domingo, 20 de janeiro de 2019

O LUXO E O LAXO

Durante minha última temporada na Europa, recebi um inusitado convite de minha amiga parisiense, Monique: visitar sua tia/madrinha, de 96 anos, em um asilo ao sul da França, em Toulouse, a 700 km de Paris. Tomamos um avião em Orly, juntamente com meu marido. Uma boa surpresa nos aguardava em Toulouse. Em vez de reservar hotel, ela havia reservado duas suítes para hóspedes, no próprio asilo onde vive sua tia. Para mim, era um universo totalmente desconhecido. Estava ansiosa para conhecer a vida confinada dos anciões. Sempre gostei de conversar com idosos. Eles têm muito a dizer. Estava certa de que seria uma experiência muito enriquecedora.

Um táxi nos deixou diante de uma grande construção, com amplos jardins, em cuja placa se lia “Résidence Crampel”. O termo “asilo”, com carga semântica um tanto negativa, foi trocado por outro bem mais leve e adequado: “Residência”. Gostei do eufemismo. Poderia ser “Residência de idosos”, mas preferiram algo mais neutro, o sobrenome Crampel. As acomodações eram confortáveis, com climatização, e ambiente acolhedor.



No primeiro dia, fomos convidados por Lucette, nossa anfitriã nonagenária, para um almoço em petit comité em uma saleta aconchegante, onde havia apenas uma mesa redonda, muito bem decorada, contígua ao restaurante. Para ter acesso a esse local, tivemos que atravessar o restaurante. Foi uma cena deveras impactante para mim. O recinto estava repleto de comensais em cadeira de rodas, andadores e muletas. Os idosos também pareciam surpresos com a presença de estranhos ao ninho. Lucette nos apresentou seus companheiros cotidianos de refeição e, logo após, nos conduziu à mesa preparada especialmente par nós.

Nossa anfitriã mostrou-se muito simpática e sorridente. Apesar da idade, andava ereta, amparada


discretamente por uma bengala. Era lúcida e interagia normalmente, sem problemas auditivos, visuais e sem sombras de caduquice. No entanto, minha maior expectativa foi frustrante. Eu esperava uma ótima interlocução com Lucette, mas apesar de alegre e solícita, era pouco falante. Sobretudo, nunca falava de si. Respondia às perguntas gentilmente, por monossílabos, com nítida parcimônia lexical. Soube que ela havia sido atriz de cinema e de teatro, na juventude. Isso aguçou minha curiosidade. Lamentavelmente, o que consegui saber de sua pregressa vida de artista foi por meio da internet, onde há poucas informações a seu respeito.

Certa noite fomos convidados por seu filho, que é padre, para um jantar em restaurante gastronômico. Ao tomarmos assento, ele perguntou à mãe, que tipo de suco ela tomaria, ao que ela respondeu:

tomar suco? Quero um bom vinho.

Eu já havia reparado, em nossas andanças, que ela sempre pedia vinho ou cerveja. Nossa intenção era dar-lhe férias do cativeiro. Digo cativeiro porque, apesar da aparência de hotel 4 estrelas, todas as portas de saída permaneciam trancadas noite e dia, para que não escapasse nenhum idoso atacado pelo mal de Alzheimer. Programamos diversos passeios na tentativa de tornar sua vida menos anódina. Durante cinco dias, flanamos pelas ruas da cidade e visitamos os principais monumentos: Igrejas lindíssimas, como a de Taur, a de São Sérnin e a dos Jacobinos. Visitamos o Claustro dos Agostinianos, tomamos cerveja na belíssima Praça do Capitólio, passeamos de barco no Canal do Midi, enfim, proporcionamos bons momentos à nossa nova amiga. Ela se mostrava sempre bem-disposta e bem-humorada.

Enganamo-nos ao pensar que a vida no asilo Crampel é monótona e sem atrativos. Há intensa programação cultural: palestras, shows, peças de teatro, conferências, festas temáticas, danças e outros entretenimentos. Há também salas aparelhadas para diversos tipos de atividades físicas. Uma infinidade de possibilidades de passatempo é oferecida, com acompanhamento personalizado. As atividades são adaptadas às condições físicas e mentais de cada “residente”. Há, por exemplo, arte terapia, musicoterapia, kinesioterapia, jardinagem, atividades manuais, jogos de sociedade, oficinas de culinária, de expressão escrita, de cinema, de quizz... Soube que a Résidence conta com uma equipe pluridisciplinar, composta de médicos, paramédicos, enfermeiros, psicólogos e auxiliares especializados. Apesar da intensa programação social à disposição de todos, a privacidade de cada um é preservada.

