Numa determinada agência bancária no interior do Ceará, havia um cliente pretensamente acima de qualquer suspeição, porém bastante suspeito. Tratava-se de um Monsenhor, sério, honesto e de moral ilibada.
Um belo dia, chegou à cidade o inspetor Juarez, vindo do Sul do país para averiguar a situação do banco. Encontrou uma dívida enorme em nome de uma cooperativa criada pela paróquia e administrada extraoficialmente por um Monsenhor. Segundo o gerente, o religioso se recusava a pagá-la, alegando ser a dívida oriunda da cooperativa. Feita a auditoria, averiguou-se que se tratava de uma cooperativa fantasma. A relação entre banco e cliente andava cada vez mais tensa. De um lado, acirramento da cobrança; de outro, recusa peremptória.
Certo dia, a autoridade religiosa foi convidada a comparecer à agência bancária. Dirigiu-se à gerência, onde se encontravam o gerente e o inspetor. A conversa começou dentro da normalidade, mas, à medida que avançava, os ânimos se alteravam assim como o tom das vozes, cada vez mais audíveis por todo o ambiente. O entrevero foi causado evidentemente pela inadimplência e pela recusa sistemática do religioso em quitar a dívida. O desacordo cada vez mais tenso entre os interlocutores, e o consequente aumento do nível de intensidade em decibéis fizeram com que funcionários e clientes parassem para assistir à discussão. O Monsenhor, vendo-se obrigado a pagar o que devia, comunicou ao inspetor, em voz alta, que ele seria excomungado da Igreja Católica. Muito à vontade, em tom de deboche, o inspetor lhe respondeu, no mesmo tom, que, por sua vez, ele já excomungara o Monsenhor havia muito tempo. Ninguém conseguiu conter o riso. O religioso saiu acabrunhado e envergonhado devido à presença, no recinto, de muitos frequentadores da igreja.
Como havia muitos “abacaxis a descascar”, Juarez acabou alongando a inspeção naquela agência bancária. Casualmente, conheceu uma linda e meiga garota, chamada Juliana. Pediu a autorização dos pais da donzela para iniciar o namoro e, alguns meses depois, pediu solenemente sua mão em casamento. A cerimônia religiosa deveria ser realizada na catedral da cidade, onde o Monsenhor atuava.
Após a enrascada no banco, os fuxicos se multiplicaram assustadoramente. Não se falava em outra coisa, na pequena cidade. Isso complicou a vida dos noivos, cuja cerimônia religiosa foi sistematicamente recusada por todos os padres da cidade, em sinal de apoio ao colega ofendido. A cada dia procuravam um padre diferente. A resposta era sempre negativa. Apelaram então para o Bispo. Conseguiram, por meio dele, a autorização para o matrimônio na capital do Estado, longe de tudo e de todos.
Esse foi o primeiro empecilho a ser transposto pelo noivo. O segundo era de ordem familiar. Franciele, a mãe da noiva, gostava do pretendente, mas tinha certas restrições. Primeiramente pela grande diferença de idade. Juarez era viúvo, pai de seis filhos. Em segundo lugar, porque se tratava um desconhecido, vindo sabe-se lá de onde. Além do mais, pretendia levar a futura esposa para bem longe dali. Lamentava ter tido tanto esmero na educação da menina, para entregá-la em mãos desconhecidas, e, além disso, perdê-la de vista. Juliana era primogênita, criada com muito rigor, em internato de freiras, muito bem preparada para o papel de esposa.
Um dia, a futura sogra chamou o noivo em particular e lhe disse:
─ Veja bem! Eu queria ver minha filha formada e gostaria que ela continuasse a viver aqui junto à família. Você quer levá-la para bem longe, antes da formatura. Apesar de meu contragosto, esse casamento “é de gosto” para Juliana. Caso eu não o aceite, vou ter que ouvir a ladainha já esperada, por parte dela, pelo resto da vida. Façamos o seguinte: eu permito que você leve minha filha, mas com uma condição. Levará também uma de suas irmãs. Não gostaria que ela ficasse sozinha, sem alguém da família para lhe dar apoio.
