quinta-feira, 8 de setembro de 2016

MUTIRÃO DOS VELHOS TEMPOS

 Jô Drumond

Algodão
Na década de sessenta, do século passado, ainda criança, presenciei alguns mutirões, nas fazendas da região da Charneca (MG). Naquela época, a lavoura ainda não era mecanizada. O mutirão era uma força cooperativa entre vizinhos, de modo a evitar que se perdesse alguma colheita ou que a erva daninha invadisse os pastos. Algumas vezes os mutirantes preparavam a terra para o plantio: roçavam, capinavam, aravam e plantavam.

O mutirão, também chamado de “treição” (corruptela de traição), era um dos eventos sociais mais apreciados da zona rural; um misto de lazer e cooperativismo. Mantinha-se grande mistério e também certo charme em torno do evento.
O proprietário da fazenda tinha de ser pego de surpresa. Sabia-se, por exemplo, que um deles estava precisando de mão de obra para uma colheita. Caso não a conseguisse, perderia grande parte da safra. Em mutirão, o trabalho que levaria meses a ser realizado, seria concluído em um só dia. Combinada a data, alguém da família do “traído” ficava de sobreaviso, para evitar transtornos de última hora.  Um grande grupo de famílias reunia-se bem cedo, num local previamente combinado, e chegava de surpresa à fazenda onde haveria o mutirão. Os homens aproximavam-se carregando seus instrumentos de trabalho, de acordo com a tarefa a ser executada: enxadas, enxadões, foices, arados, jacás, matracas, entre outros. Quando não havia serviço externo para as mulheres, ficavam todas encarregadas do copioso almoço, das guloseimas para a merenda e da preparação dos quitutes para o pagode noturno. Dependendo do número de participantes, frangos, porcos e garrotes eram abatidos. A comida era preparada na área externa, em grandes tachos sobre improvisados fogões a lenha.
Certa vez, minha mãe foi secretamente avisada de que haveria uma “treição” para meu pai. Ela deveria providenciar provisões, recipientes adequados, enfim, preparar a infra-estrutura doméstica, para que não houvesse nenhum contratempo. O que ela não sabia é que, naquele mesmo dia, haveria também uma “treição” para ela.
Num domingo, acordamos, ao raiar do dia, com a cantoria dos mutirantes. Os homens se aproximavam da sede da fazenda empunhando suas ferramentas de trabalho e cantando. As mulheres, por sua vez, os acompanhavam cantando e erguendo nos braços rocas, cardas, descaroçadores, sarilhos ou meadeiras, dobadouras, balaios e outros apetrechos para a manufatura do algodão. As mais prendadas para a culinária dirigiram-se à cozinha. A maior parte ficou na lida do algodão. Após a panha, feita em equipe, as crianças catavam os ciscos misturados aos chumaços. Em seguida passavam os tufos brancos pelo descaroçador. As mães cardavam e fiavam enquanto as meninas-moças dobavam os novelos e os acomodavam em grandes balaios, sempre rindo, cantarolando ou contando causos. Era grande a descontração. Às onze horas, o berrante ecoou, chamando para o almoço. Foi um momento de confraternização e alegria. No final do dia, finda a tarefa, os homens voltaram do campo em pelotão, empunhando enxadas para o alto, batendo umas contra as outras em ritmo de marcha e cantando repetidamente a estrofe:
Fui passar na ponte
A ponte tremeu
Debaixo da ponte
Jacaré gemeu
Abrindo o pelotão, um deles erguia um tipo de estandarte: um grande pé de milho, com raízes, folhas e espigas, simbolizando o final da tarefa cumprida.
A cachacinha começou a rolar solta antes do jantar, como aperitivo. Após um banho revigorante, todos se prepararam para o pagode noturno. Os que não participaram do mutirão, se quisessem dançar, teriam que pagar, pela entrada, o equivalente a um dia de serviço. Como instrumentos musicais havia: sanfona, reco-reco, viola e outras percussões improvisadas com utensílios domésticos. Muita dança, alegria e comilança. Era a típica festa familiar. Velhos, adultos, adolescentes e crianças, todos dançando a não mais poder: adultos com crianças, mulheres com mulheres, mães com bebês nos braços, e assim por diante. Só não se via homem com homem. Isso, jamais!
Dos flertes e namoricos desses pagodes germinavam os futuros enlaces matrimoniais. Nos mutirões, a alegria de ajudar o próximo era somada à alegria de se fazer amigos. Estreitavam-se os laços de amizade. Tanto na chegada quanto no término do serviço, os donos da casa eram erguidos nos braços dos mutirantes, entre vivas e aclamações. Com muita honra e satisfação, cada traído recebia sua “treição”.



*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGE)