terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

CONCORRÊNCIA


“Castigat ridendo mores” (Correção dos costumes pelo riso)
Jean de Santeuil

(Baltazar Guimarães Silva e a escritora Jô Drumond)

Como explicar o sucesso estrondoso de uma sátira escrita há mais de meio século contra uma determinada pessoa pública que não se mantinha nos trilhos?
Um dos diversos teóricos do riso, Vladimir Propp afirma que a essência da sátira é a derrisão dos defeitos dos homens. Afirma também, em seu livro Comicidade e riso (1992), que é possível rir do ser humano em quase todas as suas manifestações, tanto na vida física quanto na vida moral e intelectual.

A sátira seria uma espécie de arma utilizada, às vezes, para coibir excessos e desvios sociais e/ou individuais. A crítica, seja irônica, sutil, ferina ou mordaz, provoca o riso de zombaria, que é um dos tipos de riso mais frequentes na sociedade.

Baltazar Guimarães (1926), meu conterrâneo e parente (temos ascendentes comuns), residente em Patos de Minas (MG), fez uma espécie de cordel satírico, com 16 versos (4 estrofes) em redondilha maior (heptassílabos), com rimas alternadas, tipo de verso muito apreciado na poesia popular.
Para melhor entendimento de sua sátira, é mister fazer uma prévia contextualização.

Em meados do século passado, em Patos de Minas, havia um prefeito que andava enamorado por uma bela cidadã. Como era casado, contratou-a como chefe de gabinete. Destarte estaria sempre a seu lado, sem levantar suspeitas. Acontece que sua preferida era casada e afeita à poligamia. Namorava também um serralheiro, que gostaria de tê-la por perto.

Certa feita, a prefeitura abriu concorrência pública para a construção de mata-burros nas estradas rurais, com aproveitamento de velhos trilhos de ferrovia. Como se tratava de um serviço próprio de serralheiro, o namorado número 2 vislumbrou a possibilidade de ganhar a concorrência para frequentar mais assiduamente o gabinete onde ela trabalhava. Com esse intuito, montou uma firma de engenharia, contratou engenheiro e fez uma proposta com custos bem abaixo do mercado, na certeza de ser contemplado.  Ciente do estratagema de seu rival, o prefeito agiu nos mesmos moldes. Arranjou outra firma para cobrir a proposta em iguais condições e com os mesmos valores. Em caso de empate, cabia a ele decidir por uma das duas. Evidentemente, escolheu a que lhe convinha.

O serralheiro, despeitado pela proximidade cotidiana do rival com o objeto de seus desejos e indignado com sua atitude desonesta, por ter violado a proposta e feito outra igual, começou a maldizê-lo em rodas de bar. Incomodado com essas maledicências, o prefeito resolveu partir para a agressão. Casualmente, entrou em uma lanchonete onde se encontrava seu desafeto. O malfadado encontro acabou em tapas, socos e safanões.

No dia seguinte, o carro do prefeito apareceu com marca de tiro em uma porta lateral. Seu rival foi acusado de tentativa de homicídio. No entanto, o exame de balística comprovou que a bala era proveniente da arma do próprio prefeito.

Baltazar Guimarães expôs a situação de maneira jocosa, com cadência cordelística:
           
 Baltazar datilografou os versos em quatro vias, com papel carbono. Na época ainda não existia fotocópia.  Duas dessas cópias caíram no chão, durante um campeonato de futebol da UEP (União dos Estudantes Patenses). Quem as encontrou, possivelmente algum desafeto do prefeito, resolveu fazer a divulgação. Levou-as ao escritório de Valdemar Mendes. Durante uma semana, os versos foram datilografados centenas de vezes, de 4 em 4 vias, para atender à demanda, que se avolumava como bola de neve. Formava-se fila de espera de cópias, à porta do escritório.

Os versos anônimos acabaram caindo nas mãos da imprensa da capital, acrescidos de uma nota explicativa. Posteriormente foram publicados por um jornal carioca. A rápida divulgação causou espanto ao autor, que fazia questão de se manter no anonimato, por temer represálias do alvo da sátira, pessoa nem sempre pacífica.

Na época, Patos de Minas ainda era uma pequena cidade, local propício para fofocas e maledicências. Alguém acabou dando com a língua nos dentes, e Baltazar viu-se perseguido pela administração pública. No entanto um providencial imprevisto o livrou do castigo: o capotamento de um carro da prefeitura, na estrada de Unaí, provocou a morte dos encarregados de castigá-lo pela indevida “molecagem”.

Quem foi castigado, de fato, foi o prefeito, que se viu à mercê da maledicência pública.
Na época da colonização, Padre Antônio Vieira já dizia que Gregório de Matos, com seus epigramas maliciosos, corrigia e educava mais rapidamente a sociedade brasileira do que ele com seus sermões
.


(Baltazar e seu filho Caio, com Jô Drumond)
Nota:

Em recente bate-papo com o autor, ele frisou a ambiguidade do título (“Concorrência” pública e amorosa)  e ressaltou alguns detalhes que não devem passar despercebidos:

* “TAÍ.DÃO, tiro na rua: o responsável pelo tiro, chamado Ataídes, tinha a alcunha de TAÍDÃO.
*“por alguém que se dis...PUTA”: do verbo disputar (a concorrência) e ao mesmo tempo menção à vida poligâmica do pivô do conflito.

*“um crime quase PERFEITO”: (perfeito/prefeito) “quase”, porque o exame de balística  pôs fim à farsa de tentativa de homicídio.

*“o homem já vai à lua”: isso aconteceu na época da primeira viagem do homem à lua.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

OS NEFELIBATAS



Desde pequenina, eu sempre ouvia: “fulano vive nas nuvens”. Não entendia o sentido metafórico da expressão. Eu me perguntava por que viver nas nuvens se é bem mais prático viver em casa, com calefação no inverno, condicionador de ar no verão, comidinha gostosa... Além do mais, dormir na nuvem deve ser bem mais desconfortável que em caminha macia. Decididamente, os adultos têm cada ideia!

Com o passar do tempo, comecei a entender as falas enviesadas dos mais velhos. Entendi que ninguém vive nas alturas. Trata-se apenas de uma espécie de qualificativo para pessoas distraídas, sonhadoras, meditativas, idealistas, enfim, para aqueles que procuram se esquivar da realidade circundante, ou, como se diz popularmente, para aqueles que não têm os pés no chão.

Em Literatura, o termo nefelibata, de origem grega (grego "nephele" e "batha" = aquele que anda nas nuvens), é usado para tachar os que desobedecem às regras literárias, sobretudo os poetas que, geralmente, têm tendência inata ao nefelibatismo. No entanto, há poetas que deixam eventualmente a cabeça voejar, sem nunca tirar os pés do chão. São engajados socialmente e não aderem à concepção da Arte pela Arte. Não privilegiam a Estética em detrimento de outras funções tendenciosas do fazer artístico (morais, pedagógicas, religiosas, políticas, entre outras).

Mas isso não vem ao caso. O que importa é que descobri casualmente, na França, uma cidadezinha
medieval literalmente nefelibata, onde todos os moradores vivem não apenas com a cabeça nas nuvens, mas com o corpo todo, inclusive seus bens móveis e imóveis. Foi uma descoberta inesperada e deveras impactante.

Ao aceitar o convite de uma amiga parisiense para uma estada em Toulouse, aceitei prontamente. Minha intenção, na verdade, era conhecer uma cidadezinha próxima dali, chamada Albi (80 Km de Toulouse), terra natal do artista plástico Toulouse Lautrec (1864-1901). Após ter vivenciado o dia a dia dos idosos em um asilo (descrito na minha crônica “O luxo e o laxo”), seguimos de carro para Albi. Durante o percurso, Monique sugeriu uma visita a um vilarejo construído sobre as nuvens. Eu quis logo saber que disparate era aquele. Tratava-se de uma fortaleza medieval construída no cocuruto de um monte. Devido à altitude, as construções se mostram quase sempre entre ou sobre as nuvens (veja fotos). Convite irrecusável. Desviamo-nos um pouco do roteiro previsto, e nos dirigimos à insólita cidadezinha. A cidadela foi construída no século XIII, no topo de uma montanha, como foi dito, devido às falésias que se prestavam à defesa natural. Para maior fortificação, foram construídas duas muralhas de proteção.