Estando ambos de acordo, a mãe passou então à fase da preparação do enxoval. No dia da partida, Juliana foi surpreendida por um revólver calibre 38 dentro da mala. Questionada a respeito, a mãe lhe disse simplesmente:
─ É só pra caso de precisão, minha filha.
Juliana nunca precisou usá-lo. Ao chegarem ao destino, ela e a irmã Luciana foram muito bem recebidas pelos filhos de Juarez. Prova disso é que seu filho primogênito acabou se casando com Luciana. Anos mais tarde, um irmão de Juliana foi visitá-la e acabou se engraçando pela filha caçula de Juarez. O visitante conseguiu trabalho no Sul e acabou constituindo família por lá. Mais um casamento entre as duas famílias. O parentesco às vezes se embaralhava para as pessoas de fora. Os colegas e amigos faziam brincadeiras para decifrar a confusa parentela. Quando criança, o filho único de Juarez /Juliana teve dificuldade em entender que um de seus irmãos era também seu tio. O casal viveu em perfeita harmonia até que a morte de Juarez os separou, vinte e um anos depois.
Como diz o provérbio francês, “tout est bien qui finit bien”. A união das duas famílias ficou mais que consagrada, com os três desponsórios. Quanto ao Monsenhor, após o “famoso” episódio na agência bancária, ficou tão vexado junto aos fiéis, que solicitou transferência para outra cidade. Nunca mais foi visto pelos paroquianos.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
domingo, 9 de fevereiro de 2020
POLARIDADES
Um fato inusitado chocou a
opinião pública, há algum tempo, em Vitória (ES). Uma avó atravessava a ponte
Florentino Avidos, na faixa de pedestres, de mãos dadas com seu netinho de
cinco anos. Um malfeitor, de cerca de 35 anos, surgiu repentinamente, tomou a
criança da avó e a jogou no mar. Um engraxate, de passagem para o trabalho,
presenciou a cena. Ao se dar conta do desvario do meliante, jogou por terra a
caixa de engraxate, a carteira, o celular, o relógio, e, em questão de segundos,
se jogou na água para tentar salvar a criança. Êxito total. O bom samaritano
virou celebridade da noite para o dia. Sua foto saiu estampada na primeira
página dos jornais locais. Como prêmio pela intrepidez, ganhou um curso de
primeiros socorros, salvo engano, oferecido pelo Corpo de Bombeiros. O
malfeitor foi retido no local pelos transeuntes, e imobilizado até a chegada da
polícia.
Relatos extraído dos jornais
locais, na época
Relato
da avó: "Foi um momento desesperador. Pensei em
pular, mas não sei nadar. Comecei a gritar e do nada apareceu esse rapaz,
que eu não conheço. Ele pulou e salvou o meu neto. Quando meu neto
afundou, pensei que nunca mais iria vê-lo. Não tenho nem palavras para
agradecer. Ele foi maravilhoso. Ainda bem que existem pessoas como ele."
Relato do salvador: "Só vi quando ele suspendeu
a criança e a jogou dentro da água. A avó ficou desesperada. Eu não pensei em
mais nada, a não ser em pular para poder salvar o garoto. Só pensei em
ajudar. Era a única coisa que eu podia fazer. Na hora, pensei também em minha
filha, de um ano e quatro meses.”
Relato do malfeitor: "Eu passei na
ponte e de repente eu peguei o menino e joguei dentro da água. Não tenho
explicação para isso, estou com a cabeça ruim."
Esse fato em
que o “anjo bom” sobrepuja o “anjo mal”, nos remete à polêmica polarização existente desde os tempos pré-socráticos. Parmênides (530-460 a.C.)
distinguia as qualidades positivas (o ser) como luz, e as negativas (o não ser)
como obscuridade. Seu método consistia em estabelecer uma oposição, de modo que
o mundo empírico se cindia em duas esferas, sendo uma a negação da outra. Essas
polaridades, como Yin-Yang e outras mais existem também nitidamente no
cristianismo como bem/mal, virtude/pecado, céu/inferno...
