terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A ORIGEM DA FÉ

Jô Drumond

Sempre me intrigou o fato de que pessoas de uma mesma família, criadas sob os mesmos preceitos religiosos, no mesmo tempo e espaço, possam tomar caminhos totalmente opostos, no que concerne à fé. Desde sempre, há os que, sem questionamento algum, acreditam piamente em tudo que lhes é inculcado pela religião, na infância, e outros que questionam tudo e não acreditam em nada. Uns acreditam que o homem foi criado por deus; outros acreditam que deus foi criado pelo homem.
Sabe-se que ter fé corresponde a acreditar em algo que não se pode provar. Sabe-se também que as pessoas mais intuitivas carregam consigo grande carga de misticismo. Elas têm tendência a acreditar em tudo que se relaciona ao sobrenatural: divindades, dogmas, milagres, alma, vida pós-morte, fantasmas, macumbas, e assim por diante. Por outro lado, pessoas reflexivas tendem ao racionalismo. Preferem o preto no branco. Não se deixam levar por nenhum tipo de crendice. A fé ou a falta de fé seria inerente ao ser?

Outro dia, encontrei a resposta, ao folhear a revista Veja* (vol. 2449 – ano 48 – nº43, de 28-10-2015), num artigo sobre a origem da fé, assinado por Adriana Dias Lopes.
Segundo consta, pesquisadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, afirmam que as pessoas intuitivas são mais religiosas que as reflexivas. As de raciocínio lógico têm dificuldade em acreditar em algo impreciso. Tal afirmação fundamenta-se no resultado de testes aplicados em cerca de 1200 voluntários, na faixa etária de 30 anos.
Outro dado ainda mais interessante, na mesma matéria: o cientista americano Dean Hamer, coordenador do setor de genética do National Cancer Institute, após ter avaliado o grau de espiritualidade em mil pessoas, detectou uma extraordinária coincidência:

        “aqueles que tinham sentimentos religiosos compartilhavam o gene VMAT2, responsável           pela regulação das chamadas monoaminas, grupo de compostos que incluem a adrenalina           (substância excitante) e a serotonina (sensação de prazer). As monoaminas têm papel        
        importante na construção da realidade e na percepção das alterações da consciência, 
        situações comuns em experiências místicas”. (pg.86)

Sua descoberta leva a crer que a fé religiosa é involuntária; depende  simplesmente de um gene. Donde se conclui que um cético, oriundo de um meio extremamente religioso, não precisa mais se sentir a “ovelha negra da família”.

Isso já havia sido demonstrado bem antes, no século XIX, num clássico da literatura universal. Servidão humana, de William Somerset Maugham. Philip, personagem principal do livro, órfão desde tenra idade, foi criado dentro de um vicariato, por seu tio, pastor da igreja local. O tutor fez questão de inculcar no garoto tudo que se fizesse necessário, no intuito de que, um dia, ele viesse a ser seu sucessor. Na juventude, num internato religioso, Philip começa a refletir sobre sua vocação. Decide abandonar o liceu, deixa de crer em tudo e ganha o mundo. Tal decisão lhe tira um peso nos ombros, despojando-o da responsabilidade que carregava em cada um de seus atos, para a salvação de sua alma. Ao se livrar de tais amarras, experimentou uma viva sensação de liberdade. O narrador deixa claro que religião é questão de temperamento. Se a pessoa tiver o espírito inclinado para ela, acreditará em todos os ensinamentos religiosos. Caso contrário, nada adiantará. Um dia ela acabará se afastando desses ensinamentos.

 Vê-se que, coincidentemente, o pensador Maugham, nascido em 1874, afirma, por meio da ficção, o que o pesquisador Hamer afirma, pela ciência, em 2015. O fato de ter ou não ter fé independe do indivíduo.

Seja como for, o ser humano, único animal consciente de sua finitude, e único com capacidade de questionar o sentido da vida, sente necessidade de recorrer a algo maior, imponderável, para justificar sua existência. Muitos deles passam a vida tentando explicar o inexplicável. Alguns se apoiam no conformismo religioso; outros veem , com indignação, a falta de sentido da existência.

 Finalizo com uma citação do Papa Francisco, que, com extraordinária lucidez e coragem, assume a postura de não apartar religião e ciência: “Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva; deve escutar e promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a diversidade de opiniões.”

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O CAFUNÉ

*Jô Drumond


Quem não gosta de um cafuné? Nada mais relaxante que sentir a fricção, no couro cabeludo, ou o deslizamento de hábeis dedos sobre as madeixas, sobretudo com a cabeça pousada sobre o colo de uma pessoa amada. Melhor ainda se isso acontecer na malemolência da sesta. O cafuné pode ser um simples gesto de carinho, mas tem também a acepção de “catação de piolhos”. Esse hábito, raro hoje em dia, era muito comum em tempos de antanho, sobretudo no período da colonização brasileira.

Tal desfrute se fazia necessário, não pela sensação carinhosa, mas devido à avassaladora infestação de piolhos, numa época em que ainda não havia medicamentos para combatê-los. A catação de piolhos era comum em todo o mundo, de maneira mais ou menos discreta, entre quatro paredes, mas aqui, no Brasil, esse hábito era mantido a portas e janelas escancaradas, no passeio ou até mesmo em praça pública.

Tal hábito era visto mais comumente nas classes inferiores. Na aristocracia urbana era praticado longe dos olhares inoportunos, mas acontecia com ambos os sexos, em todas as idades e em todas as classes sociais. Via-se que até mesmo homens de prestígio negociavam com forasteiros enquanto se deixavam “cafunezar”. Nas festas ou solenidades da aristocracia rural, não era incomum a cena descrita por Expilly: “senhoras recostarem-se nos espaldares das cadeiras, entregando a cabeça a uma jovem escrava enquanto a conversa prossegue o seu curso”. Vejamos um texto de Charles Expilly, sobre mulheres e costumes no Brasil colônia:

À hora do grande calor, as senhoras,recolhidas ao interior dos aposentos deitam-se no colo da mucama favorita, entregando-lhe a cabeça. A mucama passa e repassa seus dedos indolentes na espessa cabeleira que se desenrola diante dela. Mexe em todos os sentidos naquela luxuriante meada de seda. Caça delicadamente a raiz dos cabelos, beliscando a pele com habilidade e fazendo ouvir, de tempos a tempos, um estalido seco, entre a unha do polegar e a do dedo médio. Esta sensação torna-se uma fonte de prazer para o sensualismo das crioulas. Um voluptuoso arrepio percorre os seus membros ao contato dos dedos acariciadores [...] algumas sucumbem à deliciosa sensação e desfalecem de prazer sobre os joelhos da mucama [...] Mesmo os homens não desdenham, durante as horas de lazer, a carícia de uns dedos ágeis, afagando as suas cabeleiras. Um delicioso arrepio corre-lhe o corpo, cada vez que sentem o ruído significativo das unhas da mucama. (EXPILLY,s/d, pg.366-9)

 Em1805, Thomas Lindley afirmava, em seu livro Viagem ao Brasil, que o que era considerado vulgar na Espanha e em Portugal era aqui praticado naturalmente. Segundo ele, era quase impossível entrar em uma residência sem deparar com uma dessas cenas.

A catação de piolhos, a princípio, tinha caráter de higiene e profilaxia, como entre os animais, no combate às pulgas e a outros parasitas. No entanto sociólogos e psicanalistas relacionam esse hábito à sensualidade. Tal costume coletivo poderia ser, segundo eles, uma maneira lícita de dar vazão à libido publicamente, sem despertar a maldade alheia. A procura do piolho corresponderia, portanto, à procura do prazer. Roger Bastide, em sua obra A psicanálise do cafuné (1941), analisa e pesquisa o prazer oculto do cafuné. Segundo ele, entre jovens, seria uma masturbação simbólica.

