sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A VIOLÊNCIA NA ESCOLA

Na crônica postada anteriormente, “Da palmatória à redenção”, aborda-se a violência dos professores contra alunos, em tempos idos. Nos tempos atuais, houve uma reviravolta. Antes do início da pandemia, ou seja, antes do advento das aulas virtuais, vez ou outra viam-se na mídia, notícias de violência de alunos contra professores, chegando ao extremo de homicídio em sala de aula. Isso me remeteu ao final da década de 1960, época em que assumi a regência de classe em uma escola pública.

Não guardo boas lembranças de minha fracassada entrada para o mercado de trabalho. Aos 18 anos, recebi o diploma de Normalista pela Escola Normal de Patos de Minas, após três anos de estudos com intensa preparação didática, metodológica, psicológica e com estágios pedagógicos, sob a severa orientação de Dona Filomena de Macedo Mello. As normalistas atuavam nas quatro séries iniciantes do Ensino Fundamental, chamadas, na época, de Curso Primário. Logo após minha formatura, mudei-me Belo Horizonte. Em 1969, cheia de idealismo e entusiasmo, assumi a regência de classe em uma escola pública, na periferia da capital mineira. Morava no Alto Sion, no extremo oposto do local de trabalho. Fazia um trajeto de 30 a 40 minutos até o centro da cidade, de lotação, atravessava o centro a pé e pegava outro coletivo na Av. Paraná. Após 40 minutos de sacolejos, parava no ponto final de um bairro periférico e subia, a pé, um longo morro, ainda sem habitações, até chegar a uma casinha pequenina, transformada em escola. A casa e a aparência dos alunos indiciavam pobreza absoluta. Fui brindada com uma turma muito especial. Tão especial que estava repetindo o primeiro ano pela quinta vez e, pelo que me disseram, seriam mantidos indefinidamente na primeira série primária. Como a classe era pequena, fomos instalados no menor cômodo da casa, a antiga cozinha, sem janelas, com apenas uma báscula no alto de uma parede, sem ventilação alguma. Os alunos não tinham uniforme. Suponho que eles iam para a escola com a mesma roupa com as quais dormiam e nas quais faziam o pipi noturno. Tinham um cheiro nauseabundo. Era inútil insistir que se lavassem e se trocassem antes de se dirigir à escola.

Não havia instalações sanitárias no estabelecimento de ensino. Foi construído, no quintal, um pequeno cômodo sobre uma fossa, com piso de madeira, tendo um orifício no meio, para as necessidades fisiológicas. Esse WC se chamava “casinha”. O cheiro era insuportável. Para entrar naquele fétido cubículo, o usuário tinha que pedir licença às moscas, que infestavam o ambiente.

Todos os meus alunos tinham algum tipo de deficiência mental. Tive que jogar para o alto meu idealismo de alfabetizadora e encarar a realidade. Preparava muito material didático, visando mais o lado lúdico que o pedagógico. O objetivo não era ensinar a ler e escrever, mas passar o tempo de forma agradável e proveitosa.

As crianças não tinham noção do certo / errado. Eu tinha que ficar atenta o tempo todo. Lembro-me
que, na época, não se usava apontador. Todos levavam de casa uma lâmina velha, de barbear, que era chamada pelo nome da marca: Gilette. Com elas apontavam-se os lápis e, eventualmente, agrediam os colegas. No primeiro mês de aula, um menino deu um talhe no braço do que estava a seu lado. Eu o repreendi energicamente, mas sem tocá-lo. No dia seguinte, durante a aula, alguém veio me advertir que não saísse da escola porque o pai do aluno ofendido por mim estava do lado de fora, armado, à minha espera, para me matar. Disseram-me isso calmamente, como se fosse algo trivial. Do alto dos meus inexperientes dezoito aninhos, nunca havia me imaginado em uma situação dessas. Fiquei o dia todo dentro da escola, até que o fulano se afastasse temporariamente, talvez para resolver alguma necessidade básica. Naquele momento, avisaram-me para botar o pé na estrada, o quanto antes. Saí receosa, olhando para os lados, certificando-me de não estar sendo seguida. Desci a ladeira quase voando com a firme intenção de jamais botar os pés naquele lugar. Desisti então do ensino de alfabetização e entrei para a faculdade.