Seu
contemporâneo Heráclito (540-470 a.C.) tinha outra visão completamente díspar. As
antinomias belo/feio, fácil/difícil, grande/pequeno, branco/preto, alto/baixo,
passado/futuro... para ele não são contrárias e sim complementares. O “ser” e o
“não ser” estão contidos um no outro, em constante transformação. É dele o
axioma de que não se pode banhar duas vezes no mesmo rio devido ao constante
fluir das águas. A seu ver, nada é firme; tudo está em constante mutação.
A
nítida distinção parmenidiana conhecida como “mal da polarização” foi
amplamente rejeitada por pensadores que reiteraram o caráter relativo dos
opostos: o mel pode ser, ao mesmo tempo, doce, para a maioria, e amargo para os
que sofrem de icterícia. “Isto” e “aquilo” são interdependentes. Troca-se a
preposição pelo verbo: "isto" é "aquilo".
Faço
coro com esses pensadores e corroboro com o mote reiterativo “tudo é e não é”
contido ao longo do romance Grande sertão: veredas, de nosso mestre
Guimarães Rosa.
A meu ver, o Bem e o Mal
coexistem dentro e fora do ser humano. É inútil almejar céu e inferno, ambos
metafóricos, para o post mortem.
Em vida, passamos ora por um, ora por outro, segundo as circunstâncias,
sempre na expectativa positiva de que a luz ofusque as trevas.
No caso da ponte, como foi
dito, o “anjo do bem” sobrepujou o “anjo do mal”, mas isso nem sempre acontece
no dia a dia. O audaz engraxate ganhou “celebridade relâmpago” e caiu novamente
no anonimato. No entanto, devido à sua boa ação, se imortalizou na memória dos
capixabas.
(Ponte Florentino Avidos, conhecida como Cinco Pontes, composta de 5 vãos, liga a Ilha de Vitória ao Continente. Um sexto vão, à parte, liga Vitória e Ilha do Príncipe. Fabricada em aço (um raro exemplar nacional), foi construída na Alemanha, no início do século passado. Hoje é um marco do patrimônio histórico e ambiental urbano do Espírito Santo.)
Jô Drumond
quinta-feira, 9 de janeiro de 2020
BENDITA TECNOLOGIA
Recentemente, recebi, pelo WhatsApp, um antigo vídeo publicitário, feito na época de inflação galopante, há décadas, anunciando uma liquidação de eletrodomésticos, pagos em duas vezes, sem juros.
Um fogão a gás de 4 bocas, por exemplo, cujo preço varia atualmente entre trezentos e seiscentos reais, era oferecido por sete milhões e quatrocentos mil cruzeiros, em preços promocionais. Vejamos as demais promoções:
Aparelho de som: Cr$3.800.000,00
Televisor preto e branco - 14 polegadas : Cr$14.400.000,00
Geladeira: Cr$9.400.000,00
Forno de micro-ondas: Cr$ 10.800.00,00
Essa publicidade me remeteu a um fato acontecido tempos atrás. No início da década de 70, fui contemplada com uma bolsa de estudos na Universidade de Sorbonne Nouvelle, em Paris, sob os auspícios da Embaixada da França. Teria gratuitamente hospedagem, alimentação e o curso, além de uma quantia mensal chamada de argent de poche, para pequenas despesas. Meu único gasto seria referente às passagens de ida e volta.
Naquela época, não havia cartões de crédito. Nada era automatizado. Um depósito bancário de uma cidade para outra levava muitos dias para ser concretizado, dependendo da distância geográfica.
Quem tinha a oportunidade de ir ao exterior comprava toda sorte de bugigangas para presentear os amigos. Produtos importados, considerados supérfluos, eram inexistentes no mercado brasileiro. O governo, atento à evasão de divisas, só permitia a saída do país com o máximo de mil dólares por passageiro, o que era muito pouco. Isso abreviava a estada dos brasileiros no exterior.
Pois bem! Para a compra de dólares, eu teria que sacar a quantia correspondente em um banco e transportá-la até uma agência cambial. Fui ao centro de Belo Horizonte, sozinha, para a transação. O atendente do caixa me recebeu, desapareceu por algum tempo e voltou com um pacote enorme, embrulhado em jornal e amarrado com barbante. Eu não tinha noção da quantidade de cédulas correspondente à quantia solicitada. Mal podia carregar o pacote, por demais pesado para minha frágil compleição física. Teria que atravessar o centro da cidade a pé, até a agência. Um medo enorme se apossou de mim. Se alguém me visse sair do banco com aquele enorme pacote, poderia me seguir e me assaltar em algum lugar menos movimentado. A bolsa de estudos e a tão sonhada viagem iriam pelos ares.
Um telefone celular teria sido providencial. Eu poderia ter chamado alguém da família para me acompanhar. Ainda não existiam orelhões. Alguns poucos telefones públicos tinham sido instalados dentro de estabelecimentos comerciais. Para fazer uma chamada, eu teria que encontrar um deles ou me dirigir a alguma agência telefônica, inexistente nas redondezas. Enfim, teria que encarar o desafio, sozinha. Ao botar o pé porta afora, olhei para os lados e segui a passos rápidos. De vez em quando olhava para trás, para verificar se não estava sendo seguida. O medo de ser assaltada pesava mais que o pacote. O trajeto não era longo, mas, naquele momento, parecia infinito.
Feito o câmbio, eu teria que portar a quantia não apenas até minha residência. Teria que portá-la junto a mim, durante toda a viagem. Isso representava um grande transtorno para uma jovem inexperiente, que nunca havia saído de seu Estado Natal, muito menos do país.
Na época, não se cogitava que, num futuro não muito distante, os viajantes poderiam partir apenas com cartões magnéticos e com eles sacar dinheiro ou fazer pagamentos. Em caso de extravio ou furto, seriam bloqueados e substituídos por outros, em tempo recorde. Viva a tecnologia atual!
Na chegada à Europa, uma ex-colega de colégio, estando de férias em casa de parentes, em Grenoble, a 143 km de Genebra, estaria de carro, com seu irmão, me aguardando no aeroporto daquela cidade. Isso havia sido combinado meses antes, por carta, um dos poucos meios de comunicação disponíveis. Eu chegaria na sexta-feira à noite, passaria o sábado e o domingo com seus familiares, e depois seguiria para Paris. Não sei se ela se esqueceu do trato ou se houve algum imprevisto. O fato é que ela não apareceu. Já se fazia noite. Não havia meio de nos comunicarmos. Vi-me sozinha, em um país estranho, sem conhecer vivalma, sem saber o que fazer. Não dispunha de nenhuma indicação de local para me hospedar.
Nos dias de hoje, seria simples. Sacaria da bolsa o smartphone, localizaria os hotéis mais próximos,faria pesquisa de preços e reserva pela internet. Infelizmente, eram outros tempos. Dirigi-me ao guichê de informações e pedi que me indicassem um hotel próximo. Tomei um táxi, sem dizer palavra, a não ser o nome do hotel e o endereço, com cuidado de falar sem sotaque, para que o motorista não percebesse minha estrangeirice. Parti mais que temerosa, extremamente tensa. Não tinha noção da distância, nem da direção do hotel. Senti-me totalmente vulnerável. O chauffeur poderia me levar para qualquer lugar, apoderar-se de meu rico dinheirinho e se mandar. O que faria eu, na rua, com temperatura abaixo de zero, sem dinheiro para pagar hospedagem e sem conhecidos para me acolher? O medo só se dissipou ao avistar a placa do hotel. Respirei aliviada.
Antes do embarque para a Europa, eu havia sido instruída a não sair nunca à rua com todo o dinheiro. Deixá-lo no quarto de hotel seria também arriscado. Foi-me sugerido que recheasse todas as tomadas do quarto, com dólares. Nenhuma camareira se daria o trabalho de procurar dinheiro em local tão pouco plausível. Era esconderijo seguro, mas arriscado a um baita choque elétrico. Na bagagem, eu dispunha de chave de fenda para tal empreitada. Outro estratagema seria fazer falsas bainhas nas calças compridas, e recheá-las de notas verdinhas. Certa vez, sem me lembrar disso, fui para a universidade usando uma calça com tal recheio. Na volta, enfrentei ventaria e tempestade. Ao chegar ao alojamento estudantil, toda ensopada, percebi um peso extra nas bainhas. Atordoada, desalinhavei-as rapidamente, temendo ter perdido as cédulas, mas elas estavam intactas. Antes do embarque eu as havia envolvido por plástico, justamente para evitar algum imprevisto desse tipo.
Muitos contemporâneos nossos sentem saudades dos velhos tempos. Tenho saudades de certas coisas que não existem mais, mas, no que se refere à praticidade, à rapidez e ao conforto proporcionados pelas novas tecnologias, a vida hoje em dia é indiscutivelmente mais fácil e mais aprazível em praticamente todas as circunstâncias.
Pode ser que haja mais poluição, mais violência, e demais inconveniências próprias dos novos tempos, mas não se pode reclamar do conforto que as grandes invenções proporcionaram a todos, desde épocas avoengas, com o advento da energia elétrica, da telefonia, do motor à explosão, das aeronaves...
Com certeza, facilitações inimagináveis, às quais não teremos acesso, ainda estão por vir, na propalada era digital. Em face da atual corrida tecnológica, o que existirá em comum com nosso way of life, dentro de um século? Como será a vida de nossos descendentes?
Um fogão a gás de 4 bocas, por exemplo, cujo preço varia atualmente entre trezentos e seiscentos reais, era oferecido por sete milhões e quatrocentos mil cruzeiros, em preços promocionais. Vejamos as demais promoções:
Aparelho de som: Cr$3.800.000,00
Televisor preto e branco - 14 polegadas : Cr$14.400.000,00
Geladeira: Cr$9.400.000,00
Forno de micro-ondas: Cr$ 10.800.00,00
Essa publicidade me remeteu a um fato acontecido tempos atrás. No início da década de 70, fui contemplada com uma bolsa de estudos na Universidade de Sorbonne Nouvelle, em Paris, sob os auspícios da Embaixada da França. Teria gratuitamente hospedagem, alimentação e o curso, além de uma quantia mensal chamada de argent de poche, para pequenas despesas. Meu único gasto seria referente às passagens de ida e volta.
Naquela época, não havia cartões de crédito. Nada era automatizado. Um depósito bancário de uma cidade para outra levava muitos dias para ser concretizado, dependendo da distância geográfica.
Quem tinha a oportunidade de ir ao exterior comprava toda sorte de bugigangas para presentear os amigos. Produtos importados, considerados supérfluos, eram inexistentes no mercado brasileiro. O governo, atento à evasão de divisas, só permitia a saída do país com o máximo de mil dólares por passageiro, o que era muito pouco. Isso abreviava a estada dos brasileiros no exterior.
Pois bem! Para a compra de dólares, eu teria que sacar a quantia correspondente em um banco e transportá-la até uma agência cambial. Fui ao centro de Belo Horizonte, sozinha, para a transação. O atendente do caixa me recebeu, desapareceu por algum tempo e voltou com um pacote enorme, embrulhado em jornal e amarrado com barbante. Eu não tinha noção da quantidade de cédulas correspondente à quantia solicitada. Mal podia carregar o pacote, por demais pesado para minha frágil compleição física. Teria que atravessar o centro da cidade a pé, até a agência. Um medo enorme se apossou de mim. Se alguém me visse sair do banco com aquele enorme pacote, poderia me seguir e me assaltar em algum lugar menos movimentado. A bolsa de estudos e a tão sonhada viagem iriam pelos ares.
Um telefone celular teria sido providencial. Eu poderia ter chamado alguém da família para me acompanhar. Ainda não existiam orelhões. Alguns poucos telefones públicos tinham sido instalados dentro de estabelecimentos comerciais. Para fazer uma chamada, eu teria que encontrar um deles ou me dirigir a alguma agência telefônica, inexistente nas redondezas. Enfim, teria que encarar o desafio, sozinha. Ao botar o pé porta afora, olhei para os lados e segui a passos rápidos. De vez em quando olhava para trás, para verificar se não estava sendo seguida. O medo de ser assaltada pesava mais que o pacote. O trajeto não era longo, mas, naquele momento, parecia infinito.