Não há circulação de veículos no local. Haja fôlego para subir, haja olhos para apreciar tanta beleza e
haja câmeras para registrar as labirínticas ruelas, assim como os charmosos casarios de pedra escalando as ladeiras. Qualquer ângulo se presta a um “clique”. A beleza é tamanha que o cansaço físico passa despercebido pelos subintes. No alto do penhasco, uma vista inigualável, além de bares, restaurantes, artesanatos, museus, adegas e, evidentemente, uma igreja. Para guardião da fortaleza, o padroeiro escolhido foi o santo guerreiro Saint Michel (São Miguel), considerado defensor e protetor do povo.

Na culinária, uma das mais nobres e apreciadas iguarias locais, é o inigualável “paté de foie gras”, um dos melhores do mundo, e muito apreciado em todo o “hexágono” francês.
O inesperado dessa viagem superou todas as expectativas referentes às outras localidades visitadas. Diz a canção de Caetano Veloso, ... “talvez quem sabe, o inesperado faça uma surpresa...” Data vênia, aproveitando a licenciosidade poética do compositor, reitero seu pleonasmo afirmando que o inesperado me fez uma grande surpresa. Uma surpresa tão inesperada quanto subir ladeira acima e descer ladeira abaixo, no inusitado Cordes-sur-ciel, considerado o mais belo vilarejo daquele país.

domingo, 27 de janeiro de 2019

O MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS

De certa forma, “vivemos no melhor dos mundos possíveis” (Liebniz), graças às ciências e à tecnologia. Podemos comunicar-nos por meio de áudio e vídeo em tempo real nos quatro cantos do mundo. Temos todo o conforto doméstico disponível nos dias de hoje. Muitos outros tipos de conforto surgirão nas próximas décadas. Nossos descendentes não conseguirão imaginar o way of life de seus ancestrais, sem carro, sem estradas de rodagem, sem avião, sem energia elétrica, sem televisão, sem videogames, sem computador, sem celular...

Os jovens nem imaginam que os primeiros computadores eram tão grandes que os usuários trabalhavam dentro deles. O primeiro computador, em 1946, tinha 180 m2 de área construída, pesava 30 toneladas e possuía apenas 200 bits de memória RAM. Thomas Edson criou a primeira a lâmpada em 1879. Karl Benz criou o primeiro automóvel moderno em 1886. Santos Dumont fez o primeiro voo, com decolagem, permanência no ar e pouso, em 1906. Ernst Alexanderson conseguiu a primeira transmissão de TV, muito rudimentar, em 1928.

Vivemos no melhor dos mundos possíveis”, mas basta que um dos segmentos de nossa vida gregária entre em disfunção, para que haja transtorno e até mesmo comoção coletiva. Tomemos como exemplo o recente caso da greve dos caminhoneiros. Inicialmente, tratava-se apenas de uma notícia a mais nos jornais impressos, televisivos e virtuais. A vida continuava seu curso normal. Alguns dias após o início da greve, devido ao desabastecimento de combustíveis, todos nós fomos diretamente afetados. Ônibus, coletivos e táxis foram se escasseando, até a parada completa. O mesmo aconteceu com os carros particulares. Até então, não havia grandes problemas. Quem não podia se dirigir ao trabalho, por falta de condução, aproveitava as férias compulsórias, muito bem-vindas, para ver televisão, ouvir música ou tirar um cochilo no meio da tarde.

No entanto, o bem-estar do feriadão remunerado durou pouco. Nos hospitais, atendimento precário por falta de pessoal. Supermercados e padarias fechados, por falta de atendentes. As escolas fecharam suas portas, assim como quase todo o comércio. Caso uma mercearia ou padaria arriscasse funcionar precariamente, era invadida por uma horda de compradores vorazes, no afã de adquirir tudo que encontrassem pela frente, capazes de ir às últimas consequências pela disputa de algum produto escasso. O temor da permanência da crise despertou nos cidadãos o instinto da disputa pela sobrevivência. Bastou a paralisação de um segmento social para causar colapso, temor e desolação.

