quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A ERA DIGITAL

Jô Drumond


O acesso à internet mudou totalmente os hábitos dos cidadãos. Prescinde-se hoje de ir ao correio para postar correspondências. A comunicação se faz em questão de segundos, via satélite, nos quatro cantos do mundo.  O jornal impresso é quase obsoleto. Tornou-se uma espécie “re-vista”, pois não apresenta nada mais em primeira mão. A internet traduz, automaticamente, notícias escritas em outros idiomas para a língua materna do leitor. Evidentemente, não se trata de boa tradução, mas eficiente na divulgação de informações importantes, em tempo real.

 Antigamente, se alguém dissesse que, no futuro, se poderia, ao mesmo tempo, visualizar e falar com alguém que se encontrasse do outro lado do planeta, arriscar-se-ia a ser condenado à fogueira. Sabe-se que em 1633, preso pelas garras da inquisição, o grande matemático, físico, astrônomo e filósofo Galileu Galilei teve que “desdizer” o resultado de suas pesquisas para evitar a morte. Obrigado a se retratar, na questão do heliocentrismo, ele se viu na contingência de afirmar, durante o julgamento, que a Terra não girava em torno do Sol. Mas murmurou entre dentes: “eppur si muove” (e, no entanto, ela se move).


Nos dias de hoje, o poder constituído se sente perdido, sem saber como controlar o vento que sopra em diversas direções. A classe política se encontra (ou se perde) nos dédalos do labirinto virtual. O povo, mais informado, está mais atento ao que se passa nos bastidores do governo. A turba deixou de ser apática e passiva, facilmente forjada pelos poderosos. Atualmente, a opinião pública pode ser manipulada em tempo recorde. Isso é verdade, mas o povo está aprendendo, a duras penas, a “separar o joio do trigo”.

Minha geração, nascida em meados do século passado, criada antes do advento da revolução tecnológica, tem sofrido substanciais interferências em seu way of life, adaptando-se ao novo modus vivendi. Os pais, muitas vezes, se sentem indefesos e impotentes para controlar os filhos que têm acesso a uma infinidade de informações, boas ou nefastas, que podem interferir em sua formação. Atualmente há, por exemplo, um jogo de desafios que acontece na calada da noite, longe da vigilância paterna. Os jovens postam os desafios aos quais são submetidos. No jogo da Baleia Azul, o último desafio, como se sabe, é o suicídio, muitas vezes filmado e divulgado virtualmente, em tempo real, uma espécie de “Big Brother” macabro. É difícil impedir aos jovens o acesso à internet. O que fazer para salvaguardar nossos filhos e netos? Essa questão está sendo amplamente debatida nos dias de hoje.

Por outro lado, as redes sociais proporcionam momentos de grande contentamento e nostalgia, uma espécie de retorno ao passado, por meio de grupos de ex-colegas que se reencontram décadas após a formatura e que relembram com saudosismo os anos de juventude sem televisão, sem telefone “sem lenço, sem documento”. As redes sociais resgatam antigas amizades, antigos amores e possibilitam novos relacionamentos. Os idosos e as pessoas que moram sozinhas, tendo o mundo diante de si, sentem menos o peso da solidão.  Expressam-se quando bem entendem, com retorno instantâneo de seus interlocutores.

 Parece um contrassenso ter saudades da falta de conforto, da falta de rádio e televisão, da falta de celular, da falta de computador, da falta da internet.... No entanto, isso acontece. Durante a juventude de nossos avós, não havia carro, avião, nem energia elétrica. Eu mesma me lembro com nostalgia das rodas de contação de histórias, à luz de lamparina, na fazenda onde fui criada, numa época em que não existia eletrificação rural. O que se fazia, naquelas noitadas míticas, era a genuína literatura oral. Depois, numa cidade de interior, onde estudei, antes do advento da televisão, faziam-se rodas de vizinhos, à noite, com cadeiras na calçada, para brincadeiras típicas da época, com a criançada, ou para um dedo de prosa, enquanto não vinha o sono.

Deve ser impensável para as futuras gerações uma vida sem acesso à tecnologia. Nossos descendentes só saberão de nosso estilo de vida, se alguém se dispuser a registrar os usos e costumes da época em que viveu. Eles terão, certamente, outros divertimentos mais interessantes, que talvez não propiciem a convivialidade de antes, cada vez mais escassa em nossos dias. Cada um se diverte sozinho, diante do laptop, de um tablet, ou tendo às mãos um telefone conectado com o mundo.
No futuro, com o devido distanciamento crítico, muitos estudiosos, sobretudo  sociólogos e antropólogos, se debruçarão em pesquisas sobre a mudança dos aspectos consuetudinários de nossa geração. Conhecemos ambas as faces da moeda e vivenciamos o “antes” e o “depois” dos recursos advindos com as novas tecnologias.