A condição feminina do período colonial é muito bem retratada por Gilberto Freyre, em sua obra Casa grande e Senzala. As mulheres do Brasil colônia, desde jovens, se submetiam à tirania paterna e, posteriormente, à tirania do marido. A educação religiosa e a tradição moral representavam uma barreira intransponível a seus desejos libidinosos, recalcados durante toda a vida. Meninas de 12 ou 13anos tornavam-se esposas procriadoras, de senhores de 40 a 70 anos, sem direito ao prazer sexual. Tal prazer era reservado aos homens, que se deitavam e se deleitavam com todas as escravas que lhes apetecessem, mesmo contra a vontade delas.


 Por essa diferenciação exagerada (dos sexos), se justifica o chamado padrão duplo de moralidade, dando ao homem todas as liberdades do gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir para a cama com o marido, toda santa noite que ele estiver disposto a procriar (FREYRE, 1934, p.117-8)

A submissão das mulheres, a fidelidade delas exigida e a severa punição das adúlteras, em contraste com a poligamia descarada dos maridos, bolinando as serviçais a olhos vistos, mesmo dentro do lar, propiciaram às esposas uma vida reclusa entre mulheres, destinadas a bordar, a tagarelar e a fazer doces e bolos apetitosos.Tal convívio acabou gerando naturalmente, certas afinidades, certas intimidades e, por conseguinte, certas liberdades entre elas. A tentação lésbica, cada vez mais recalcada pela moral e pelos bons costumes, acabou sendo substituída pela catação de piolhos, aprovada e aceita pela sociedade. Bastide afirma que “o cafuné foi, portanto, um substitutivo dos divertimentos lésbicos. E por isso mesmo ele teve uma função útil, pois representou uma salvaguarda da moral.”

Segundo ele, tal costume desapareceu com o fim da família patriarcal e com o advento da família conjugal, ou seja, quando a relação de subordinação entre os esposos passou a ser de colaboração. O casamento por amor passou a suplantar o casamento por conveniência.

Assim, o cafuné, como instituição social, desapareceu, mesmo antes do aparecimento dos remédios específicos contra a infestação de piolhos. Todavia, por incrível que pareça, em pleno século XXI, os piolhos continuam a passear sobre as cabecinhas infantis, em creches e escolas maternais, das mais humildes às mais sofisticadas. Os pais são avisados por meio de discretos bilhetes nos quais se usa toda sorte de eufemismos para disfarçar a indesejada infestação, vista hoje em dia como algo vergonhoso para a instituição. O hábito da “catação” desapareceu, mas o piolho ainda insiste em dar o ar da sua graça.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)

Referências
BASTIDE,Roger. Psicanálise do cafuné e estudos de sociologia estética brasileira. São Paulo: Editora Guaíra Ltda, 1941.
EXPILLY,Charles. Mulheres e costumes no Brasil (trad. de G. Penalva), São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1863.
LINDLEY,Thomas.Voyage au Brésil (trad. Doulès) Paris,1805.


FREYRE,Gilberto. Casa Grande e Senzala, 2.ed. Rio de Janeiro: Schmidt, 1934.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Trabalho à Distância

*Jô Drumond

 Há cerca de uma década, tive acesso ao resultado de uma enquete feita na cidade de São Paulo, cujo objetivo era detectar os maiores sonhos de consumo dos habitantes daquela megalópole. Por incrível que pareça, os maiores desejos dos paulistanos correspondiam ao que se tem e ao que se vive em pequenas cidades: morar numa casa com jardim e quintal, almoçar juntamente com a família, morar perto do trabalho... Esse resultado deixa patente que o progresso pode representar um retrocesso na qualidade de vida dos cidadãos. Sabe-se que os problemas enfrentados com resignação (ou não) pela maioria dos habitantes das metrópoles são os mesmos: a correria do dia a dia, o ritmo frenético da cidade grande, o trânsito infernal, engarrafamentos, poluição, exiguidade dos apartamentos, espigões, falta de relacionamento amistoso com a vizinhança... Na rua, cada um representa apenas um dado estatístico. Um desconhecido entre desconhecidos, após oito horas diárias de trabalho, acrescidas de uma a quatro horas no trânsito, volta cansado e sem disposição para dar atenção à família. O salário, na maioria das vezes, não compensa o transtorno, nem o esforço.

Nos dias de hoje, felizmente, bons ares tecnológicos sopram sobre profissões que podem ser exercidas à distância. Graças à popularização da internet, pode-se trabalhar longe dos escritórios, mediante smartphones e tabletsdevidamente conectados. O que se chama atualmente de “trabalho remoto” resolve grande parte das questões profissionais, evita deslocamentos, desafoga o trânsito, permite mais horas de sono e mais tempo para dar atenção a todos, até mesmo ao cachorrinho de estimação. Além de tomar as refeições com os familiares, alguns profissionais conseguem um tempinho para se arriscar como “gourmets”, na preparação de pratos especiais, para o deleite de toda a família. A vida familiar ganha novos sabores, novas cores e mais amores.

Com o advento do emprego flexível, devem-se revisar as relações trabalhistas.  Abole-se a tradição de “bater o ponto”. O trabalho pode ser feito na rua, numa praça, num parque, em casa, enfim, em qualquer lugar, desde que haja conexão. A cada dia, um maior número de profissionais adere ao trabalho remoto. Reuniões são feitas à distância, peloskype, contatos profissionais são feitos pelas redes sociais, sobretudo pelo whatsApp.

Para quem quer abrir seu próprio negócio, há o home based, uma espécie de franquia que permite gerenciar tudo sem sair de casa. Os investimentos são mais baixos; evitam-se, por exemplo, a compra e a manutenção de um ponto comercial.

Nesse período de transição ainda há insegurança e dificuldade de adaptação, mas com o tempo tudo se ajeita. A comunicação via satélite é um caminho sem volta. No século XXI, os trabalhadores terão que se adaptar à Revolução Tecnológica, assim como os do século XVIII tiveram que se adaptar à Revolução Industrial. Como dizem os franceses, “tout est bien qui finit bien”.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

REVOADA DE LETRAS

Jô Drumond

No décimo oitavo aniversário do Clube do Livro de Vitória, neste mês de outubro de 2015, todos os participantes foram brindados com uma bela obra de arte de rara leveza, de autoria de Ana Paula Castro. Trata-se de uma obra altamente polissêmica. A riqueza simbólica do livro aberto, do voo e do colibri permite uma enorme gama de interpretações.
Parte-se de base sólida, em madeira, contendo o nome do leitor, passa-se pela consistência sintática e morfológica do livro e chega-se à volitante inconstância das letras, guiadas por um beija-flor. Letras se descolam do livro, se deslocam em torvelinho e alçam voo "colibritante".
Sabe-se que o voo é um elo entre o plano terrestre e o celeste. Simboliza também liberdade, movimento e audácia. As letras, por sua vez, representam o movimento. O colibri, tido como mensageiro de tempo, simboliza o infinito. 
Destarte, a obra contendo letras em movimento, aliadas ao voo de um beija-flor, pode representar a infinita liberdade proporcionada pelo conhecimento, por meio da leitura.
No percurso livro/leitor/leitura, parte-se da concretude do livro, passa-se pela imponderável magia do significante e chega-se à inefabilidade do significado. Ao abrir uma página, abre-se a comporta dos sonhos. A revoada de letras corresponderia ao efeito da leitura.
Assim como o voo de um pássaro, o livro entremeia terra e céu, forma e conteúdo, concreto e abstrato (pés no chão e cabeça nas nuvens).
Na obra de Ana Paula Castro, tipos moldados, normalmente presos à sintaxe, se misturam, se desmantelam e se dispersam no ar, ensejando a fruição de veleidades resguardadas no recôndito do ser.
Parabéns ao Clube do Livro, por ensejar novos horizontes a cada indicação de leitura. Obrigada, presidente Simone, pela memorável tarde comemorativa da maioridade de nosso Clube (18 anos).


Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A CIBERSOLIDÃO

                    * Jô Drumond

Uma nítida mudança comportamental está acontecendo na era contemporânea. Não se podem negar os benefícios e a comodidade da era virtual. Apesar de adepta de novidades tecnológicas, em vez de fazer uma apologia ao novo estilo de vida, prefiro fazer uma reflexão sobre o período de transição que estamos vivendo.

Há os internautas  compulsivos, aqueles que não se separam do aparelhinho mágico nem mesmo na hora do banho ou do sono; há os que conhecem superficialmente as novas tecnologias, se interessam pelas novidades, mas ainda não aderiram totalmente a elas; há os que simplesmente as desconhecem, sobretudo nos rincões de nosso imenso país; há também os tradicionalistas ferrenhos, por que não dizer retrógrados, que fazem questão de não aderir às novidades tecnológicas.

Até bem pouco tempo, ninguém sentia falta de smartphone, nem das redes sociais, simplesmente porque desconheciam as novas tecnologias. Hoje em dia, a dependência tecnológica faz com que certas pessoas não consigam viver desconectadas. Pode-se perder o trem, o avião, um amigo, uma joia, mas não se pode perder o smartphone.
A sociedade vai se adaptando aos novos comportamentos. Enquanto isso, vão surgindo novos costumes, novas crenças, novos conceitos, novos mitos, novas regras de conduta, novo estilo de vida... Por conseguinte, uma nova ética comportamental vai se estabelecendo.

O ser humano é um animal gregário. O temor da solidão ou do isolamento torna-o dependente de experiências coletivas. Em tempos idos, sentia-se compelido a fazer parte de um clã. Hoje sente-se atraído a fazer parte de uma rede social. As redes resolvem, embora parcialmente, o problema da solidão. A interação é prazerosa, rápida e eficiente. Surgem dezenas, centenas de novos amigos, mesmo que sejam amizades superficiais. Há um desvão entre amizade real e virtual. Não se pode dizer se isso é bom ou ruim. O fato é que é diferente.

Em todas as circunstâncias, o aficionado não se desgruda do smarphone. Fotografa tudo que vê. Não pode mais ir a um evento social, sem ser alvo de câmeras profissionais, de câmeras amigas ou inimigas, e também de câmeras escondidas. O fato de postar fotos de outrem nas redes sociais, sem a devida autorização, já se banalizou. Tal procedimento pode ensejar tanto situações prazerosas quanto situações constrangedoras para o fotografado.

Há pouco tempo, fui convidada para uma pequena comemoração de aniversário. Ao entrar no facebook encontrei fotos da festa postadas por convidados, seguidas de diversas reclamações de amigos do aniversariante, que se sentiram excluídos, por não terem sido convidados. O anfitrião, em apuros, teve que se justificar perante os que reclamaram publicamente, sabendo que outros certamente se sentiram excluídos, após a visualização das fotos. Entre os jovens, ouve-se frequentemente: “fulano é meu amigo no facebook”.

Na verdade pouco se sabe a respeito desse “amigo”. Não se sabe o verdadeiro nome, a idade, o sexo, nem mesmo as intenções que se escondem atrás da máscara virtual.
Certo dia perguntei a um jovem aluno meu, um cibersolitário compulsivo, se as amizades e os namoros virtuais são melhores que os reais. Ele me respondeu que são bem melhores, pois não se perde tempo. Pode-se relacionar com várias meninas ao mesmo tempo, sem ter a chateação de dar atenção especial ou satisfação a nenhuma delas. “Além do mais — disse-me ele — estando conectado, não tenho ouvidos para conselhos, broncas nem ladainhas de meus pais.”7
Não há nada mais desagradável que interromper uma conversação face a face para que o interlocutor dê uma vista d’olhos nas mensagens que entram a cada instante em seu smartphone. Caso alguma mensagem seja interessante, ele se esquece de que, diante de si, há alguém à sua espera, para continuar o diálogo interrompido.
Seguem-se alguns relatos de situações constrangedoras, relacionadas à utilização indevida e antissocial do telefone eletrônico.
Uma conhecida minha foi a um restaurante com o namorado. Enquanto aguardavam a refeição, ele entrou na internet, pelo celular, e se deixou levar de tal forma, que o entorno deixou de existir, assim como a pessoa que o acompanhava. A moça, depois de aguardar um bom tempo, sem ter o que fazer, nem com quem conversar, se levantou e tomou um táxi. Ao ser interrompido pelo garçom, prestes a servir o jantar, sentiu falta da namorada. Supôs que tivesse ido ao toilette e aguardou. Como ela tardava, perguntou ao garçom se ele a tinha visto. Foi informado de que ela havia saído do restaurante havia cerca de dez minutos. Resultado: Jantou sozinho e perdeu a namorada.
Uma amiga minha, incomodada com o uso compulsivo do celular pelo marido, sempre que saiam para jantar fora, pediu-lhe que não levasse o telefone ou que o desligasse para que pudessem tomar uns drinques sem ser interrompidos. Ele lhe respondeu que, nesse caso, preferia não sair de casa. Não há casamento que resista a isso. Além dos transtornos causados nas relações familiares, no trânsito, nem se fala! Tal telinha em mãos de incautos motoristas representa um perigo iminente para todos nós em cada estrada, em cada rua e em cada esquina.
Em uma mesa de bar ou de restaurante, nota-se a grande diferença entre um grupo usuário do smartphone de outro grupo que ainda não aderiu à novidade eletrônica. Estes mantêm uma postura de diálogo, face a face, olhos nos olhos. Aqueles estão próximos apenas geograficamente, mergulhados em outro mundo bem mais instigante que o seu.
Certa vez, durante uma consulta, o médico, em acintoso ultraje, interrompeu cinco vezes meu relato dos sintomas, para atender ao telefone. Ao terminar cada interrupção, perguntava: “Onde foi que paramos? O que você estava dizendo? Onde é que nós estávamos?” O fato é que ele não prestava a mínima atenção ao que eu dizia. Após tantas interrupções, poderia dar um diagnóstico confiável? Saí de lá indignada, com a firme intenção de nunca mais voltar. Resultado: perdeu a cliente.
Na maioria das vezes, as relações virtuais se sobrepõem às pessoais. Há que se criar uma ética para o uso das redes sociais e um tratamento adequado para a dependência tecnológica. Como foi dito inicialmente, com o tempo as coisas se ajustam. O ser humano tem uma incrível capacidade de adaptação. Possivelmente, no futuro, haverá um equilíbrio entre real e virtual. Os relacionamentos sobreviverão à era tecnológica.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES


comentário

Marcos Tavares, da Academia Espírito-santense de Letras, escreveu ]
o seguinte comentário sobre a obra de Jô Drumond:

CIBERSOLIDÃO: NOVOS  TEMPOS

                           CIBERSOLIDÃO (Jô Drumond, Ed. Opção, 45  crônicas, 141 páginas, 2018).

Escrever, muitos escrevem. O que qualifica um escrevedor, daí escritor, é, além do trato com as palavras, o seu distinto olhar, a sua cosmovisão. E quando esse escritor (no caso, literata) detém título de Doutorado em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e, em nova incursão no gênero crônica, examina sobretudo o mundo moderno e suas tecnologias, em livro que publica, hemos de prestar a devida atenção. Nada é p

Josina Nunes Drumond [Jô Drumond], ocular testemunha desses tempos fugazes, ora nos concede documental prova da tal “modernidade líquida” nomeada pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman (“Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”). Título da obra alude ao fenômeno da “solidão acompanhada” ou cibersolidão. Em crônica homônima, a de abertura, discorre acerca das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) com suporte na internet que, aliada aos recursos da Computação Móvel, têm influenciado novos comportamentos sociais, em especial no tocante à facilidade nos relacionamentos. Estes, não presenciais, até superficiais, mas logo designados “amizades”, não raro podem, ironicamente, destruir vínculos afetivos pessoais e já duradouros. Solidão cibernética detectada num dia de silêncio no WhatsApp: só explicado quando, por já desusados telefonemas, se soube do suicídio de um de seus integrantes (Era Digital). 

Consequência da nova era, o home based, uma espécie de franquia que permite gerenciar, sem sair de casa, uma atividade laboral rentável, é objeto de narrativa (Trabalho à distância). Sob epígrafe de Rubem Braga resgata a saudosa época em que carteiros, esperados com ansiedade, traziam boas e más notícias. “Cada um de nós morre um pouco quando alguém, na distância e no tempo, rasga alguma carta ou deleta alguma mensagem nossa ”, conclui, lírica (Velhas Cartas).
Francófila, debruça-se sobre a História de França, em paralelo com o nosso período escravocrata, e filosofa acerca da liberdade relativa, do cerceamento imposto por algemas sociais (Grilhões). 

O definhamento da bisavó Theodora, latifundiária e escravagista, então empobrecida pela Lei Áurea, perdida a força de trabalho, é lição para tantos quantos queiram preservar a história familiar jamais estudada em bancos escolares (O Fio do tempo). Pós-Doutora em Literatura Comparada (UFMG), Jô Drumond vê similaridade de ideias entre o literato Somerset Maughan (séc. XIX), em sua obra A Servidão Humana, e o geneticista Dean Hamer (séc. XX): um fator bioquímico (o gene VMAT2) propiciaria o grau de espiritualidade (A fé). Repensando a própria vivência missionária, aventa possível benignidade do aludido gene da fé (Questionamentos religiosos). Destoante do cânone da Igreja, exegeta bíblico com visão peculiar merece destaque: Jean Meslier, vigário francês, é dado como precursor de vários movimentos libertários (Padre ateu). Atestando o autêntico significado do gênero (krónos=tempo), há um momento em que reminiscências da menina revisitam festejos (Festas joaninas ou julinas).

Prosa simples jamais simplória, bem saborosa, pródiga de “causos” como sói a um bom mineiro (Patos de Minas-MG), impregna-a com alta dosagem de humor: um sufoco em viagem aérea (Apreensão), uma noite passada em claro em república estudantil de Ouro Preto (Pulgatório), episódio de brusca transformação de duas de suas alunas de francês (Irmãs Carmelitas), adversidade em lamacenta estrada rural (Atoleiro), divertido passeio em Tiradentes: um guia com fétido odor corporal é substituído por um com acentuado distúrbio de fala (O malfadado city tour). Até o mero catar piolho possui a freudiana sublimação libidinal (O cafuné).

Especialista em Guimaraes Rosa, em cinco textos foca o singular autor e terra natal dele (Cordisburgo, I a IV). E outros temas há. Eclética, também artista plástica, um seu trabalho de 1990, um acrílico sobre papel cartão, compõe a capa do livro desta “imortal” da Academia Espírito-santense de Letras que, a tornar “exequível suas exéquias”, já humorada diretriz a seus sucessores deixa (Meus últimos desejos).

[ resenha  redigida por Marcos Tavares, da Academia Espírito-santense de Letras]





segunda-feira, 14 de setembro de 2015

OS MUROS DA VERGONHA

*Jô Drumond

Sabe-se que o muro de Berlim, erguido em 1961 pela União Soviética,  conhecido também como “O muro da vergonha”, dividiu a Alemanha durante 28 anos. Atualmente, há um contrassenso generalizado a respeito de barreiras internacionais. Por um lado, louva-se a queda do muro de Berlim, ocorrida no final da década de 90. Por outro, constroem-se mais e mais muros ou cercas fronteiriças, com o intuito de evitar a migração e de aumentar a segurança da população. Segundo consta, há atualmente uma extensão de edificações de barreiras nacionais quatro vezes superior à do muro de Berlim, ou seja, 40.000 quilômetros, sendo que a metade ainda se encontra em obras.
A Hungria construiu uma cerca de quatro metros de altura, ao longo de 170 quilômetros de fronteira com a Sérvia. Israel também ergueu barreira para evitar infiltração de terroristas da Cisjordânia e planeja proteger-se do Estado Islâmico, fechando, da mesma forma, a fronteira com a Jordânia. O Quênia, a Arábia Saudita e a Turquia seguem o mesmo exemplo. Nos Estados Unidos, cogita-se, por motivos eleitoreiros, a construção de cerca de três mil quilômetros na fronteira com o México. Não sabemos até quando isso vai durar, nem a que proporções chegará esse tipo de atitude defensiva.
A meu ver, seria mais enriquecedor considerar a migração sob uma ótica positiva. Os que são contra alegam a facilitação de atos terroristas e o grande afluxo de foragidos de guerra. Nesse caso, em vez de interferir nos processos migratórios, seria melhor criar eficientes mecanismos para coibição do terrorismo e para assentamento das famílias que buscam condições dignas de vida.
Ultimamente duas notícias chocantes trouxeram à baila a discussão referente à imigração e à criação de impedimentos migratórios: a morte de 71 refugiados encontrados asfixiados dentro de um caminhão, na estrada entre Budapeste e Viena, e a imagem estampada em jornais e revistas do mundo todo, de mais uma vítima dos inúmeros naufrágios de embarcações repletas de refugiados. A imagem do garotinho sírio, Aylan, cujo corpo emborcado, como se estivesse dormindo, numa praia da Turquia, emocionou a todos.
Na revista Veja de 02 de setembro de 2015, foi publicada, por Nathalia Watkins, uma matéria reflexiva sobre o assunto, intitulada “A multiplicação de barreiras”, na qual há um relato sobre esse recente tipo de edificação.
Tal constatação nos deixa perplexos, visto que a era da globalização deveria primar pela abolição de todo e qualquer tipo de barreira, seja política, econômica, religiosa ou cultural. Ao contrário, criou-se uma insegurança generalizada no que se refere à perda da identidade e da soberania nacional. Segundo o sociólogo inglês Frank Laczko, o que mais aflige os povos em geral, hoje em dia, é a sensação de vulnerabilidade, devido à falta de controle em zonas fronteiriças.
Contrariamente à acepção usual de fronteira como delimitação ou zona de conflitos, em Semiótica da Cultura define-se fronteira como lugar culturalmente muito rico, onde sistemas culturais completamente diferentes se inter-relacionam e interagem Nas manifestações culturais contemporâneas, nota-se certa tendência ao esfacelamento das fronteiras e ao fortalecimento do hibridismo cultural (sincretismo, mestiçagem, crioulismo etc). Não se trata, no entanto, de mescla ou fusão e sim da convivência de elementos alógenos e heterogêneos. Por analogia, na culinária, os vários condimentos, combinados diferentemente, produzem novos sabores, mantendo cada um seu sabor original. Dessa forma, diferentes culturas, em contato umas com outras, se expandem e se enriquecem, sem perder seus traços distintivos.
Segundo a matéria acima mencionada, pesquisas acadêmicas mostram que, contrariamente ao que se supõe, nos Estados Unidos “a taxa de pessoas  ativas entre os imigrantes é mais alta do que no resto da população”, donde se conclui que a imigração não é tão prejudicial ao país quanto parece. Pode ser até benéfica, pois os imigrantes se encarregam normalmente de tarefas e serviços mais pesados e difíceis, “les taches pénibles”, poupando assim os nativos dos encargos indesejados.
É interessante observar que a fortificação de fronteiras remonta a 220 anos a.C., época em que foi iniciada a grande muralha da China, com o intuito de evitar ataques dos hunos. No medievo, as cidades e os castelos eram fortificados para resistir a ataques inimigos.
Thomas Hobbes (1588/1679) tinha razão ao afirmar: “o homem é o lobo do homem”. Em outras palavras, no afã de usar seu poder para se autopreservar e para satisfazer seus desejos, o homem está prestes a guerrear, mesmo sem causa aparente.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