Um outro exemplo menos perturbador, mas também com grande poder de transtorno é a falta prolongada de energia elétrica. Inicialmente, pessoas distraídas se veem em situações hílares no dia a dia, pela falta de hábito de viver sem eletricidade. Pude experimentar uma situação deveras cômica. Sem energia, tive que parar o trabalho no computador, porque a bateria havia expirado. Sem poder trabalhar, resolvi ver televisão. Impossível. Enquanto esperava a volta da energia, decidi tomar uma ducha. Água gelada. Deixei o banho para mais tarde. Decidi então ir para a cozinha, preparar alguns quitutes no fogão a gás. Felizmente não dispunha de fogão elétrico. Porém eu havia me esquecido de que o acendimento do fogão era automático. Só funcionava com energia elétrica. Há tempos não tocava em um palito de fósforos, coisa de museu. Pensei em telefonar para a Companhia de Força e Luz, mas os telefones tampouco funcionavam sem energia. Como não havia nada a fazer, resolvi sair para passear no parque com os netos. Fui até à portaria do prédio onde moravam. Elevador parado. Como subir mais de vinte andares? Passeio adiado.

Inicialmente, deparamos apenas com percalços domésticos de pequena grandeza, como esses, mas, caso o desabastecimento persistisse, a situação se agravaria. Todos os alimentos perecíveis que necessitam de resfriamento ou congelamento deveriam ser descartados. As noites sem iluminação pública proporcionariam ambiente propício para toda sorte de malfeitores. Quanto mais tempo sem energia, maiores seriam os problemas a serem enfrentados pela sociedade e pelo poder público.

Em tempos de paz, mais cedo ou mais tarde, tudo se resolve a contento. Entretanto, em períodos bélicos, nós, citadinos, somos presas extremamente fáceis de encurralar e abater. Basta que o inimigo faça o cerco à cidade, corte os meios de comunicação e a energia elétrica e envenene a água. Não mais que isso. Êxito garantido, sem violência, sem sangue e sem bombas. A morte coletiva seria gradual pela escassez de víveres, e natural, por inanição. Vitória simples, fácil e pouco dispendiosa. Viveríamos no pior dos mundos possíveis, um mundo extremamente vulnerável.

Esta frase bastante conhecida, “Vivemos no melhor dos mundos possíveis”, é de um alemão, filósofo, cientista, matemático e diplomata, Gottfrield Leibniz.(1646/1716).

Segundo ele, sendo Deus um ser sumamente bom e onisciente, só poderia colocar os humanos no melhor dos mundos possíveis.

O filósofo iluminista francês, Voltaire (1694/1778) vai de encontro à concepção aristocrata de Leibniz. Em sua obra Candide ou l’optimisme, ele faz uma sátira veemente ao otimismo leibniziano. O nome do protagonista, Cândido, já indica a ingenuidade de um jovem, de déu em déu, à mercê de um mundo perverso. Ao longo dos capítulos, há uma desastrosa sequência de fatos na vida de Cândido, com cenários de guerra, catástrofes naturais, violência política, canibalismo, banditismo e corrupção.

É mister frisar que Voltaire defendia a liberdade de expressão e criticava constantemente a Inquisição, a intolerância, o fanatismo religioso, a escravidão, a superstição... (iluminismo versus obscurantismo). Ele era também contra a concepção leibniziana de que “tudo possui uma razão ou princípio fundamental para acontecer”.

Por meio de seu ingênuo e simpático personagem, Candide, Voltaire tenta demonstrar que, se este fosse o melhor dos mundos, não gostaríamos de conhecer o pior. A seu ver, como não podemos mudar o mundo de forma imediata, que cada um cuide, pelo menos, de seu pequeno jardim. Um de seus lemas era: “Il faut cultiver notre jardin”.