Quando lá estávamos, fiz questão de assistir à uma apresentação de músicas latinas por uma banda francesa, dentro do salão nobre. Uma senhora, ao meu lado, diferentemente da maioria, mostrava-se muito alegre e animada. Seus olhinhos brilhavam de entusiasmo. Dançava, o tempo todo, movimentando o tronco, com os braços e a cabeça. As pernas haviam perdido sua função, havia bastante tempo. Ela me disse, com ares melancólicos, que fora dançarina, na juventude.

Enquanto os componentes da banda tocavam, cantavam e dançavam, via-se na plateia um clima de apatia quase total. Alguns dormitavam, de boca aberta, outros olhavam para o vazio. A maioria parecia entediar-se, apesar dos esforços do animador. Poucos interagiam.

Tal cena me fez refletir sobre as limitações físicas e as agruras impostas pela ditadura da velhice. Os idosos dispõem apenas de duas opções, nenhuma delas promissora: passar por todas as etapas da decrepitude ou partir para o além, antes disso. Nenhuma das duas possibilidades é bem-vinda. Ninguém quer sofrer, nem partir para a grande incógnita. A grande maioria prefere tolerar as dores, os achaques da idade e postergar a indesejável visita da dama da foice. Ninguém, com raras exceções, gostaria de acompanhá-la por caminhos ignotos. O desconhecido muitas vezes causa temor. Não se sabe o que há do outro lado, ou melhor, se há algo do outro lado.


Na Résidence Crampel, há internos que acrescentam boa dose de depressão ao peso da idade. Alguns preferem não sair de seus apartamentos para refeições, nem para atividades culturais. Tampouco têm vontade de fazer novas amizades. Dependendo do grau de decrepitude, eles têm motivos suficientes para isso. Fisicamente, sentem-se cada vez piores sem perspectiva de futuro, nem de efetivas melhoras, com dores generalizadas, dificuldade de locomoção, dependência de outrem para as necessidades básicas, e uma série de agruras próprias da idade. A saúde degringola-se a passos largos.

A meu ver, o que mais agrava a situação é a falta de objetivos em curto, médio e longo prazos. No dia a dia, os objetivos do autoenclausurados são prosaicos: aguardar os melhores momentos (os das refeições); ler um bom livro, para aqueles que ainda dispõem de visão; ouvir música, caso a audição ainda vigore ou ver televisão, caso disponham de ambos os sentidos em boas condições. Para alguns, existe a expectativa da visita de parentes, mas estes, envolvidos na lufa-lufa da era digital raramente se lembram de visitá-los. Quando se dignam fazer uma visitinha, que seja rápida, sem tempo para a devida atenção, nem para um dedo de prosa. Os carinhos, cada vez mais raros, tornam-se inexpressivos; não apenas carinhos físicos. Os idosos gostam de se sentir amados, e, de alguma forma, úteis. Sem objetivos, nem perspectivas, o que lhes resta?

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

CORONEL CORIOLANDO

Por: Jô Drumond
No início do século XX, o coronel Coriolando, possuidor de grande latifúndio no interior de Minas, foi alertado, por meio de um bilhete anônimo, que deveria “dar mais fé” no dia a dia de sua mulher. Não entendeu o que o remetente quis dizer, mas, por via das dúvidas, “melhor seria prevenir que remediar”. Ofereceu boa quantia em dinheiro a um de seus colonos, para que não perdesse a patroa de vista e para que lhe relatasse, ao fim de cada dia, tudo que sucedesse em seus domínios.

A vida conjugal do coronel não era lá essas coisas. Não passava de casamento de fachada, coisa pra inglês ver, como se diz no interior. Abadiinha, sua esposa, se sentia não mais que uma peça de engrenagem, um objeto doméstico ou um joguete em mãos alheias. Não recebia atenção nem carinho por parte de ninguém. Aliás, tudo acontecia à sua revelia, como se ela não existisse. De vez em quando, pensava em fugir, em desaparecer, até mesmo em morrer. Sentia-se absolutamente sozinha. O diálogo entre ela e o marido era inexistente, havia tempos. Sua única escapadela da opressão cotidiana era a caminhada matinal. No contato direto com a natureza, sentia-se livre. Gostava de caminhar pelos pastos, de sentir cheiro de mato, de apreciar o cromatismo das gotículas de orvalho sob raios solares, de observar o deslocamento de pequenos animais silvestres em busca de alimento, de sentir o toque do sol na pele e o vento a desguedelhar seus cabelos.

Abadia fora enviada para um internato de freiras, ainda criança. De lá saíra para o desponsório. Tendo convivido apenas com freiras e com internas, nunca tivera contato com o sexo masculino até o dia das bodas, arranjadas pelos pais.  O noivo escolhido tinha mais do dobro de sua idade. Era circunspecto e um tanto rude.


Em uma de suas andanças solitárias, distraída a observar o voo de uma grande borboleta azul, assustou-se com o rosnado de um cachorro do mato, prestes a atacá-la. Por sorte, foi protegida por um cavaleiro andante que, surgido do nada, se apresentou como filho de Natanael, fazendeiro vizinho. Ela nunca o tinha visto. Tratava-se de um rapaz esguio, claro, de cabelos negros, de porte altivo, extremamente cortês. Pediu-lhe a permissão para acompanhá-la até as proximidades da sede da fazenda, com o intuito de protegê-la contra qualquer perigo.


Nas caminhadas matutinas, de vez em quando, cruzava com tal rapaz. Às vezes ele parava para uma breve prosa. Identificou-se como Manoel, futuro bacharel em Direito. Estudava na capital e estava de férias, na fazenda dos pais. Acrescentou que seu pai sempre havia sonhado em ter em casa um médico, um advogado e um padre. Arrematou, em tom jocoso, que o que seu pai realmente queria era um filho para cuidar de suas tretas jurídicas; outro para cuidar de suas perrenguices; e um terceiro para lhe assegurar um lugarzinho no céu.

O jovem era alegre, simpático e despretensioso. Com todo o respeito que lhe era peculiar passou a acompanhá-la eventualmente em parte das caminhadas. Naqueles rincões, ele se sentia tão solitário quanto ela. Não tinha com quem prosear. Seu pai andava sempre muito ocupado. Sua mãe, atarantada com as lidas domésticas. Os agregados (colonos, meeiros, vaqueiros, agricultores, peões) em geral não passavam de um bando de semianalfabetos desinformados, viventes de um universo completamente diverso do seu. Felizmente havia Abadia, que destoava do entorno: senhorinha fina, educada, leitora voraz, conhecedora dos clássicos da Literatura e da boa Música. A interlocução entre eles era salutar para ambas as partes. Um agradável bate-papo entre dois solitários, um compartilhamento de afinidades intelectuais e artísticas, em ambiente inóspito para esse tipo de prosa. Para a tristeza de ambos, em breve as férias chegariam ao fim. Ele voltaria a seus estudos e ela retomaria seu modorrento cotidiano.

Sem que nem por quê, Manoel desapareceu da paisagem campesina, sem se despedir de Abadia. Talvez ele tivesse adiantado o dia da partida, por algum motivo, sem tempo para um adeus. Só podia sem isso. Ela se apegou a essa possibilidade até o dia em que soube que a família do jovem estava desesperada, sem saber de seu paradeiro. Pelo que constava, antes de desaparecer, ele saíra para fazer o passeio matinal nas cercanias da fazenda.

Natanael, homem de muitas posses, contratou detetives para tentar desvendar o desaparecimento do filho. Soube dos encontros fortuitos dele com Abadia.  Soube do malfadado bilhete anônimo e soube também que, naquela época, dois homens desconhecidos haviam sido contratados para trabalhar na fazenda do coronel. Nada lhe tirava da cabeça que eles estariam envolvidos naquele mistério. No entanto, não havia prova alguma. Levantar falso testemunho ou caluniar o mandachuva ou algum de seus agregados, seria decretar sua própria sentença de morte. Fazer o quê? Coriolando era o “mandão”, uma espécie de senhor feudal anacrônico, contra quem nada se podia fazer.

Natanael não se deu por vencido. Certo dia, durante o velório de um antigo agregado do coronel, que já havia trabalhado em sua fazenda, ele se aproximou dos dois suspeitos, que picavam fumo para a preparação do pito de palha. Tocou no assunto do desaparecimento do filho, com um conhecido, em voz alta e bom tom, para que os dois ouvissem. Disse que os cabras que possivelmente haviam executado seu filho, a mando de alguém, deviam estar fumando fumo forte. Ao ouvir isso um dos dois levou um susto e deixou cair o tabaco. O outro também teve um sobressalto. O pai de Manoel percebeu a reação de ambos, mas mineiramente, fingiu indiferença. Proseou um pouco mais com os conhecidos, e saiu à francesa, sem ser notado por viva alma. Foi diretamente ao arraial mais próximo e voltou acompanhado de quatro policiais armados, portando dois pares de algemas.