Aconteceu recentemente, num grupo de whatsApp do qual participo, algo que se presta a reflexões quanto ao comportamento atual do ser humano. Trata-se de um grupo numeroso, com uma postagem diária próxima a uma centena de mensagens. Certo dia, tal grupo parou de funcionar espontaneamente, sem nenhum consenso prévio. Nenhuma mensagem durante todo o dia. Silêncio. Branco total. Naquele dia um dos integrantes do grupo cometera suicídio. Estranhamente, em vez de usarem a rápida e eficiente ferramenta de comunicação de que dispunham para a divulgação da notícia, os usuários optaram por ligações telefônicas, relegadas, há muito tempo, a segundo plano. O branco na caixa de mensagens foi uma espécie de luto, em respeito à dor dos que ficaram e à decisão de quem optou pela partida.

Há pessoas mais conservadoras que resistem tenazmente às mudanças dos meios de comunicação. Em breve, não haverá mais analfabetos digitais. A internet veio para ficar. Não se pode mais viver sem a praticidade, a facilidade e a agilidade desse tipo de comunicação. Evidentemente, como tudo neste mundo, ele comporta aspectos positivos e negativos. Cabe a cada usuário escolher e trilhar seu caminho virtual, como melhor lhe convier.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

CIDADE DAS ORQUÍDEAS

Certo dia, dentro de um orquidário, na cidade de Marechal Floriano (ES), ouvi uma criança, de cerca de dez anos, perguntar à mãe por que nomes de flores são usados para mulheres e não para homens.

Eu nunca havia atinado para isso. Comecei então a puxar da memória nomes de ex-colegas, amigas e parentes: Margarida, Rosa, Verônica, Perpétua, Angélica, Gláucia, Hortênsia, Celestina, Dayana...  Todos os que estavam por perto, funcionários e clientes, entraram na brincadeira. Cada um ia citando o que lhe vinha à cabeça. Em cidade pequena, o contato humano é muito mais rápido e direto. Em pouco tempo, parecia uma roda de amigos. Outros nomes menos comuns vieram à baila: Camélia, Dália, Íris, Lília (ou Lílian), Magnólia, Yasmin(e), Lélia (ou Laelia... Aos poucos emergiram do fundo da memória outros ainda mais raros como Lis, Amarilis... Lembrei-me de Açucena, nome afetivo da personagem Doralda, do conto Dão-la-la-lão, de Guimarães Rosa. Alguém disse que Daisy, nome bastante comum no Brasil, significa margarida, em inglês.

AMARÍLIS
Após ter citado todos os nomes que me vinham à memória, pedi que tentassem se lembrar de conhecidos do sexo masculino com nomes de flores. Ninguém conseguia se lembrar. Realmente, não se vê nenhum homem chamado Antúrio, Cravo, Crisântemo, Girassol, Lírio, Amaranto, Hibisco, Junquilho... Lembrei-me do poeta simbolista capixaba Narciso Araújo. Expliquei ao menino, e, por conseguinte, aos presentes, que a palavra “narcisismo”, desconhecida dele, mas conhecida dos adultos, está relacionada a essa flor, que floresce à beira da água e se inclina para baixo, como se quisesse ver a própria imagem para apreciar-lhe a beleza. Os “narcisos”, de carne e osso, se apaixonam pela própria imagem. Por isso se comprazem diante de um espelho.

ANGÉLICA
 Lembrei-me também de um tio meu chamado Jacinto, que é nome de uma flor um tanto masculina, de formato meio fálico. Meu curtíssimo repertório já tinha se esgotado. A mãe do menino disse então que conhecia um vizinho chamado Alisson, cuja família lhe dissera que esse nome pode ser usado indistintamente para ambos os sexos, e que pode ter diversas grafias (Allison, Alisson, Alyson, Allisson, Allyson, Alysson e Allysson).  Disse também que é um nome bastante comum em países de língua inglesa, para nomear pessoas do sexo feminino.

GLÁUCIA
Veio-me à cabeça, naquele momento, o nome da cidade onde estávamos: Marechal Floriano. Perguntei quem era o tal Marechal. Ninguém do grupo sabia nada a respeito dele. Minha eterna mania de professora obrigou-me a lhes dizer que Marechal Floriano Peixoto havia sido nosso primeiro Vice-Presidente da República, no governo Deodoro da Fonseca. Com a renúncia deste, Floriano assumiu o cargo de Presidente do Brasil. Sua esposa Josina (minha xará), de cujo nome nunca me esquecerei, assumiu o posto de primeira dama do País, no início do século passado.

ÍRIS
 Um rapazinho me interrompeu para retrucar:

 - Péra aí! Floriano não é nome de flor!

 - Realmente não é, mas significa aquilo que floresce, que prospera -  E continuei, em tom professoral: Nosso Marechal floresceu tanto que o nome da cidade de Desterro, em Santa Catarina, foi mudado, malgrado seus habitantes, para Florianópolis. E não parou por aí. Em 1900, durante uma rápida visita a esta cidade, onde estamos, chamada antigamente Braço do Sul (referência ao afluente do rio Jucu, que corta a cidade), ela teve o nome
JACINTO
trocado, em sua homenagem. A meu ver, o nome mais apropriado para esta cidade seria Orquidópolis. Olhem em todas as direções! Vejam que maravilha! Orquídeas, orquídeas e mais orquídeas. Essas lindas flores encontram aqui, na Mata Atlântica, altitude e clima propícios. Por isso existem em grande quantidade e variedade. Despedi-me e saí, carregando nos braços diversas mudas de orquídeas.