Após o término da graduação em Letras, minha primeira experiência como professora não foi tampouco auspiciosa. Dava aulas em um grande colégio noturno, em um bairro afastado de Belo Horizonte. As instalações eram ótimas, mas o material humano deixava a desejar. No final do primeiro semestre, o diretor me chamou a seu gabinete para me solicitar algo incorreto. Queria que eu melhorasse as notas de um rapaz, para que ele não se submetesse às provas finais. Tal aluno pretendia se mudar para a Bahia antes do final do ano e queria ser aprovado sem provas. Como não se tratava de um bom estudante, recusei prontamente o pedido do diretor. Disse-lhe que daria as notas merecidas. Caberia a ele, como diretor, alterá-las, se fizesse questão de ajudar o aluno. Ele não ousou fazer isso. No dia seguinte, ao sair da sala de aula, durante um intervalo, alguns adolescentes me cercaram, dizendo que iam fazer minha proteção. Disse-lhes que não precisava de proteção alguma. Advertiram-me que aquele que queria ser aprovando indevidamente andava espalhando, no colégio, que ia me brindar com uma sessão de porradas para que eu deixasse de ser inflexível. Fiquei encabulada com aquilo, sobretudo porque minha posição era muito vulnerável. Saía do colégio a pé, cerca de onze horas da noite, sozinha, para me dirigir a um ponto de ônibus. Era presa fácil. Naquela noite, durante um dos intervalos, ao me aproximar da cantina, dei de cara com o grandão que estava me ameaçando. Num ímpeto de “cara de pau”, fingindo coragem (porque estava escoltada) parei diante dele, olhei para cima (ele era bem mais alto) e lhe perguntei. É você que quer me espancar? Pode começar. O rapaz ficou branco e pasmo, sem saber o que fazer, nem o que dizer. Não disse nada. Ficou desarmado, com minha ousadia. Qualquer coisa que acontecesse comigo, a partir de então, seria o suspeito número um. Temerosa, continuei meu trabalho até o final do semestre e encerrei minha carreira como professora de ensino fundamental e médio.

Depois disso, como monitora do Mestrado em Letras, fui convidada a dar aulas na Universidade Federal do Espírito Santo. Ofereceram-me uma turma de Literatura francesa, outra de língua francesa e uma terceira de produção escrita em Língua portuguesa. As turmas, a meu ver, eram numerosas (cerca de 30 alunos). Eu estava habituada a dar aulas Alliance Française Internationale, desde a década de 70, onde as turmas eram diminutas (de 6 a 12 alunos). Na Aliança, conhecia muito bem cada aluno e suas específicas dificuldades. Na Universidade, diferentemente de alguns professores, eu conhecia todos os alunos pelo nome, pela força do hábito. Minhas aulas eram sempre interativas. Para mim, seria impossível trabalhar sem conhecer cada aluno. Pois bem. No final do terceiro mês do semestre letivo, que durava apenas 4 meses (de março a junho), apareceu em sala uma moça muito bem apessoada e cheia de poses, dizendo-me.

- Professora, sou “fulana de tal”. Quero saber quantas faltas eu tenho.

- Você tem todas - Respondi-lhe.

- Como assim? Eu sempre estou por aqui.

- Pode ser, mas não em minha sala de aula. É a primeira vez que a vejo. Certamente já perdeu por frequência.

- Mas que absurdo! Não vou aceitar uma coisa dessas! Se estiver pensando que vai me reprovar, está muito enganada.

Saiu esbravejando, gesticulando, e permaneceu algum tempo no corredor tentando fazer um levante contra a professora, em vão. Ninguém a apoiou.

Como disse na crônica anterior, na era digital, os alunos não são mais ingênuos, medrosos e respeitosos como os de antigamente. Eles dispõem de uma carga muito grande de informações. Por conseguinte, são mais inquiridores, até mesmo desafiadores. É louvável que tenham perdido o antigo medo dos professores, mas de roldão perderam também o respeito.

Nos dias de hoje, tem havido inúmeros casos de agressão de alunos contra mestres. Há quem diga que desde que o mundo é mundo, a violência impera no reino animal, ao qual pertencemos. Maldade e bondade são inerentes ao ser humano. Segundo o humorista Millôr Fernandes, na época de Caim e Abel era pior. Um matou o outro. Portanto, havia 50% de violência.


COMENTÁRIOS DOS LEITORES


DENISE -ES
Infelizmente houve uma inversão de valores nas últimas décadas.  O desrespeito ao professor, que antes tinha autoridade e era respeitado na sala de aula.
Os bons princípios vêm de casa.  Professores ensinam e pais educam.
Os alunos que revolucionaram e se rebelaram na década de 70,  hoje são pais e avós desses desordeiros.
Se os pais e professores se dessem as mãos,  a educação não estaria deteriorada e,  priorizariam  a educação, ora sem qualidade, devido à tantos alunos evadidos na escola pública  e a  ordem  para aprová-los.  
Eu já lecionei e sei bem o que se passa.

O fato é que alunos chegam a Universidade  semianalfabetos.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------


FRANCISCA (MG)
Parabéns, Jô! É sempre um prazer ler seus textos!
Tanto esta crônica, como a anterior, “Da Palmatória à Redenção - ...”, evidenciando problemas da educação em diferentes épocas, mostram bem sua incrível capacidade de resgatar memórias. Suas preciosas lembranças, à partir de fatos e experiências particulares, trazem à luz com naturalidade, importantes referências, refletindo valores e costumes que compõem a realidade social de cada época, deixando evidente que o alicerce é e sempre será a educação. Tanto a chamada educação de berço, quanto a educação escolar.
Francisca
------------------------------------------------------

FRANCISCO BRANT – MG
Que relato inacreditável sobre o estado de nossas escolas públicas. Possivelmente, piorou o quadro nos anos mais recentes e  atualmente. Por isso, pode-se entender porque nessa pandemia muita gente não dá a menor importância ao problema e às formas de prevenção. Muitas escolas talvez não consigam ensinar os alunos nem a lavar as mãos.
Assim, no Brasil se inverte a celebre frase de Vitor Hugo, segundo a qual “cada escola que se abre é uma prisão que se fecha”. 
Aqui, infelizmente, a história que você conta sobre seus apuros em tentar ser professora, que devem prosseguir com milhares de mestras pelo país afora, a nova versão da frase do genial escritor francês  seria infelizmente esta: 
"Cada arremedo de 'escola' que se abre para os pobres  é mais uma cela que se enche nas prisões".