JOAQUIM FUBÁ

*Jô Drumond
Em meados do século passado, Joaquim Fubá tinha um monjolo, no Córrego do Monjolo, em Patos de Minas. Dizem que ele era arredio a transações comerciais. Todo o dinheiro arrecadado com a venda do fubá e com outras negociações era colocado debaixo do colchão. Seus filhos, já crescidos, insistiam para que ele não guardasse dinheiro em casa. − Lugar de dinheiro é no banco, diziam.

Certo dia, ele encheu de dinheiro três sacos de 60 kg, colocou-os num carrinho de pedreiro e dirigiu-se ao banco mais próximo. Apresentou-se no estabelecimento bancário para falar com o gerente. Estava malvestido, sujo, de sandálias havaianas e chapéu de palha.

De longe, o gerente avistou a figura pobretona e pensou que fosse algum pedinte. Deu-lhe uns trocados, na esperança de que ele se fosse. Seu Joaquim agradeceu, colocou as moedas no bolso e continuou pacientando. Alguns funcionários abordaram-no, querendo saber do que se tratava. Ele batia pé dizendo que só falaria ao gerente e que não arredaria pé enquanto não lhe falasse. Findo o expediente, após horas de espera, foi finalmente atendido. Disse então ao gerente que seus filhos não queriam que ele guardasse dinheiro em casa. Portanto gostaria de abrir uma conta.
 Quando lhe perguntaram sobre o montante a ser depositado, o futuro cliente se embaraçou. Não sabia o que significava “montante”, e muito menos qual seria. O velho não tinha a mínima ideia de quanto dispunha. Pegou os três sacos e despejou a dinheirama sobre a mesa. O gerente ficou tão nervoso com a inusitada situação, que teve que sair às pressas, com dor de barriga. Dois funcionários passaram horas contando as cédulas. Era tanto, tanto dinheiro... muito acima da quantia que constava nos caixas do banco, naquela data.
Nem sempre se pode fiar nas aparências. Um engano, às vezes, causa situações constrangedoras. O caso do Joaquim Fubá, a mim narrado por Marcão, em minha última ida a Patos de Minas, remeteu-me a uma situação embaraçosa, acontecida comigo em Vitória (ES), devida ao mesmo tipo de engano.

Certa noite, estava eu sozinha, ao volante, num movimentado cruzamento, quando percebi a aproximação de um tipo mal-encarado e molambento, de cerca de 30 anos, com péssima aparência. Olhou-me fixamente e veio em minha direção. Temendo um assalto, acabei de fechar o vidro do carro, que se encontrava semiaberto. Ao perceber minha reação, ele começou a me destratar.

̶ Qualé, madame? Tá achando que sou bandido? Só porque sou pobre?

Continuou a dirigir-me um monte de impropérios. Fiquei estática. O semáforo não abria. Todos me olhavam. O homem não parava de vociferar aos quatro ventos. Eu me sentia culpada, sem ter culpa alguma. Não via a hora de dar o fora dali, mas o semáforo continuava fechado. Demorou uma eternidade para abrir.

Ao me ver livre daquele embaraço, pus-me a pensar no temor disseminado nas grandes metrópoles. Com o perdão do trocadilho, vivemos sobressaltados temendo ser assaltados. Todas as pessoas estranhas, sobretudo de má aparência, são suspeitas até prova em contrário. Como viver em paz com tanta insegurança?

Sinto saudades da pacata Patos de Minas da época do Joaquim Fubá, na década de sessenta. Patos de hoje não é mais a mesma. Tomou ares de cidade grande e abarcou todos os atributos do novo estilo de vida, inclusive o da insegurança. Por toda parte veem-se grades, cercas elétricas e alarmes, aparatos inexistentes na minha juventude. Não há mais córrego, não há mais monjolo, não há mais Joaquim Fubá.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

CORTINA DE FERRO

* Jô Drumond 

O momento mais comovente de minha viagem à Europa, em junho de 2015, aconteceu no coração de Berlim, próximo ao renomado portão de Brandemburgo.

Após cansativa visita guiada, a pé, sob sol escaldante, num longo percurso pelo centro  histórico, paramos para apreciar o belo monumento neoclássico. Trata-se de uma antiga porta de entrada da cidade, construída no final do século XVIII, em formato de arco do triunfo.


Muitos eventos históricos se deram nesse local, considerado um dos marcos mais conhecidos da Alemanha. Tal portão, símbolo da unidade e da paz europeia, ficou do lado sombrio do Muro de Berlim, no pós-guerra, isolado e inacessível aos ocidentais.

Durante a caminhada turística, muito se falou sobre a construção do  “muro da vergonha” e sobre os efeitos funestos sobre a população. Segundo nosso guia, após a divisão da Alemanha, diariamente, milhares de pessoas migravam do lado oriental para o lado ocidental, fugindo do regime comunista. 

Para evitar a fuga maciça, numa madrugada de 1961, ergueu-se o muro, sob os auspícios da União Soviética. A cidade se viu dividida em dois blocos. O oriental socialista, sob jugo soviético, e o ocidental capitalista, governado pelos países aliados. Durante 28 anos, dezenas de milhares de famílias ficaram divididas, sem contato algum. Quantos amigos, quantos colegas de trabalho, quantos parentes ficaram sem se comunicar durante quase três décadas, estando tão próximos geograficamente!

Muitos não puderam voltar pra casa, naquela noite fatídica. Outros  morreram em vãs tentativas de transpor a metafórica “cortina de ferro”, gradeada, eletrificada, patrulhada 24 horas por dia, equipada com dispositivos de alarme e vigiada por cães ferozes.

Ao nos aproximarmos do monumento, deparamos com uma cena teatral. Uma senhora bem-vestida, bonita, alta, forte, loira, de aproximadamente 50 anos, se deslocava ruidosamente de um lado para outro. Corria cerca de três ou quatro metros, parava, saltava diversas vezes com os braços para cima e dava gritos de euforia. Voltava correndo na mesma direção e repetia a cena, sem cessar. Parei para assistir ao inusitado espetáculo. Todos os transeuntes fizeram o mesmo. Pensei que se tratasse de uma louca ou de alguém que tivesse acabado de surtar. Aproximei-me de um senhor alto, louro, protótipo da raça ariana germânica, e perguntei, em inglês, o que estava acontecendo. Ele me respondeu que aquela mulher era sua esposa. Tinham vindo de Frankfurt para visitar Berlim, pela primeira vez, após a queda do muro. Ela estava eufórica pelo fato de poder transitar livremente de um lado para outro, no local onde o muro fora derrubado. Era uma travessia simbólica, uma espécie de libertação. 