Justamente devido ao clima ameno e à topografia da região, escolhi um pedacinho desse paraíso, com o intuito de curtir a aposentadoria. É num recanto dessa mata que tenho passado meus melhores momentos. Cuido do orquidário, do jardim, leio, pesquiso e escrevo meus livros, longe da azáfama da metrópole. No “meu recanto” troco o alarido da cidade pelo silêncio; a poluição pelo ar puro; a água tratada por nascentes; a frieza do asfalto pela
NARCISO
exuberância da mata; a iluminação noturna pelas estrelas; o relógio digital pelo biológico; a correria pelo sossego; a multidão pela solidão benfazeja.

O silêncio reinante, às vezes, é quebrado apenas pelas vozes da mata: cicios dos insetos, gorjeios dos pássaros, o assovio do vento e o rangido do bambuzal, que se verga em deferência à sua passagem.

Troquei de bom grado as caminhadas matutinas da Praia de Camburi, ao som de buzinas, com trânsito pesado e ar poluído, por monóxido de carbono, por caminhadas ecológicas, bem mais aprazíveis. Em todos os percursos, sentem-se
VERÔNICA
fragrâncias de flores silvestres e o cheiro de mato verde. Entre folhagens e ramagens, farfalhejos provocados pela fuga de micos, preás, pacas, tatus e veados-mateiros, assustados com a presença humana.

Esse foi o estilo de vida de minha infância, na fazenda de meus pais, no sertão de Minas Gerais, e hoje é o estilo de vida escolhido por mim, para a maturidade, na Mata Atlântica do Espírito Santo.

Devido à brincadeira onomástica, no orquidário, incitada pela criança, acabei descobrindo, mais tarde, acepções florais ignoradas por mim, em alguns nomes muito usuais, como: Lúcia (ou Luíza), Cássia, Dalva e Emília.

Cada flor tem simbologias diversas, que variam no espaço e no tempo, assim como de cultura para cultura. No entanto, sabe-se que, grosso modo, a flor é, sobretudo, um símbolo antigo e universal do princípio passivo (feminino), do nascimento e do ciclo vital. Está ligada à beleza, à juventude, à paz, à primavera, à pureza... Tanto é que se usa o verbo “deflorar” (perder a flor) para indicar a perda da pureza vir(a)ginal.

ORQUÍDIA


segunda-feira, 27 de novembro de 2017

TRABALHO À DISTÂNCIA

Há cerca de uma década, tive acesso ao resultado de uma enquete feita na cidade de São
Jô Drumond
Paulo, cujo objetivo era detectar os maiores sonhos de consumo dos habitantes daquela megalópole. Por incrível que pareça, os maiores desejos dos paulistanos correspondiam ao que se tem e ao que se vive em pequenas cidades: morar numa casa com jardim e quintal, almoçar juntamente com a família, morar perto do trabalho... Esse resultado deixa patente que o progresso pode representar um retrocesso na qualidade de vida dos cidadãos.

Sabe-se que os problemas enfrentados com resignação (ou não) pela maioria dos habitantes das metrópoles são os mesmos: a correria do dia a dia, o ritmo frenético da cidade grande, o trânsito infernal, engarrafamentos, poluição, exiguidade dos apartamentos, espigões, falta de relacionamento amistoso com a vizinhança... Na rua, cada um representa apenas um dado estatístico. Um desconhecido entre desconhecidos, após oito horas diárias de trabalho, acrescidas de uma a quatro horas no trânsito, volta cansado e sem disposição para dar atenção à família. O salário, na maioria das vezes, não compensa o transtorno, nem o esforço.
Com o advento do emprego flexível, devem-se revisar as relações trabalhistas.  Abole-se a tradição de “bater ponto”. O trabalho pode ser feito na rua, numa praça, num parque, em casa, enfim, em qualquer lugar, desde que haja conexão. A cada dia, um maior número de profissionais adere ao trabalho remoto. Reuniões são feitas à distância, pelo Skype, contatos profissionais são feitos pelas redes sociais, sobretudo pelo WhatsAppPara quem quer abrir seu próprio negócio, há o home based, uma espécie de franquia que permite gerenciar tudo sem sair de casa. Os investimentos são mais baixos; evitam-se, por exemplo, a compra e a manutenção de um ponto comercial.


Nesse período de transição ainda há insegurança e dificuldade de adaptação, mas com o tempo tudo se ajeita. A comunicação via satélite é um caminho sem volta. No século XXI, os trabalhadores terão que se adaptar à Revolução Tecnológica, assim como os do século XVIII tiveram que se adaptar à Revolução Industrial. 