ADRIANA MACHADO (SP)
Jô! Inspiradora como descreve os percalços e desafios se transformarem em trampolim para sua carreira. 
Em muitos momentos da vida me vejo em sua crônica: idealista, encabulada, ousada, correta, vulnerável, diante de uma realidade nauseabunda...
Como aluna sempre amei e respeitei meus professores. Tenho boas lembranças do dia em que voltei a escola pública para entregar o convite de formatura em medicina para minha professora do primário... Agora sou mãe e tive como critério de escolha para minha filha uma escola em que o trabalho do professor é realmente valorizado. 
Sua crônica trouxe a reflexão... Seria a violência contra a criança diferente da violência contra o professor? Ou seriam faces de uma mesma violência social? Racismo? Feminicídio? Homicídio? Assédio moral? Concluo que a violência perpassa toda a trama social. 
E para nos consolar uma referência hilária: hoje a taxa de homicídio é bem menor que no tempo de Caim e Abel!!! Brilhante!
--------------------------------------------------

LÔLA (ES)
Ei Jô, boa noite!
Que inicio difícil o seu, realmente ser mestre nesse país é bem complicado, é uma área totalmente insalubre em minha opinião.
A grande maioria quer um diploma, nada mais!
A violência é grande não apenas com os mestres e colegas de turma. 
Eles fazem uma violência contra o patrimônio: destroem, picham, quebram tudo.
Não têm o menor zelo.
Que mundo é esse? Os professores deveriam ganhar os melhores salários, sem eles não existiriam todas as profissões.
------------------------------------------------

PENHA - ES
Ei  Jo. Seus textos são deliciosos de ler. Você  'conduz' nossa mente abrindo assim nossa percepção para realidades muito nossas - ou pelo menos minhas - tal e qual numa linguagem simples e  espontânea. Muito bom.
Mas devo dizer q o texto Da Palmatória à  Redenção- Infância  de Ontem e Hoje , teve um quê mais literário,  ou ....não sei.... Você usou um linguajar que amei.
Ambas são muito interessantes. Sou fã de seu trabalho. 

------------------------------------------------------

VALENTINA - ES

Olá Jô ... muito interessante suas lembranças da escola tanto como aluna como professora... eu tive uma experiência traumática dando aulas de inglês num curso em Jardim da Penha...ninguém merece...parabéns pelos dois contos... sensacional!!!

-------------------------------------

LOURDINHA -  DF
Escola e familia....jogando num  mesmo  tabuleiro... De quem é  a CULPA!!!!!
-----------------------------------------------------

MATTEDI - ES
Mais uma vez a autora nos surpreende com uma bela e convidativa crônica, realista e pungente. Por fim, faço coro à sua visão sobre os tempos difíceis de ensino.
----------------------------------------------------

SÔNIA (PIAUÍ)
Sempre foi muito complicada a situação do professor. Se avaliarmos os acontecimentos em cada época por nós vivida, chegamos à conclusão que tudo tem a ver com a família. É lá que está a razão de tudo. Os valores são de uma importância imensurável na vida do ser humano. A família passa seus valores por meio de atitudes. Basta que olhemos filhos de pessoas prepotentes, arrogantes, que identificaremos os pais. Parece ficar no sangue. Só com o tempo o mundo ensina...ou não!
Muito triste você chegar ao final de um curso com as melhores intenções, cheia de ideais e ser desestimulada por quem mais deveria aproveitar.
Tenho uma filha que tbm que desistiu, por causa de alunos, da escolha  profissional feita com muito orgulho e interesse.
--------------------------------------------------
MARIA JOSÉ NUNES (MG)
Li as duas etapas, que você  passou como professora. A primeira, muito jovem, sem experiência,  foi trabalhar num ambiente muito difícil, de extrema pobreza. Depois, você se preparou para trabalhar no Ensino Fundamental, numa escola mais bem localizada. Decepcionou-se porque a criançada  não  correspondia às suas expectativas. Resumindo, no século  XX, os pais assumiam seu papel de corresponsável, dando aos professores inteira liberdade de conseguir algum interesse dos alunos. Hoje com a novas tecnologias, na falta de tempo do “corre-corre” cotidiano, os pais deixaram seu papel para que que a escola o faça. Os jovens não têm o menor respeito pelos professores. Há agressões verbais e físicas. Infelizmente, o problema se encontra no desajuste familiar. A educação deve começar em casa.
--------------------------------------------

MÔNICA - DF

Jô, essa  convivência é cruel e doentia, pois em um mundo que valoriza o mérito, os que vivem flutuando à margem da sociedade em condições inapropriadas parecem ser o problema. 
Contudo, nossa sociedade precisa de uma revolução educacional e sócio econômica para colocar ambas as partes em pé de igualdade numa relação baseada na troca e no respeito mútuo.
-------------------------------------------------
REGINA -GOIÂNIA
Estava agora lendo esse último link e percebi o quanto foi difícil sua trajetória, definitivamente nada é fácil, mas a luta é constante. Te admiro ainda mais conhecendo melhor sua história que com muita luta te fez vencedora. Estou sempre te acompanhando. Gosto muito de suas histórias.
-----------------------------------------------------
VALENTINA  - ES

Olá Jo ... muito interessante suas lembranças da escola tanto como aluna como professora... eu tive-a experiência traumática dando aulas de inglês num curso...ninguém merece...parabéns pelos dois contos... sensacional!!!


segunda-feira, 27 de julho de 2020

DA PALMATÓRIA À REDENÇÃO - INFÂNCIA DE ONTEM E DE HOJE

Durante a pandemia, em 2020, as escolas estão adotando aulas on-line para que os alunos não
percam o ano letivo. Há quem goste e quem não goste desse tipo de aula. Guilherme, meu netinho de seis anos, é um azougue. Gosta de correr, pular, jogar bola, fazer estripulias e toda sorte de traquinagens. Para ele é um enorme sacrifício ficar parado, com os olhos fixos na telinha, ouvindo coisas que nem sempre lhe interessam. Há um vídeo em que ele é flagrado cochilando durante uma aula on-line, enquanto se ouve a voz da professora:
─ Reparem bem! Vou lhes mostrar, agora, algo muito interessante. Fiquem ligados aqui na tela.
O cochilo já se transformara em sono profundo. O que era interessante aos olhos da professora, era sonífero para o garoto irrequieto. Certo dia, o tema da aula era a invenção da lâmpada elétrica. Fizeram-se comentários do “way of life” nos tempos da escuridão noturna. Foi-lhes solicitado que imaginassem como seria a vida sem luz elétrica. Em um dado momento, a professora perguntou a cada um como faria para escovar os dentes, antes de dormir. A maioria disse que usaria velas ou fósforos. Certamente desconheciam os artefatos usados por seus ancestrais: lampiões, lamparinas, candeias... Ao chegar a vez de Guigui, diferentemente dos demais, disse na maior tranquilidade:
─ Eu usaria óculos de visão noturna. (deve ter visto algo similar em desenhos animados ou em filmes infantis) 
Meu estilo de vida, na infância, em meados do século passado, no sertão de Minas, era completamente diferente do de meus netos citadinos hoje em dia. Meu universo era restrito à fazenda onde fui criada. Naquele tempo e espaço não havia telefone, nem eletrificação rural e nenhum conforto dela advindo: eletrodomésticos, televisor, computador, internet... As viagens eram feitas a cavalo ou em desconfortáveis carros de boi. 
Sophia, minha netinha também de seis anos, que nem sabe o que vem a ser carro de boi, veio com a família visitar a vovó nas montanhas da Mata Atlântica, onde estou confinada durante esses tempos covídicos. Vieram todos usando máscaras, mantiveram o distanciamento social, acataram todos os procedimentos como manda o figurino, ou melhor, a OMS. Ao chegar, ela disse que no sítio não havia perigo algum de corona vírus. Como é distante da cidade, o vírus se cansaria muito na subida da serra e desistiria. Em sua cabecinha, o vírus teria que subir a pé, já que ele não tem carro, nem sabe dirigir. Não consigo imaginar o que significa “vírus” em sua mente pueril.
            A meu ver, as crianças de hoje são mais espertas e perspicazes que as de minha época. Elas têm horizontes mais amplos e senso crítico mais aguçado. Elas são tão inteligentes quanto as de antanho, mas têm mais discernimento devido à grande carga de estímulos próprios da era digital. Ao ouvirem um disparate de um adulto, em vez de acreditar, como acontecia antes, elas riem ou zombam daquela maluquice. Eu era crédula e obediente. A meu ver, os adultos eram donos da verdade. Sabiam tudo e sempre tinham razão. Eu ficava atenta a suas falas, a suas atitudes, e tentava imitá-los, na medida do possível. Nunca duvidava dos mais velhos, mesmo quando diziam coisas estapafúrdias. Desconhecia a existência de patranhas e falsidades.  Por exemplo, disseram-me para ter muito cuidado ao chupar laranja. Se, por acaso engolisse algum caroço, brotaria uma laranjeira dentro de mim. Os galhos sairiam pela boca, nariz, ouvidos e olhos. Fiquei apavorada e parei de chupar laranjas. Outra potoca que ouvia sempre era que se ingerisse cafeína, ficaria com a pele da cor do café. O desrespeito à inocência infantil era cruel.