Comemorava o fim de um período negro na história do país, dividido em dois mundos opostos.
Enquanto conversávamos, a tal senhora se aproximou de nós e, como  disse o poeta Vinícius, “do riso fez-se o pranto”. Desatou a chorar, convulsivamente. Aquilo me emocionou sobremaneira. Choramos juntas, abraçadas, unidas por um estranho sentimento de desalento e redenção.

Nunca imaginei que algum dia eu pudesse me encontrar em tal situação, chorando por uma causa que não me dizia respeito, num país distante, abraçada a uma desconhecida cujo nome nunca saberei, e que não falava minha língua. Não se tratava apenas de choro solidário; foi explosão fraterna, brotada espontaneamente dos recônditos da alma.

Após o acontecido, pus-me a refletir sobre as relações humanas, em geral. Como entender a complexidade do ser humano, capaz de abraçar tanto uma causa guerreira ou  mortífera, como Hitler, quanto uma causa humanitária, como Luther King? Por um lado, pode ser cruel, insensível, capaz das maiores malvadezas; por outro lado, bom, sensível e solidário. Recorro aqui à metáfora da mandioca, utilizada por Guimarães Rosa para se expressar sobre esse tema: a mandioca mansa (comestível), pode se transformar em mandioca brava (venenosa), e vice-versa.

Além de ambíguo, o ser humano  às vezes  também é antagônico; carrega em si um maniqueísmo latente. Em alguns, prevalece a face do Bem; em outros, a do Mal. No entanto, muito além do Bem e do Mal, a meu ver, prevalece o sentimento de fraternidade. Talvez tenha sido esse sentimento que me fez chorar por uma causa alheia, abraçada a uma desconhecida diante do portão de Brandemburgo.


Jô Drumond:  Escritora e membro da: AEL (Academia Espírito-santense de Letras). AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras) AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras) IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).

terça-feira, 24 de março de 2015

DESPAIXÃO


Jô Drumond
Cadeira n° 10 da Academia Espírito Santense de Letras

Há pessoas que passam rapidamente pela vida da gente e se vão para sempre. Outras marcam presença durante algum tempo e também desaparecem – refletia Anita. Há aquelas que, desaparecendo ou não, se integram à nossa história de vida. Dizem que, normalmente, ninguém se esquece do primeiro amor. Talvez seja o meu caso. Por onde andará meu inesquecível Ulisses? Em busca de sua Ítaca ou já instalado no reino de Hades?

Cenas vividas ainda vívidas, na mente de Anita, eram pescadas no baú da memória, juntamente com o doce sabor da juventude. No resgate de tempos idos, incessante fluir de recordações, profusão de sentimentos e coração em atropelo. No desvão temporal, pipocavam revivescências do passado.

Anita soube que o advento das redes sociais facilitava enormemente os reencontros e os reatamentos de laços de amizades e de parentescos. Não era muito afeita à internet, mas cadastrou-se  no facebook com a firme intenção de tentar localizar o elo perdido.  Jamais se esquecera de seu sobrenome, sobretudo porque adorava pimenta: Pimentel. Entrou no facebook e procurou por Ulisses Pimentel. Havia diversos homônimos. Pela foto, não o reconheceria, depois de meio século. Entrou na página de cada Ulisses, na esperança de encontrar um conterrâneo. Encontrou Ulisses Mendes Pimentel. Não se lembrava do sobrenome “Mendes”. Seria ele? Pelo sim, pelo não, enviou-lhe uma mensagem solicitando amizade. Nada de resposta. Um mês depois, enviou-lhe outra mensagem com maiores detalhes, citando passagens vividas por ambos. Finalmente obteve uma resposta lacônica.  Era o próprio. 

Certo dia, estando ambos on line, começaram um bate-papo saudosista, pinçando relembramentos de antanho. Descobriram afinidades religiosas, artísticas, sobretudo musicais. Ambos gostavam também de viajar, de dançar e de ir ao cinema. Não abriam mão das salas de projeção, das telas panorâmicas, do aconchego da poltrona, nem do escurinho do cinema. Lamentavam os atuais comilões que exalam cheiro de manteiga saturada e sujam o carpete com pipocas. Em sua época não se ia ao cinema para se empanturrar de guloseimas. Ia-se para assistir a boas películas e para flertar com os brotinhos, na chegada e na saída.

Meio século se passou sem aviso, sem notícia. “Não mais que de repente”, eles se reencontraram, cheios de vivimentos e de páginas viradas, repletas de acontecências.
 Na urdidura dos dias, cada um seguiu sua sina, cada um teceu sua trama, criou raízes, filhos e poesias, com vislumbres diversos e horizontes dispersos. Ainda havia muito chão a percorrer.

Começaram uma despretensiosa troca de mensagens, que aos poucos foi se adocicando, se intensificando e se acalorando. Todas as manhãs, Anita abria a caixa de entrada do iphone, para verificar se havia alguma mensagem. Tornou-se ato contíguo ao despertar. Mesmo antes de se levantar, verificava se havia ali algo para colorir o dia. Uma foto, uma reminiscência, uma frase enigmática, um elogio... a mensagem matinal tornou-se mais importante que o café da manhã. Era fonte de energia para a jornada que se iniciava. Depois de uma eternidade que durou não mais que um mês, ela recebeu uma proposta de conversa presencial, num local público. Moravam em bairros contíguos, na orla da Zona Sul carioca. Ele no Leblon, ela em Ipanema. O acaso nunca havia cruzado seus caminhos, nem providenciado nenhum encontro durante as caminhadas matinais no calçadão da praia.

Para o reencontro, escolheram um local lindo, aconchegante, ideal para se relembrarem de tempos idos: a antiga Confeitaria Colombo. A ansiedade de cada um se refletia no esmero da aparência. Embora tivessem a mesma idade, ambos queriam camuflar as marcas do tempo. Haviam sido colegas de classe, no curso ginasial, época em que cruzavam centelhas nos olhares, com friozinho na barriga e coração em disparada.

Durante a semana que precedeu o encontro, ele começou a fazer exercícios abdominais, para atenuar o ventre cervejeiro, implementou uma dieta light, pintou os cabelos, já meio grisalhos, e fez clareamento nos dentes. Ao ouvir, no rádio do carro, a antiga canção “L’Amour est bleu”, lembrou-se de que essa era a cor preferida de Anita. Foi ao shopping, escolheu uma camisa azul, de mangas compridas.

Por sua vez, Anita passou a correr na praia, procurou esteticista e salão de beleza, para melhorar o visual. Escolheu uma cor alegre, a seu ver,  mais condizente com a ocasião. Comprou um vestido vermelho, sem mangas, decote em “v”, com cintura bem-marcada e saia godet.

Ulisses fez questão de chegar à Colombo mais cedo. Não seria de bom tom deixar uma dama à sua espera. Escolheu um recanto aconchegante e pouco movimentado. Ao vê-la entrar no recinto, foi ao seu encontro. Cumprimentaram-se cordialmente, sem maiores efusões.  O momento exigia formalidade. Afinal, apesar da troca de mensagens virtuais, ainda não se (re)conheciam.

Nessa tarde, diferente de todas as demais, fizeram uma benfazeja viagem no tempo. Relembraram-se das manias dos professores, das rusgas entre colegas, dos castigos por indisciplina, das festas escolares, das horas dançantes em casas de amigos...