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

DUPLA PERTENÇA

Meu corpo e eu somos “um”. Formamos um todo mais ou menos ambíguo, interdependente. Posso acabar com ele, mas ele também pode acabar comigo. Isso nos faz cúmplices um do outro. Se uma enfermidade nele se instala, um terceiro (o médico) intervém entre o eu-sujeito, e o eu-corpo-objeto. Torno-me simples observadora de mim mesma. De legítima dona, passo a importuna testemunha, a acompanhar o desenrolar dos fatos.
Recentemente, ao dar entrada em um centro cirúrgico, como paciente, tive a sensação de perda de integridade. Temporariamente, meu eu-sujeito deixou de existir. Era um mero corpo desnudo, tocado por mãos desconhecidas, alvo de agulhas, barbitúricos, bisturis e do que mais se fizesse necessário.  Minha vida ficou (in)voluntariamente em mãos alheias.  Ao voltar a mim, tentei não atrapalhar aqueles que cuidavam da dor do meu “corpo-objeto”, da dor que também era minha.

Meu corpo e eu somos “um”. Através dele me relaciono com o mundo circundante. Estranha dobradiça de dupla pertença. O sensível e o inteligível, distintos e interdependentes, se mesclam: relação conjuntiva de elementos disjuntos, irremediavelmente presos um ao outro.

Meu corpo e eu somos “um”. Sem mim, nada é; sem ele, nada sou. Sinto, se sente; vivo se vive. Juntos, somos um ser pensante e passante.

domingo, 24 de setembro de 2017

O DIÁLOGO DAS FORMAS EM PARIS

Considerando-se como “diálogo das formas” o contraste entre estilos artísticos de diferentes épocas dentro de um mesmo espaço, percebe-se que a interferência do moderno em contraposição ao antigo pode dar excelente resultado, ou não.
Há quem diga que a beleza não se encontra na obra de arte, mas na visão de quem a observa. Há obras consideradas lindíssimas por alguns, e sem beleza alguma por outros. O gosto estético é pessoal e intransferível. Há quem aprecie a arte acadêmica e também quem a abomine. Acontece o mesmo com a arte moderna.

Seguem abaixo algumas ponderações de cunho pessoal a respeito de alguns  contrastes arquitetônicos parisienses, (des)agradáveis aos meus olhos.

No centro histórico, muitas vezes, o visitante se surpreende com a brusca mudança do estilo arquitetônico. Por exemplo, ao chegar-se ao famoso museu do Louvre, passando pelo pequeno arco do triunfo de Constantino, perfeitamente integrado à paisagem urbana, depara-se com a Pirâmide de Cristal, que hoje se presta como principal entrada do museu.

Trata-se de um choque visual de rara beleza. Na época de sua construção, houve acirrada polêmica e debates acalorados pela televisão. Grande parte da população era radicalmente contra. Apesar da oposição, o projeto foi em frente. Hoje em dia, mesmo aqueles que eram contra apreciam o monumento. A Pirâmide de Cristal tornou-se a terceira obra mais apreciada do museu do Louvre, depois do quadro da Joconda (Monalisa) e da escultura de Vênus de Milo. Realmente, a falsa leveza (de 95 toneladas) do metal, associada à transparência do cristal, em oposição ao entorno, forma um conjunto lindo de se ver.

A PIRÂMIDE DO LOUVRE
Bem pertinho dali, no pátio interno do Palais Royal (Palácio Real), construído para residência do Cardeal Richelieu, em 1633, há uma interferência modernosa, datada de1986, que não me agrada. As 260 colunas de Büren, listradas em preto e branco, com alturas diferenciadas, não foram uma feliz ideia. Essa interferência paisagística causou também grande polêmica e quase foi destruída por diversas vezes, por ordem da prefeitura e da Secretaria de Cultura, mas conseguiu se manter.  A meu ver, um simples jardim no local daria melhor resultado. Como disse anteriormente, essa é uma opinião estritamente pessoal. Certamente há quem goste dessa interferência nos jardins do palácio.

PALAIS ROYAL                                             COLUNAS DO BUREN                 

A Ópera (ou Palácio) Garnier, em estilo eclético, foi construída por Charles Garnier no século XIX. Na década de 60 do século XX, o pintor Marc Chagall foi convidado a substituir os afrescos existentes no teto dessa Ópera. Sua obra pictórica causou escândalo na época, tendo em vista as cores fortes e o estilo do pintor, em total dissintonia com a suntuosidade do palácio. Nesse caso, faço coro com os que se escandalizaram pela discrepância. Sua obra ficaria muito bem em salas modernas, mas não na Garnier. Não discuto a importância, nem o valor do que foi pintado diretamente por ele no teto do teatro, mas, como já disse, o diálogo das formas entre estilos de diferentes épocas nem sempre é louvável. Esta é, a meu ver, uma tentativa que não deu certo. Veja a magnificência do interior da ópera.

Outra interferência moderna que desagrada a muitos pela quebra do estilo arquitetônico da Cidade Luz, no bairro  mais antigo de Paris, o Marais, foi a construção do Centro Cultural Georges Pompidou, conhecido também como Beaubourg. Trata-se de um complexo arquitetônico extremamente arrojado, do final do século XX. Ele é considerado marco do início da pós-modernidade nas artes.  