Lembro-me de que minha mãe ficou barriguda. Perguntei-lhe o motivo daquele barrigão. Ela me respondeu que estava comendo muito. A,0creditei. Certo dia ela adoeceu. Fecharam a porta do quarto e me mandaram brincar no quintal. Saí, mas fiquei por perto. Percebi gemidos, gritos de dor, corre-corre, entra-e-sai, nervosismo geral... finalmente, um berreiro de bebê. Quando os adultos abriram a porta, entrei e perguntei de quem era aquele bebê. Disseram-me que a cegonha o havia trazido de presente para minha mãe. Eu já havia visto desenho de cegonha. Certamente ela não teria força para voar carregando um bebê maior que ela, mas não duvidei do que ouvi. Naquele dia, a barrigona de mamãe murchou. Não tive coragem de perguntar o motivo a ninguém. Arriscar-me-ia a levar uma bronca e ainda a ser escorraçada dali.
Anos depois, ao entrar para a escola, encontrei professores severos. Usavam palmatória, e ouros meios de tortura, com o intuito de educar as crianças por meio da intimidação. O castigo mais temido por mim era o de ficar de joelhos sobre grãos de milho. Doía muito. Até então eu não sabia que os professores judiavam dos alunos. Não sabia tampouco que, na maioria das famílias, se a criança contasse que havia apanhado na escola, apanharia dobrado, por parte dos pais, para aprender a respeitar o professor. Felizmente isso não acontecia em minha casa. Aliás, nunca levei um tapa, durante a infância, a não ser dos professores, diante de toda a turma, quando não sabia fazer uma adição ou subtração no quadro-negro. Hoje em dia, em vez de serem educadas mediante constrangimento e palmatória, são protegidas por lei contra qualquer tipo de assédio ou violência.
 Lembro-me de que uma de minhas professoras desenhou um semáforo no quadro para ensinar noções elementares de sinalização: cor vermelha (pare); cor amarela (atenção/espere); cor verde (passagem de veículos). Eu nunca havia visto um semáforo. Achei bonito, colorido! Queria saber o que era veículo, mas não ousava perguntar. Deduzi que era aumentativo de velho. Cheguei à conclusão de que, nas grandes cidades, havia um sinaleiro especial de proteção aos veículos, ou seja, às pessoas bem velhinhas com dificuldade de locomoção. Gostei da iniciativa. Elas poderiam atravessar com segurança, sem risco de atropelamento. Só fui saber o verdadeiro sentido de veículo tempos depois. A intimidação não era benéfica à aprendizagem. Bloqueava nossa curiosidade e anulava nossos questionamentos.
Certo dia, minha professora recebeu, em sala de aula, uma caixa com diversos recipientes redondos, em metal prateado. Seria feita uma coleta de material de todos os alunos, para exame de fezes. Ninguém sabia o que era coleta, muito menos fezes, mas quem ousaria receber um corretivo por uma pergunta indevida? Ninguém! Ao final da aula ela enfatizou que não poderíamos esquecer-nos de trazer de volta, no dia seguinte, aquela latinha contendo fezes. Um corajoso salvou a pátria. Num ímpeto de audácia disse que não havia entendido bem o que deveria ser colocado dentro dela. Ao ouvir a resposta esperada fez cara de desentendido. A professora percebeu que talvez a palavra fosse desconhecida da turma e perguntou:
─ Vocês sabem o que significa fezes?
A resposta simultânea, em coro, ecoou corredor afora:
─ Não, Senhora.
─  Vocês vão colocar cocô aí dentro. O laboratório vai examinar a incidência de verminose.
Percebeu também que eles desconheciam “incidência”  e “verminose”. Mudou novamente o registro linguístico.
─Vocês já ouviram falar em lombrigas? 
─ Sim, Senhora.
─ Então, o exame do cocô é para saber se vocês têm lombrigas dentro da barriguinha. Entenderam agora?
─ Sim, Senhora.
  As crianças da era digital não são mais ingênuas e medrosas como as de minha época. São desobedientes e desafiadoras. É louvável que tenham perdido o medo dos professores, mas de roldão perderam também o respeito. Há inúmeros casos de violência de alunos contra professores e até mesmo de homicídio dentro de sala de aula.  O mundo mudou. Não sei se para melhor ou para pior.