Depois, cada um falou de si, de sua vida familiar e profissional. Ambos eram viúvos, tinham filhos, netos e muitas histórias a contar. Na vida acadêmica, optaram por caminhos diferentes.  Ele  era desembargador, já aposentado; e ela, uma renomada cientista, com diversas especializações no exterior, ainda na ativa. Nas horas vagas, dedicava-se à poesia. Não poderia viver longe dos laboratórios, das pesquisas, nem abandonar a literatura. Médica e poeta, tal qual Orfeu, jamais renunciaria à sua lira.

Ao chegar a casa, Anita fez a seguinte anotação: Há momentos que se eternizam, revividos a cada dia por teimosia de uma memória renitente que escava minudências para  preencher lapsos na vacuidade do esquecimento.  E a vida imbuída de boas lembranças torna-se mais leve. Há momentos que valem por uma vida inteira.

Apesar de memorável, a tarde havia sido insuficiente para passar a vida a limpo. Outros encontros aconteceram na Colombo, trocados posteriormente por almoços em restaurantes panorâmicos, com vista para a baía de Guanabara.

As mensagens virtuais, ao despertar, tornaram-se imprescindíveis, mesmo que fosse apenas um “bom-dia”. Uma ida semanal ao cinema passou a fazer parte daquela doce rotina. No entanto, nos finais de semana, cada um curtia sua própria família.

A prudência de Anita exigia calma e temperança. Para desenvolver um envolvimento afetivo ela carecia de tempo. Era algo que ia se condensando aos poucos, sem pressa, sem tropeços, com boa dose de imaginação. Como num crescendo musical, o sentimento ia se solidificando até chegar ao patamar da confiança recíproca e do enlevo amoroso. Era como a feitura de uma trança, ou de um complexo laço. Caso a trança fosse cortada ou o laço rompido, caia o pano: uma pesada cortina negra de luto reflexivo, uma trilha morosa de entendimento, maturação e aceitação a ser percorrida, para a assimilação da perda.

Anita, sempre calada e compenetrada, mostrava-se sorridente, irradiava alegria e bom humor. Tanto seus colegas de trabalho quanto os familiares estranharam a nítida mudança. A simples existência do “outro” preenchia seus dias. Trabalhava com mais afinco e passou a cultivar a alegria de viver.

Ulisses mantinha-se sempre em contato, mas nunca ultrapassava as lindes da amizade e do companheirismo. Era bom de prosa, de companhia agradável e presença cativante. Anita foi se afeiçoando cada dia mais àquela figura, mas mantinha distanciamento ético, na esperança de que um dia ele desse o primeiro passo além da amizade. No entanto isso não acontecia. Com o passar do tempo, ela foi criando para si a imagem de um Ulisses idealizado, tal qual ela gostaria que ele fosse. Passava horas a devanear, a fazer conjeturas, a criar viagens mirabolantes e noitadas vorazes. Sentia-se presa àquela figura mítica, sem a qual a vida se tornaria insossa.

Durante as noites de vigília, fazia anotações poéticas tais como: Na seara da insônia, semeiam-se letras, colhem-se palavras com sabor de poesia. Palavras palatáveis, de florescência poética, que se degustam no céu da boca. Nas altas horas da madrugada, vígil caçadora do agora embrenha-se em ontens e amanhãs, deslizando na atemporalidade do tempo.

Não conseguia entender o que se passava consigo. Há sentimento que não se explica – divagava ela. Não se encaixa à doxa vigente. Difere de amizade, de amor e de paixão. Talvez seja mais que isso, ou nada disso.  É a percepção de algo etéreo, de afinidade que não se encontra comumente no dia a dia. Ultrapassa as barreiras da lógica, propicia alumbramentos e bem-aventurança. É ressonância de energias afins, de efeitos encantatórios. É algo insensato, mas salutar ao coração solitário. Torna menos anódina e mais bela esta vida besta. No “enquanto” da existência, quero voar sem asas. Que mal há nisso?
Anita gostaria muito de desvelar o hermetismo de Ulisses. Supunha não haver nenhuma Penélope à sua espera. Eram ambos desimpedidos. Por que não juntar as escovas de dente? A química amorosa talvez fosse unilateral. Quiçá não sentisse atração física por ela, tivesse receio de um envolvimento mais sério ou preferisse mulheres mais jovens.

Em outra noite de insônia, Anita rabiscou uns versinhos inspirados na circunstância:
Há que se manter o distanciamento para assegurar o platonismo /
Há que se assegurar o platonismo para sustentar o mistério/
Há que se sustentar o mistério para cultivar o encanto /
Há que se cultivar o encanto para estimular o fascínio/
Há que se estimular o fascínio para fomentar a sedução /
E a sedução se incumbe de ludibriar Platão /
Apaixonar, há que se /

Isso mesmo. Ela estava se apaixonando por Ulisses, mas não por aquele com quem se encontrava eventualmente, sujeito a todos os prosaísmos do cotidiano. Seu Ulisses era um misto de homem e mito. Simples mortal, mas com virtudes de semideus. Já fazia parte integrante de sua história de vida. Não gostaria de se privar daquela presença misteriosa, simpática e contagiante. Ele nada mencionava de sua vida íntima, nem sugeria maior aproximação, como por exemplo, um almoço em família, um final de semana em sua casa de Angra. Persignando-se, ela acedia: melhor isso que nada disso. Será melhor adaptar-me às circunstâncias e deixar o barco correr. Ça va de soi.

O final de ano se aproximava. Talvez pudessem brindar a virada juntos. No entanto dezembro terminou sem nenhuma menção ao réveillon. Anita foi com a família apreciar a queima de fogos em Copacabana. Dirigiram-se ao ponto mais estratégico para melhor assistir ao espetáculo pirotécnico. Avistou de costas um senhor com o mesmo porte de Ulisses, abraçado a alguém. Não devia ser ele. Pelo sim, pelo não, aproximou-se para verificar. Era ele sim, abraçado a uma mulher aparentemente bem mais jovem. Deve ser uma de suas filhas, pensou. Manteve-se por perto, na esperança de visualizar melhor.  Era uma japonesinha mirrada e sem sal, uma magrela insignificante. Ulisses mantinha-se de costas. À meia-noite, um demorado beijo na boca desmoronou por completo aquele réveillon. Anita voltou para casa cabisbaixa e macambúzia. Todos quiseram saber o motivo daquela repentina mudança. Ela alegou cansaço.

Naquela noite, não conseguiu pregar os olhos. Uma infinidade de pensamentos contraditórios a atordoavam. O fato é que a troca diária de mensagens virtuais, as palavras adocicadas e a constante presença dele em sua vida envolveram-na emocionalmente muito além do desejável e muito aquém do desejado. Voltou a ser a adolescente apaixonada de outrora. Os tempos acabaram se embaralhando em sua mente. O passado se sobrepôs ao presente e impôs forte carga afetiva. O virtual sobrepujou o real, e a imaginação alçou altos voos. Quanto maior a altitude, mais vertiginosa é a queda. Anita não podia se imaginar de volta à mesmice insossa da rotina. Era preciso buscar algo para preencher o oco da solidão, para dissipar o que desvirtuava a alegria de viver.