É um dos principais exemplos de arquitetura higt tech, de inegável importância devido ao inovador projeto de sustentação e também devido às tubulações aparentes. Esse Centro Cultural, apesar de ser um dos locais mais visitados de Paris, não é esteticamente agradável a meus olhos, pelo fato de ter interferido enormemente na paisagem urbana do Marais. Seu porte é desproporcional ao espaço ocupado; sua aparência não coaduna com as construções antigas do entorno. Minha filha, que é arquiteta, caiu de amores por essa geringonça. A seu ver, o Beaubourg é o mais lindo projeto arquitetônico da cidade.

Bem próximo desse centro cultural, há o atual centro comercial Les Halles, que muito me agrada, ocupando parte do grande espaço do antigo mercado de atacadistas de alimentos frescos. Realmente gosto não se explica.

A Ópera Bastille, com modernas curvas vitrificadas, construída na Praça da Bastilha, nem de longe lembra a antiga prisão da Bastilha, situada antigamente na mesma praça. Porém trata-se de uma bela construção que, apesar de não se adequar ao entorno,  é agradável de se admirar.

Uma paisagem urbana moderníssima, linda e de agradável vivência, é o bairro La Défense,  onde a presença do vidro é preponderante na leveza das construções. Arranha-céus brotam do chão, numa floresta de vidro, em contraste com o peso das construções neoclássicas, predominantes na maior parte da cidade. La Défense é a Paris moderna, de aspecto prático e futurista. Esse bairro, iniciado na década de sessenta do século passado, foi inspirado na arquitetura norte-americana. Há turistas que o amam, outros que o odeiam. 

Alguns deles se negam a visitá-lo, o que é uma pena. É um lugar amplo, belo, agradabilíssimo de percorrer, com belas construções em estruturas metálicas. Trata-se de um audacioso projeto de urbanização, que deu certo, visitado anualmente por mais de oito milhões de turistas. Ali moram vinte mil parisienses e ali trabalham duzentas mil pessoas. O Shopping Le Quatre-Temps, ao lado do Arco, é o maior centro comercial da região parisiense.
O Arco (retangular) da Défense, que se vê na foto, faz contraponto ao famoso Arco do Triunfo, construído por Napoleão na Praça da Estrela.

Esse novo arco faz eixo com os principais pontos turísticos parisienses. Partindo da direção contrária, ou seja, do museu do Louvre, estende-se o Jardin des Tuilleries, até a Place de la Concorde, onde há um antigo obelisco egípcio e onde se pode visitar o museu Orangerie,  em cujas paredes Monet pintou suas famosas ninfeias. Na sequência, entra-se na Avenida Champs Élysées, a mais famosa do mundo, com suas construções magnificentes, jardins e palácios. Do lado esquerdo veem-se o Grand-Palais e o Petit-Palais, dois palácios colossais, onde há eventos culturais, assim como exposições artísticas fixas e temporárias. 

Tal avenida termina na Praça da Estrela, na qual 12 ruas se cruzam formando uma estrela, em cujo centro se encontra o famoso Arco de Triunfo, construído por Napoleão Bonaparte. A partir dessa praça, a mesma avenida muda de nome. Passa a se chamar Av. de La Grande Armée e, que vai dar no novo bairro La Défense, exatamente na praça, em que há a réplica moderna do arco. Nas proximidades, há uma torre de vidro, arredondada, em contraponto à Torre Eiffel. A sequência dessa avenida vai até o aeroporto internacional Charles de Gaulle.

Em Paris, há muitas outras construções modernas, como a sala de concertos inaugurada recentemente, La Seine Musicale, ao lado do rio Sena, num bairro afastado, chamado Boulogne-Billancourt, ou como a Philharmonie de Paris, a maior de todas as salas de concertos da cidade, situada no Parque de la Vilette. Tais construções, de grande impacto arquitetônico,  estão fora do Centro Histórico e se integram ao entorno.

Na Cidade Luz, uma das mais cosmopolitas do mundo, o “diálogo das formas” pode impactar positivamente ou negativamente os visitantes, (des)agradando simultaneamente milhões de turistas que ali circulam, sem cessar. A diversidade de nacionalidades, de etnias e de credos pode ser pacífica, ou não, assim como a diversidade estética.

Jô Drumond




Josina Nunes Drumond

Pós doutora em Literatura Comparada, pela UFMG,Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e Mestre em Estudos Literários, pela UFES. É Pós-graduada (latu sensu) em Arte e Cultura Barroca pela Universidade Federal de Ouro Preto e em Literatura de Língua Portuguesa, pela UFES. Tem três graduações: Letras pela UFMG, Lingua, Literatura e Civilização Francesas, pela Université de Nancy (França) e Artes Plásticas pela UFES.

Autora de vários livros, Jô Drumond tem artigos, contos, crônicas, poemas e ensaios publicados em antologias, jornais, revistas de pós graduação, anais de congressos e na internet.