Jô Drumond – julho/2020

RETORNO DOS LEITORES 


FRANCISCO BRANT (MG)

Muito legal, Jô! Nada como boas memórias bem contadas. Acho que a meninada já está em outra: preparam-se, sem saber ou já sabendo, para andar em paisagens planetárias e estelares, se é que não vão querer morar lá no futuro.
Interessante a interação das máquinas com os novos e pequenos seres humanos.
Eles crescem em inteligência com a companhia delas, e as máquinas se sofisticam cada vez mais para acompanhá-los na aventura incessante da humanidade. Os dois estão de tal forma próximos, que vão se assemelhar cada vez mais, para o bem e para o mal.
Certa vez, o Bruno, ainda meninote, definiu bem, em conversa comigo, esse futuro que já chegava à sua geração. Na maior tranquilidade de proseador que sempre foi, me disse:
- Pai, máquina também é natureza!
Quer definição melhor para este mundo que só os meninos e jovens entendem e que a gente tenta entender!?
Abraço e até a sua próxima crônica.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

NEUSA Mª SERRANO (ES)
Ei vizinha. Que delícia de conto, verídico em todas as fases. Retornei à minha infância, à primeira sala de aula, à primeira professora. Será que colocar a criança ajoelhada em caroço de milho e palmatória acontecia só nas escolas de Minas? Passei por tudo isso. Parece até que existia uma cartilha. As famílias educavam os filhos da mesma forma. Me vi em vários momentos de seus relatos. Qto à educação moderna, acho muito louvável o incentivo, o estímulo ao desenvolvimento motor e intelectual, mas ocorreu uma liberação, uma liberdade muito grande na tal modernidade. Essa liberdade acabou por mudar, totalmente, o comportamento dos professores e dos pais. Então, alguns alunos/filhos foram perdendo o respeito pelos mestres, pelos pais. Isso não é bom. Acredito que a tecnologia é a grande responsável por essas mudanças e pelas novas famílias que foram surgindo. Parabéns!!!
----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Sua crônica, linda, me deixou pasma, já que sou, ao menos, 20 anos mais velha que vc. Educada no Colégio do Carmo, em Vitória, sentia-me amada pelas Irmãs Vicentinas. O pior castigo era "ficar no canto" ou escrever 50 vezes (na hora do recreio) "sou uma menina comportada" - tarefa que eu repassava à coleguinha Stela, em troca de desenhos de flores e joaninhas em seu caderno. Havia, sim, alguns excessos quanto à moral cristã, mas nunca castigos físicos. Seu relato lembrou-me o livro Cazuza, de Viriato Corrêa (anos 20) - um dos meus preferidos então (eu já era "rato de biblioteca). Vc é uma grande historiadora do que, ainda hoje, prevalece no Brasil - as diferenças regionais. AMEI!
Obrigada, querida Jô, por mais essa pérola!
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

MARIA INÊS NASCIMENTO  (MG)
Oi Jô, acabei de ler sua crônica. Se a sua narrativa não é ficção, sua infância e primeiros tempos na escola, foram bem mais difíceis que os meus. Nunca passei por castigos corporais na escola, sabia disso de tempos mais antigos. De fato, muita coisa mudou para melhor, mas concordo com você que a perda do respeito é um mal maior, que qualquer melhoria. Lamentável. Ótima crônica. Bjs
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

FRANCISCO AURÉLIO RIBEIRO (ES)
Compartilho com vc essas mudanças. Meus netos tb não são nada do que fui. Acho-os estranhos em seus mundos digitais. Nós tb devemos ser dinossauros pra eles. Enfim, mudaram-se os tempos. Parabéns pela crônica. Bjs.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

NEITH CRUZ (MG)
Jô, sua inspiração e suas lembranças são presentes de Deus! E Ele sabe o que faz! Você aproveita esses dons como poucos! O paralelo entre a avó-criança e seu neto-criança é soberbo, enriquecido de detalhes narrados com a singeleza
e a autenticidade que caracterizam sua escrita. Parabéns mais uma vez!
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

NONA ROSTAGNO (ES)
Boa tarde Jô, só agora tive um tempinho pra ler, que delícia, quantas lembranças! Realmente, a tecnologia trouxe muitos benefícios, mas tirou algumas práticas morais, civis, não só das crianças, mas de todos: respeito, paciência, humildade, boa vontade... etc. uma pena. Adorei sua história, bem parecida com a minha!🙏🏻😀
----------------------------------------------------------------------------------------------------------

ROSARINHA (MG)
Bom dia...adoro seus contos ..quando a gente tá precisando de uma boa leitura.....vc manda sempre um conto novo

MARIA JOSÉ GUIMARÃES  (MG)
Amei receber de vc, para felicidade minha, algo escrito por uma escritora que amo muito por sua maneira tão clara de escrever e sempre nos traz lembrança de quando éramos pequenas. Saudade de vc, amiga.😘😘😘
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

MARIA JOSÉ NUNES (MG)
Como sempre, adorei. Seus netos estão numa outra geração. Não tem tanto tempo entre a sua e de seus netos, mas a diferença de pensamento é muito grande.
O meu neto Heitor, que é o mais novo, quando dá uma passada rápida aqui no domingo, com a família, me diz; - vovó vc pode ir na minha casa, lá não tem ninguém doente.
Ele tem seis anos. Assiste às aulas todos os dias. Como aprendeu a ler sozinho, deixa os colegas para trás. Quando a tia dá atividades para os mais fracos, fica rodando na cadeira e rindo dos outros colegas. Sabe o que é o vírus, sabe como se faz a contaminação. Cobrou-me o uso da máscara quando os acompanhei até o portão.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

FERNANDO ACCHIAMÉ (ES)
Parabéns, Jô. Muito boa a sua crônica - um depoimento que trata literariamente de tempos passados com seus usos e costumes. Um beijo.
O certo é houve mudança radical da nossa geração para a dos nossos filhos e netos.
------------------------------------------------------------------------------------------------------

SÔNIA (Piauí)
Muito legal! Engraçado como era uma época da inocência em todos os lugares, lendo, me vi naquela mesma situação,
Muito legal! Engraçado como era uma época da inocência em todos os lugares, lendo, me vi naquela mesma situação,
As crianças de hoje sabem e entendem tudo... incrível
-------------------------------------------------------------------------------------------------------

MARIA HELENA ARNIZAUT (ES)
Texto excelente, Jô, como sempre! Acho que a resposta à sua última indagação está na difícil tarefa de encontrar o "juste-milieu"...