Teria sido melhor se não tivesse ido à queima de fogos em Copacabana. Doeu muito. Tal dor era preocupante pelo fato de ser ilógica e totalmente inesperada em alguém que até então se considerava racional, sensata e ponderada. Batendo no peito com a mão direita, repetia parte do confiteorMea culpa, mea culpa, mea maxima culpa, por não ter conseguido timonear meu coração. É melhor colocar um ponto final no que nem foi iniciado. São caraminholas de uma adolescente apaixonada, que ainda não caiu em si, depois de meio século. Como poderia esperar ou exigir uma contrapartida de algo que nunca existiu? Não consigo entender a mim mesma, nem entender a mente humana. Que encanto é esse que me fascina? Que rebuliço é esse que me atormenta? Que júbilo é esse que me invade o ser? Que emoções são essas que brotam aos borbotões e me arrebatam? Que pensamentos são esses que criam visgo e me amarguram? Decididamente, não me reconheço. Não sou mais a mesma, tampouco sou outra. Não sei mais quem sou, o que sou, se sou...

Entre ambos, um fio invisível, delicado, mas concreto esgarçava-se em fragmentos, separava o que nunca estivera unido. Juras nunca havidas, carícias contidas, beijos não dados, o adeus sem partida... saudades do não acontecido.

Sem sono, Anita abriu o facebook. Por coincidência, viu uma comparação entre “amor” e “apego”. “Quero que você seja feliz” (é amor); “quero que você me faça feliz” (é apego). Por que não mesclar as coisas? ─ Pensou: “quero que você seja feliz e me faça feliz”. Aliás, o que é felicidade? Isso existe? Ou existem apenas momentos de bem-aventurança? Quais são os tipos de amor? Quais são seus graus de intensidade? Qual é o limite entre amor e afeição? Por que esses sentimentos geram o ciúme? Em que proporção o ciúme prejudica o relacionamento das pessoas?  Até que ponto o sofrimento emocional pode abalar o sistema imunológico e engendrar doenças psicossomáticas?   Por que minha tristeza é inversamente proporcional à alegria estampada no casal abraçado, em Copacabana? O poeta Fernando Pessoa tem razão: felizes são as plantas, que existem por existir.

Anita amofinava-se num torvelinho de dúvidas. No primeiro dia do ano, decidiu evadir-se. Enviou a Ulisses uma curta mensagem dizendo que ficaria desconectada do mundo, durante as férias de verão, numa fazenda da família. Levou consigo os sete volumes originais da obra de Proust,  À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido). Sempre protelava o início daquela leitura, pelo fato de ser muito longa, difícil e arrastada. Carecia de tempo e de sossego.

Na fazenda, Anita remoia seus anseios: ─ O entressonho alenta a memória, mas remendos do passado não se cosem no presente.

 Remendava as horas com retalhos de esperança e tecia conjecturas com meadas de quimeras. Dias e dias a fio, foi cosendo fragmentos e cerzindo sentimentos, para encapar o viver. Na lerdeza do tempo, as meadas se desbotavam, os retalhos se esgarçavam, e tudo se decompunha, nos fiapos soturnos da noite. Nas altas horas, Anita fazia registros poéticos em sua caderneta: na gramática da melancolia, a sintaxe em desalento coordena padecimentos com palavras doridas. Na quietude da roça, escuridão e silêncio liberam vaga-lumes e zumbidos de muriçoca. Na escuridão da noite, vaga-lumes coriscam salpicando claridade. No silêncio da madrugada, muriçocas ciciam, ferindo meus ouvidos. Na quietude da alcova, a insônia me aprisiona, na indolente lassidão do tempo.

Nas malfadadas férias, Anita mergulhou na obra de Proust, no afã de passar o tempo em boa companhia. Nessa busca, acabou encontrando, no primeiro volume À côté de chez Swann, reflexões que, de certa forma, a ajudaram a superar o desapontamento. Descobriu que o sentimento amoroso é inexplicável; que ele se desenvolve, sobretudo por intermédio da imaginação, da idealização. Não se sabe por que se ama alguém; não há base sólida na qual se possa apoiar. A imagem vista ou criada da pessoa amada não condiz com a realidade. Assim sendo, o amor não está no ser amado. Ele se encontra inteiramente no ser enamorado, ou apaixonado. Para Proust, o objeto do desejo não prescinde de existência própria. Ele existe tal e qual é contemplado por aquele que o deseja.

É isso mesmo ─ pensou Anita. ─ Meu Ulisses foi criado por mim. Não tem concretude. Não conheço seus hábitos cotidianos, não sei o que pensa, o que sente, o que come... desconheço seus passatempos prediletos, seus amigos, seus amores... como posso amar alguém que mal conheço?

Continuando a desvendar as concepções proustianas sobre o amor, interou-se de que o ato sexual ou a posse física do ser amado nem sempre tem a completude almejada. Tudo é muito subjetivo. Tal posse pode engendrar ansiedade, inquietude e até mesmo frustração. Isso acontece porque o apaixonado não deseja apenas o corpo físico; anseia penetrar na essência do ser amado, sem se dar conta de que grande parte deste foi idealizada por ele. Destarte, o mistério que o ser amado desperta não se encontra em si, mas no próprio sentimento amoroso. O sentimento de posse muitas vezes desperta o ciúme, confunde-se com ele e acaba se transformando pura e simplesmente em ciúme, às vezes doentio, obsessivo e mórbido. Essa tortura malsã intenta penetrar não apenas nas ações do dia a dia, no convívio social, mas também no pensamento do ser amado. Esse estado de alucinação amorosa, responsável por tantos atritos e tantos crimes só termina cedendo lugar à lucidez, ao desapego. Como dizia Proust, Il faudrait choisir : cesser de souffrir ou cesser d’aimer.

A decisão «cessar de sofrer», está irremediavelmente ligada ao “cessar de amar”. Com distanciamento temporal e, por conseguinte, com distanciamento crítico, ela se deu conta de sua insensatez. A perda de um ser amado não corresponde à perda da capacidade de amar.

Anita identificou-se com a concepção amorosa proustiana: O protagonista Swann se interessa por Odette. Num “crescendo”, ele se encanta, se enamora, se enciúma, se apaixona, se angustia e sofre. Seu sentimento, assim como o dos outros personagens, se inicia com o desejo e termina com a ansiedade dolorosa.

O mesmo se deu com Anita. Em ambos os casos tal sentimento perpassou as alegrias e as agruras a ele inerentes: interesse, desejo, amor, inquietação, ansiedade, frustração e sofrimento.

Então é isso ─ refletia Anita. ─ O amor jamais produz a felicidade. A felicidade é inatingível. Deve ter a mesma inefabilidade do termo “paraíso”, ou é apenas um metaforismo?

No final das férias, Anita garatujou alguns versinhos, antes de embarcar de volta:
Na falta de tuas mensagens / preencho a vaziez do tempo / com versos dispersos.
Na lerdeza das horas / palmilho degraus da vida / em busca não sei de quê.
Na inópia de concretude / pesco minha cabeça nas nuvens / prendo-a ao corpo físico /
Cogito desertar de tudo/

Ela ainda não sabia o que fazer após a volta ao Rio. Nunca pensou que uma simples cena pudesse afetá-la tanto. Daria o visto pelo não visto e tudo continuaria como antes. Não, não conseguiria. Não tinha vocação para atriz. Pediria explicações. Não, não havia nada a explicar. Eram apenas amigos. Não tinham compromisso algum. Ele era livre para namorar todas as japonesinhas do mundo. Seria absolutamente ridículo da parte dela demonstrar qualquer tipo de mágoa. Teria que apagar as pegadas do passado. O que havia acontecido, da parte dela, foi um embevecimento platônico-apolíneo de rara beleza e de grande delicadeza; da parte dele, incógnita total. Para ela, o que se passava na cabeça masculina correspondia ao outro lado da lua... ao desconhecido, ao inacessível.
Decisão tomada, a duras penas: “desapaixonar, há que se.”


Jô Drumond é escritora e membro da: AEL (Academia Espírito-santense de Letras). AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras) AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras) IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).