É tradutora juramentada do Estado do Espírito Santo. Membro da diretoria da Academia ES de Letras e da Academia Feminina de Letras do ES. É membro também do Instituto Histórico e Geográfico do espírito Santo, da Academia Feminina Mineira de Letras, do Conselho Estadual de Cultura e do Comitê da Aliança Francesa de Vitória.

GRILHÕES


Próximo à cidade de Castelo (ES), tive a oportunidade de conhecer a antiga Fazenda Centro, construída por mão de obra escrava, em 1854, cuja senzala abrigava cerca de 600 escravos. O belíssimo casarão, em estilo colonial, com mais de mil metros quadrados, foi tombado pelo Patrimônio Histórico do ES. Além de ter sido uma fazenda muito produtiva e um grande marco para o desenvolvimento econômico da região, foi também palco de manifestações históricas e culturais, transformando-se mais tarde em seminário, e, depois, em noviciado.

Além da indiscutível beleza e imponência do imóvel, o que me atraiu a atenção foram as histórias que o envolvem desde sua construção, e que incitam a imaginação do visitante. Ao percorrer os cômodos dos dois andares, eu imaginava quantas pessoas ali tinham nascido, vivido, amado, sofrido, trabalhado e morrido. Quanta gente havia se debruçado naquelas 79 janelas para respirar o ar puro, para apreciar a paisagem, para vigiar os escravos ou para averiguar ao longe, na estrada de chão batido, se algum convidado se aproximava.

Segundo consta, o primeiro proprietário, latifundiário e escravocrata, diferentemente dos demais de sua categoria, apreciava as artes, em geral.  Destarte, teve uma iniciativa benfazeja. Criou, para seu bel-prazer e para o entretenimento dos visitantes e de todos que ali viviam, um grupo de teatro e uma banda de música, ambos compostos por escravos. Os integrantes da “troupe” e da banda se sentiam importantes pela participação e adquiriam novos aprendizados referentes à sua atuação.

Os demais escravos se vangloriavam de viver na única fazenda da região a possuir tais privilégios. Os visitantes, surpresos e encantados pela performance dos atores e músicos, se esmeravam em sentenças elogiosas. O anfitrião não cabia em si de contente pelo reconhecimento. Muitas festas eram ali organizadas, com o intuito de divulgar a inovação e a grandiosidade desse senhor de escravos que amava e difundia as artes. Poder ele já tinha de sobra.

O que almejava era a glória. Via nas festas um modo de alcançá-la. Os que por ali passavam poderiam divulgar seu grande feito Brasil afora. Ele se sentia mais liberal que os demais escravocratas; os escravos, por sua vez, sentiam menos o peso dos +grilhões. Tal inovação amenizava, de certa forma, o aspecto sombrio da escravidão: restrição da liberdade de ir e vir, desconforto das senzalas, trabalho não remunerado, má alimentação, submissão total aos patrões, punições, torturas, enfim, as péssimas condições de vida.

Considerando as devidas proporções, pode-se fazer um paralelo entre os grilhões da Fazenda Centro e os do Palácio de Versalhes. Ambos os locais serviram de cenário para o grande espetáculo da vida, mas de uma vida cativa, à mercê de dois diferentes tiranos.

Na corte mais cobiçada de todos os tempos, a de Luís XIV (França – século XVII), vivia-se com grande luxo e ostentação. O Palácio de Versalhes era invejado e copiado por outros reinos, devido à sua beleza e magnificência. No entanto esse Palácio nada mais era que uma imperceptível prisão dourada. O Rei Sol fazia questão de manter toda a aristocracia girando a sua volta. Atraiu da província para a corte os grandes e poderosos, com as respectivas famílias, e os manteve sob sua mira, numa vida festiva e luxuosa. Para o entretenimento dessa gente, investiu no mecenato artístico, atraindo para a corte os melhores e mais variados artistas, assim como grandiosos espetáculos de teatro, de dança e de música. Seu falso objetivo de entreter escondia outro menos nobre: o de reduzir o poder dessa classe e de torná-la incapaz de uma nova revolta de aristocratas, como a Fronde,  ocorrida anteriormente (1648/1653), que acarretou muitos dissabores.

Em Versalhes, era impossível sentir-se preso nos artísticos jardins a perder de vista, projetados pelo famoso arquiteto Le Nôtre, nas imensas galerias barrocas decoradas a ouro, nos maravilhosos bailes na Galeria dos Espelhos, nem nos gastronômicos banquetes regados com os melhores vinhos do reino. No entanto, para manter a soberania, o intuito absolutista do rei era justamente o de amordaçar invisivelmente seus súditos pelos sentidos (paladar, audição e visão), pelo luxo, requinte e magnificência das festas e eventos culturais.