PENHA (ES)
Olha, sua netinha tem razão. Acho eu tbm q o corona não aguentará subir o morro onde moro. Kkkkk aqui em Matilde.
Estou repassando sua história q é a minha e de muita gente
-------------------------------------------------------------------------------------------------------

VERA MÁRCIA(ES)
Achei dez, Jô!! Muito bom relembrar de crianças do passado (nós mesmas) e observar as crianças de agora. Seus netos são muito espertos!! E penso que, apesar do ensino on-line, que veio para ficar, nada substitui a interação e o convívio que a escola proporciona.👍👍🥰🥰
-------------------------------------------------------------------------------------------------------

CARLA NEVES (ES)
Oi Jo! Bom dia! Acabei de ler sua crônica! Amei! Melhor ainda saber da inspiração pelos netinhos!
-------------------------------------------------------------------------------------------------------

SOÊMIA (ES)
Li sua narração sobre educação. Parabéns. Muito linda sua crônica. Parabéns! AMEI 👏👏🌻🌹Aliás, leio todas. Gosto muito do que você escreve.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------

MARIA DO SOCORRO TERTO (Piauí)
Querida Jô vc é uma excelente escritora, escreve com habilidades e criatividade bem inteligente. Eu acho as crianças de hoje mais sagazes, sabidas mesmo. Elas têm tudo ao redor para contribuir com seu crescimento. Bjs
-------------------------------------------------------------------------------------------------------

ELIZAIDA (RJ)
Obrigada querida Jo.
Estamos em Minas. Voltei no tempo com seu lindo conto. Viajei com vc.
Obrigada.
Bjnhos
------------------------------------------------------------------------------------------------------

AILSE  CYPRESTE (ES)
Infelizmente, Jô, a escola continua com sua linguagem acadêmica que as classes populares não compreendem. O aluno de classe média fala a mesma língua da escola particular que ele frequenta. Mas o da favela, não.
-------------------------------------------------------------------------------------------------------

GILCEIA (ES)
Só devo lhe dizer parabéns por tanto talento, Jô. Adoro viajar com você em seus contos... Faz-me um bem enorme. 👏👏👏
Jô! Que Deus sempre abençoe sua alma cheia de ideias que nos alimenta o coração. Você é ímpar e muito especial.
Muito obrigada por tudo. Adoraria continuar recebendo seus trabalhos absolutamente fantásticos.
Bjs💐💖❤️
-------------------------------------------------------------------------------------------------------

JÚLIA CARVALHO (ES)
Jô querida. Gostei muito. Conheci a palmatória usada por minha mãe. E ainda tínhamos que contar os bolos (como ela chamava cada tapa). Se perdíamos a conta, começava tudo de novo). O caroço de milho era aplicado quando ela nos pegava em uma mentirinha, que era dita, já com medo da palmatória, ou de ficar ajoelhada em cima do caroço de milho. Mas havia também muito amor. Esse, demonstrado de forma diferente.
Sou sua ardorosa admiradora
--------------------------------------------------------------------------------------------------------

LUCIANA DANTAS (ES)
Jô, vc, como sempre, primorosa nos seus contos. Me diverti muito e me lembrei um pouco da minha infância. Não sofri como vc, mas vivi um pouquinho disso tb. E viva a liberdade de expressão dos dias de hj. Infelizmente o ruim de toda essa liberdade é a falta de respeito com os professores. Acho que isso precisa ser mudado urgentemente para que as próximas gerações não sejam tão sem limites quanto a atual. Gde bj!!
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

DENISE MORAES (ES)
Jô deleitei-me com a leitura dos textos. Não sei se consegui postar comentários. Beijo.












sexta-feira, 3 de julho de 2020

ARAPUCA ARMADA


Uma das maiores tresloucuras de meu amigo Carlos foi um casamento, às pressas, com certa moça que acabara de conhecer. Eram praticamente homônimos: Carlos e Carla. O fato é que, pouco antes de conhecê-la, ele havia perdido sua noiva Lívia, num acidente aéreo.

Logo após a viuvez pré-nupcial, foi convidado a trabalhar como engenheiro, no exterior, durante dois anos. A grande firma na qual trabalhava sugeriu-lhe uma estada na Noruega. Carlos não gostaria de ir sozinho, sobretudo a um país cujo idioma desconhecia. Estava indeciso em aceitar a oferta. Sentia-se desarvorado e solitário. Aonde quer que fosse, levaria consigo o luto e a tristeza da perda da amada.

 Certa noite, em conversa de botequim com uma bela loura que acabara de conhecer, soube que ela tinha muita vontade de conhecer a Noruega, terra de seus ancestrais. Mais que depressa, Carlos lhe propôs que partissem juntos. Ele teria, ao seu lado, uma bela mulher para lhe fazer companhia e afugentar a tristeza que o rondava noite e dia. Para sua surpresa, ela aceitou de bom grado. Disse que pediria licença não remunerada no trabalho. Desde então começaram a se ver com frequência, para os planos da longa viagem. Ele confirmou sua ida, junto à empresa. O entusiasmo foi crescendo a cada dia. Subitamente, surgiu um empecilho. A moça era oriunda de família tradicional e de moral ilibada. Sua solteirice não lhe permitia viajar acompanhada por alguém do sexo masculino. Ele não contava com isso. Queria apenas uma acompanhante, mas acabou cedendo. O tempo urgia. Mais que depressa, providenciou-se o enlace matrimonial. Carla adorava viagens internacionais e falava diversas línguas. Como se diz popularmente, foi como se tivessem “jogado um peixe dentro d’água”.

Findo o trabalho no exterior, voltaram ao Brasil e tiveram um filho de nome Raul. Após a licença maternidade, contrataram uma babá, filha de imigrantes alemães. A moça era de uma beleza estonteante. Esguia, longos cabelos com nuances de louro natural, olhos verdes, sorriso aberto, mais belo que os de publicidade de creme dental. Nos finais de semana, os dois iam à praia ou ao clube, juntamente com outros casais de amigos, levando consigo a bela babá, para correr atrás de Raulzinho, entre os veranistas. As esposas usavam maiôs ou biquínis bem comportados, enquanto a loura deslumbrante usava um minúsculo biquini fio dental. Corpo perfeito. Nenhum milímetro a mais, nem a menos. Protótipo da perfeição. Motivo de inveja das senhoras, que a olhavam de soslaio, com ares de contragosto, e motivo de cobiça de todos os maridos presentes, cujos olhares convergiam na mesma direção. Eles não se cansavam de sussurrar uns aos outros menções aos atributos daquela belezura. As esposas, enciumadas, alertavam Carla, ou melhor recriminavam-na por manter dentro de casa aquele “pedaço de mau caminho”. Segundo elas, ser-lhe-ia difícil manter o casamento. Carla sorria tranquilamente e dizia que aquilo não a preocupava absolutamente. As opiniões das demais a respeito de sua postura eram contraditórias. Dir-se-ia que ela acreditava piamente na fidelidade do marido, ou, então, que era uma ingênua panaca. 

Demonstrando total segurança de si e da situação, Carla passou a viajar frequentemente a trabalho, deixando o marido à mercê do natural fascínio despertado pela lindeza da jovem contratada, assediada discretamente no dia a dia e abertamente, na ausência da esposa. A babá fazia-se de difícil, mas esmerava-se nas artimanhas da sedução. Carlos, já cinquentão, em plena “fase do lobo”, sentia-se seguro de seu poder de sedução. Não lhe passou pela cabeça o motivo pelo qual uma linda jovem aceitaria a corte de um cinquentão careca, barrigudo, assalariado e casado. Nem rico era! “Esmola demais, o santo desconfia” diz o ditado popular. Mas Carlos não desconfiava. Durante uma das viagens de Carla, a jovem recebeu do patrão oferta de casa montada, mesa farta e vida ociosa, desde que se amasiassem. Mantendo seu sorriso angelical, ficou de pensar na proposta, deixando-o esperançoso. Com a chegada de Carla, armou-se o circo. A babá relatou-lhe o ocorrido, apimentando, com floreios enfáticos, a proposta indecorosa do marido infiel. Mais que depressa, Carla pediu o divórcio, não sem antes ameaçar contar o ocorrido a toda a família, aos amigos e aos colegas de trabalho. Carlos se sentiu desnorteado. Apesar de ser comum esse tipo de traição, em sociedade falocrata, ele não queria quem ninguém soubesse o motivo da separação, sobretudo sua família. Achava que tal deslize seria por demais desonroso para si. Abriria mão do que se fizesse necessário, para que o motivo da ruptura fosse resguardado.

No momento da partilha, ele não reivindicou seus direitos; simplesmente se deixou levar, arrasado. Se reclamasse, ela poderia abrir o bico. Melhor não arriscar. Sem condições morais de exigir o que quer que fosse, nada demandou. Carla, dona da situação, fez questão de ficar com os bens móveis e imóveis, com uma pensão alimentícia e com a guarda do filho. Deixou-o à beira do cais, de mãos vazias, a ver navios. Tanto no trabalho quanto nos bares da vida, questionado pelos amigos sobre o divórcio, ele fazia questão de aparentar total indiferença ao que lhe havia acontecido. Alegava que recomeçaria do zero, sem problemas: Outra moradia, outra mulher, outros filhos... vida nova!

O interessante é que, em momento algum, ele atinou para o fato de que a babá pudesse estar de conluio com a patroa. Carlos não tinha distanciamento crítico para conjecturas dessa sorte. A arapuca estava armada e, dentro dela, a excelsa loura, com meneios e astúcia. Isso explicava as constantes viagens da patroa. Ela lançava a isca e partia. A artimanha deu certo. O desinfeliz caiu na arapuca e pagou o pato.  Ele só soube da trama entre patroa e empregada, dez anos depois, por meio de uma colega de trabalho, cuja doméstica era prima e muito amiga da babá traiçoeira. Tarde demais para retaliações.

Jô Drumond  - Julho 2020