Feito o câmbio, eu teria que portar a quantia não apenas até minha residência. Teria que portá-la junto a mim, durante toda a viagem. Isso representava um grande transtorno para uma jovem inexperiente, que nunca havia saído de seu Estado Natal, muito menos do país.
Na época, não se cogitava que, num futuro não muito distante, os viajantes poderiam partir apenas com cartões magnéticos e com eles sacar dinheiro ou fazer pagamentos. Em caso de extravio ou furto, seriam bloqueados e substituídos por outros, em tempo recorde. Viva a tecnologia atual!
Na chegada à Europa, uma ex-colega de colégio, estando de férias em casa de parentes, em Grenoble, a 143 km de Genebra, estaria de carro, com seu irmão, me aguardando no aeroporto daquela cidade. Isso havia sido combinado meses antes, por carta, um dos poucos meios de comunicação disponíveis. Eu chegaria na sexta-feira à noite, passaria o sábado e o domingo com seus familiares, e depois seguiria para Paris. Não sei se ela se esqueceu do trato ou se houve algum imprevisto. O fato é que ela não apareceu. Já se fazia noite. Não havia meio de nos comunicarmos. Vi-me sozinha, em um país estranho, sem conhecer vivalma, sem saber o que fazer. Não dispunha de nenhuma indicação de local para me hospedar.
Nos dias de hoje, seria simples. Sacaria da bolsa o smartphone, localizaria os hotéis mais próximos,faria pesquisa de preços e reserva pela internet. Infelizmente, eram outros tempos. Dirigi-me ao guichê de informações e pedi que me indicassem um hotel próximo. Tomei um táxi, sem dizer palavra, a não ser o nome do hotel e o endereço, com cuidado de falar sem sotaque, para que o motorista não percebesse minha estrangeirice. Parti mais que temerosa, extremamente tensa. Não tinha noção da distância, nem da direção do hotel. Senti-me totalmente vulnerável. O chauffeur poderia me levar para qualquer lugar, apoderar-se de meu rico dinheirinho e se mandar. O que faria eu, na rua, com temperatura abaixo de zero, sem dinheiro para pagar hospedagem e sem conhecidos para me acolher? O medo só se dissipou ao avistar a placa do hotel. Respirei aliviada.
Antes do embarque para a Europa, eu havia sido instruída a não sair nunca à rua com todo o dinheiro. Deixá-lo no quarto de hotel seria também arriscado. Foi-me sugerido que recheasse todas as tomadas do quarto, com dólares. Nenhuma camareira se daria o trabalho de procurar dinheiro em local tão pouco plausível. Era esconderijo seguro, mas arriscado a um baita choque elétrico. Na bagagem, eu dispunha de chave de fenda para tal empreitada. Outro estratagema seria fazer falsas bainhas nas calças compridas, e recheá-las de notas verdinhas. Certa vez, sem me lembrar disso, fui para a universidade usando uma calça com tal recheio. Na volta, enfrentei ventaria e tempestade. Ao chegar ao alojamento estudantil, toda ensopada, percebi um peso extra nas bainhas. Atordoada, desalinhavei-as rapidamente, temendo ter perdido as cédulas, mas elas estavam intactas. Antes do embarque eu as havia envolvido por plástico, justamente para evitar algum imprevisto desse tipo.
Muitos contemporâneos nossos sentem saudades dos velhos tempos. Tenho saudades de certas coisas que não existem mais, mas, no que se refere à praticidade, à rapidez e ao conforto proporcionados pelas novas tecnologias, a vida hoje em dia é indiscutivelmente mais fácil e mais aprazível em praticamente todas as circunstâncias.
Pode ser que haja mais poluição, mais violência, e demais inconveniências próprias dos novos tempos, mas não se pode reclamar do conforto que as grandes invenções proporcionaram a todos, desde épocas avoengas, com o advento da energia elétrica, da telefonia, do motor à explosão, das aeronaves...
Com certeza, facilitações inimagináveis, às quais não teremos acesso, ainda estão por vir, na propalada era digital. Em face da atual corrida tecnológica, o que existirá em comum com nosso way of life, dentro de um século? Como será a vida de nossos descendentes?
Jô Drumond
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