Em todo tempo e lugar, em todas as comunidades, há grilhões sociais com grande poder de cerceamento da liberdade, alguns deles quase imperceptíveis: religião, família, casamento, trabalho, escola, hierarquias… Às vezes eles são camuflados. Por exemplo, a união matrimonial, por mais feliz que seja, carrega seu fardo opressor, sobretudo o da fidelidade. Atualmente, há escravos até mesmo das novas tecnologias. Há quem não consiga mais viver sem smartphone, sem internet, sem redes sociais… Desejamos todos que a “Liberdade abra a asas sobre nós”, mas, na realidade, estamos inexoravelmente presos às teias sociais.

Jô Drumond

FESTA DA MÚSICA


Em Paris há um grupo amigos de longa data, que passam as férias de verão sempre juntos, em Saint Tropez. No dia em que chegamos àquela cidade, acompanhados por um casal de amigos parisienses, fomos apresentados a esse grupo, na casa de veraneio um deles. Num varandão que dava para o mar, uma grande roda se formou em torno de uma mesa, para bebericar e jogar conversa fora.  Num dado momento, alguém sugeriu que cada um cantasse ou declamasse algo. Quando chegou minha vez, eu disse que iria cantar o refrão de uma longa canção infantil, que eu havia aprendido quando criança, mas da qual me lembrava apenas algumas estrofes. Comecei então:

Il  était un petit navire

Il était un petit navire

Qui n’avait ja ja jamais navigué

Qui n’avait ja ja jamais navigué

Ohé, ohé !

Ohé ! Matelot !

Num piscar de olhos, todos resgataram, do fundo da memória, essa canção que haviam aprendido também na infância, e cantaram entusiasmados, a plenos pulmões, as dezesseis estrofes. Foi uma espécie de congraçamento muito emocionante! Um deles, comovido, chegou a me agradecer por ter-lhe trazido de volta os bons “tempos que não voltam mais”.

Saint Tropez é cidade de gente grã-fina. No cais ficam ancorados os maiores e mais chiques iates dos magnatas europeus. A diária, dependendo das dimensões da embarcação, custa alguns milhares de euros, ou seja, mais do que a diária de qualquer hotel cinco estrelas. É um universo muito distante do nosso.

Por coincidência, chegamos a essa cidade às vésperas da tradicional Festa da Música. Tal tradição, começada em Toulouse (França), em 1976, acontece anualmente em uma centena de países, no dia 21 de junho, no qual se comemora o solstício de verão do hemisfério norte, quando a duração do dia é a mais longa do ano.

Tivemos a oportunidade de presenciar in loco a movimentação que a festa acarreta. Estávamos de férias em Saint Tropez, como foi dito, com um casal que havia sido convidado para comemorar o Dia da Música, em grande estilo, numa mansão próxima à cidade, incrustada na vertente de uma mata virgem. Pelo fato de sermos amigos dos amigos dos anfitriões, meu marido e eu acabamos sendo convidados para a noitada gastronômica regada a bons vinhos e embalada por boa música.

Durante a festa, à medida que íamos sendo apresentados, muitos se aproximavam para fazerem perguntas sobre o Brasil. Únicos estrangeiros no local, tornamo-nos foco de curiosidade, como se fôssemos espécie exótica da terra do samba, do sol e do futebol. Lá pelas tantas, quando o teor etílico no sangue estava mais alto que os decibéis musicais, conversa vai, conversa vem, acabaram nos perguntando se podíamos fazer uma demonstração de samba.

Sabendo que estaria na França no dia da Festa da Música, eu havia colocado na bagagem, por precaução, CDs com ritmos de nossa terra. Com a alegria e animação características de nosso “patropi”, prontificamo-nos a lhes mostrar o que havíamos aprendido em anos de academias de dança. Fomos vivamente aplaudidos. Ao notar o interesse geral, perguntei se gostariam de aprender o passo básico de samba no pé. Todos se interessaram. Fizeram então uma grande roda em torno de nós dois. 

Começamos lentamente o passo contando 1,2,3, que aos poucos ia se agilizando para alcançar o ritmo do samba. Antes de atingir o gingado, eles perdiam totalmente o ritmo. Recomeçamos lentamente por diversas vezes, em vão. Percebi a inutilidade do esforço. Eu me dei conta de que eles jamais conseguiriam conciliar o passo ao molejo do corpo, em poucos minutos. O passo básico, apesar de aparentemente simples e fácil, corresponde a uma difícil harmonia de movimento dos pés, dos braços e do quadril, sem perder a cadência.

Sugeri então, mostrar-lhes como se dança outro ritmo nosso, o forró, desconhecido por todos. Logo após a apresentação do forró, coloquei um CD de swing, com músicas internacionais, e convidei a todos para a pista de dança. Foi uma soirée inesquecível, na qual demos, prazerosamente, nossa efetiva contribuição para animar a festa, fazendo de certa forma a contrapartida ao gentil convite dos anfitriões.

Sob o slogan “Faites de la musique” (faça música), que tem exatamente a mesma pronúncia de “Fête de la musique” (festa da música), tal festividade encoraja músicos amadores e veteranos a se apresentar voluntariamente, o que permite à população o acesso a diversos tipos de música. Trata-se de um evento eminentemente popular. Um em cada dez franceses dá sua contribuição, tocando ou cantando. 

