de seu amo, até que a natureza providenciou-lhe o encontro dos dois, no além.
O coveiro não sabia o que fazer com o corpo do animal. Não tinha coragem de encaminhar para o lixão os despojos do ser mais fiel e amoroso que havia conhecido.
Não precisou de muita imaginação para resolver a questão. Decidiu dar-lhe guarita sob alguns palmos de terra fofa, junto daquele que velara por toda a vida. Lá ficaram ambos, amo e amado, unidos no silêncio da morte e na imensidão da eternidade.
Dizem que, às vezes, podem ser vistos a passear pelas nuvens, em meio a tufos de algodão. Com boa dose de imaginação, percebem-se entre cúmulos, os cabelos brancos do velhinho, e, logo abaixo, seu cãozinho de estimação, enroscado no “cangote da cacunda”.
Jô Drumond