Nesse dia, em todo o país, muitas ruas são fechadas para a instalação de palcos. As apresentações musicais, todas gratuitas, acontecem por toda parte: logradouros, praças, bares, estádios de esporte e outros espaços. As grandes salas de concertos abrem suas portas gratuitamente. O Ministério da Cultura da França organiza para esse dia cerca de dezoito mil concertos em todo o território. Milhões de espectadores são brindados por milhares de músicos e cantores profissionais e amadores em todos os cantos do hexágono francês.


Jô Drumond

IRMÃS CARMELITAS

 Certo dia, telefonaram-me solicitando o trabalho como professora   num convento da Ordem das Carmelitas, “as servas dos pobres”. Eu deveria ensinar a língua francesa a duas irmãs que iriam para o Mosteiro de Nossa Senhora do Monte Carmelo, fundado no século XI, em Israel, no qual se usa esse idioma para as orações. 

Fiquei curiosa. Eu nunca havia visto uma carmelita, pelo fato de viverem enclausuradas.
Eu teria que me deslocar todos os dias até o convento, e enfrentar o trânsito do centro da cidade, num percurso que duraria, no mínimo, uma hora de ida e outra de volta. Tive que recusar o convite, devido a outros compromissos assumidos anteriormente.

 Dias depois, recebi outro telefonema. Como o tempo urgia, o convento decidira abrir uma exceção. Elas poderiam se deslocar até minha casa, para o aprendizado. Um dos voluntários, que ajudavam a ordem, havia se oferecido para levá-las de carro. Esperaria estacionado à porta, e as levaria de volta, sãs e salvas.
A mais jovem era alegre, sorridente e brincalhona. A outra, séria e compenetrada. Duas personalidades totalmente opostas. Com o tempo, percebi que a convivência entre elas não era de todo pacífica. Frequentemente, a mais idosa policiava e repreendia, com o olhar, as atitudes espontâneas da mais jovem.

Ambas usavam o tradicional e incômodo hábito escuro, mantendo apenas o rosto à vista, vestimenta imprópria para  aquele verão escaldante. Num dia de altas temperaturas, eu usava uma blusa branca em tecido fino, transparente, sobre uma camiseta de alças. Encalorada, pedi licença, tirei a blusa em plena aula e lhes disse que ficassem à vontade para se livrar de tantos panos. Não sei se eu disse alguma besteira. O fato é que elas riram descontraidamente. A mais jovem disse: Ah! Como você é engraçada! Quando eu contar isso para as outras irmãs elas nem vão acreditar!

Ficamos amigas, na medida do possível. Nossos encontros linguísticos eram muito prazerosos. Elas estavam ansiosas para aprender falar e rezar em francês. Elas diziam que eu era um anjo caído do céu, para lhes ensinar a língua que usariam no convento, em Jerusalém.

Aos poucos, a notícia se espalhou pela vizinhança. Nos horários de aula, minha casa parecia ponto turístico. Discretamente, todos queriam ver, mesmo de longe, por instantes, as duas “desenclausuradas”. Os curiosos se mantinham discretos, para não assustá-las. Alguns fingiam estar varrendo a calçada, outros passeando com o cachorro ou lavando o carro. Havia também aqueles que se disfarçavam dentro dos carros, de modo que elas não se sentissem foco das miradas.  

Certo dia elas me disseram que as pessoas, em geral, são extremamente bondosas, gentis e generosas. Prova disso é que no convento, elas vivem da caridade alheia, sem necessidade alguma de pedir algo a quem quer que seja. O padeiro fornece-lhes gratuitamente o “pão de cada dia”; o açougueiro faz-lhes a estocagem semanal de carnes; os feirantes são pródigos em frutas e legumes; o merceeiro também fornece sua cota semanal. Assim sendo, nada lhes falta. Perguntei-lhes se o motorista as conduzia também gratuitamente, até minha casa.  − Claro que sim, disse a mais jovem. Ele é um amor de pessoa! Está com a mãe muito doente e pede sempre que oremos por ela. 

Num piscar de olhos matei a charada de tanta generosidade. Tanto o padeiro, quanto o açougueiro, o verdureiro, o merceeiro e os demais que atendem às necessidades básicas do convento são recompensados por orações. Há uma crença de que a oração de uma Carmelita vale mais que a do cidadão comum, pelo falo de ela estar quase sem contato com o mundo, em estado de graça e, por conseguinte, mais perto do céu. É como se tivesse linha direta com o Criador. Seus pedidos são mais facilmente acatados pela divindade. Essa intermediação é o preço pago por elas aos generosos voluntários, todos eles com graves problemas na família, a serem resolvidos, sobretudo de saúde.

Delicadamente, fiz–lhes ver, com muita cautela, para não decepcioná-las, que o mundo e o ser humano não são tão bons, nem tão generosos quanto parecem. O que se faz em prol do convento é uma simples permuta: provisões em troca de orações.

JÔ Drumond