Os suspeitos acabaram presos. Confessaram o crime, relataram detalhes da execução e mostraram onde haviam enterrado o corpo e as armas.

Segundo o relato dos executores, o estudante caíra em emboscada, em trilha estreita de uma capoeira, quando voltava de um desses passeios. Ambos descarregaram sobre ele todo seu estoque de sadismo, com requintes de judiação. Após muita crueldade, maldade, perversidade, desumanidade e mais meia dúzia de “...ades” do mesmo campo semântico, obrigaram-no a cavar a própria sepultura. Ainda insatisfeitos, furaram-lhe os olhos e sangraram-no como a um animal no matadouro. Apesar de terem confessado o crime, os criminosos se recusavam a dizer quem havia sido o mandante. Afirmavam e reafirmavam que não havia mandante algum. Antes que um deles resolvesse soltar a língua, ambos amanheceram misteriosamente mortos, na cela.

Na mente de Natanael, o quebra-cabeça se encaixava. Após ter sido informado dos eventuais encontros de Manoel com Abadia, o coronel poderia ter contratado os jagunços para dar cabo do invasor de seus domínios. Como pode um ser que se diz humano ser capaz de tamanha barbárie contra seu semelhante, perguntava-se sem cessar?

Passados o choque e o escândalo iniciais, a poeira foi baixando. A memória do povo fez questão de se apagar o quanto antes, devido ao temor reinante nas redondezas. Ninguém tocava no assunto. Por conta da ineficiência policial e do coronelismo dominante, tudo tendia a ficar como antes. Ninguém viu nada, ninguém ouviu nada, ninguém disse nada, como os três macaquinhos sábios. E tudo continuou na mesma, como se nada houvesse acontecido. Os dias amanheciam e anoiteciam, impreterivelmente, as quatro estações respeitavam sua vez, ciclicamente, e o mundo continuava a girar em torno de si e do Sol, indiferente a tudo que se passava em sua superfície, per omnia saecula saeculorum, Amen.

sábado, 29 de dezembro de 2018

NICHO DE CORNICHOS (CORNOS E REGA-BOFES)

Pelos idos de 1950, nos recônditos do sertão mineiro, na região da Charneca, Jacintho, chamado afetivamente de Jacintim, andava de chamego com a mulher de seu compadre José Manoel, conhecido também como Zé Mané, vulgo Manezim. Desconfiado da infidelidade dos dois, o marido traído disse que ia viajar. Arreou seu cavalo baio e partiu. Amarrou-o no tronco de uma árvore, na primeira capoeira, voltou a pé, e se escondeu na tulha. O esperado aconteceu. Se bem o pensou, melhor o fez. Quando o infiel compadre entrou para o quarto de casal, ele aguardou um pouco mais e saiu da tulha, com o intuito de pegar os dois em pleno pecado da luxúria. Desprevenido, Jacintim saiu em disparada, como veio ao mundo. Zé Mané pegou suas roupas e disse à mulher que as devolvesse ao fujão. O dia do casal transcorreu na santa Paz, como se nada houvesse acontecido.

No dia seguinte, Jacintim recebeu um recado de seu compadre, convidando-o para uma prosa. Receoso, ficou em dúvida se atendia ao chamado ou se fugia. Esperava o pior. Carregou seu 38, colocou-o na cintura e partiu apreensivo, com um pé atrás. Imaginava mil cenas possíveis. O que faria se estivesse no lugar de seu compadre? Com certeza, boa coisa não seria. Era caso de vida ou morte. Em tempos de antanho, seria motivo de duelo. No meio do caminho, resolveu arrepiar carreira. Puxou o cabresto, a rédea, e virou o cavalo de volta para casa. Não cometeria uma asneira daquelas. Era situação deveras complicada. Marchou meia légua e parou à sombra de um ingazeiro, para matutar. Apeou e acendeu um pito de palha. Tinha que organizar as ideias. Caso não atendesse ao chamado, seria considerado medroso e covarde ad aeternum. Era homem de brios. Não poderia tornar-se motivo de chacotas, na região. O melhor seria enfrentar o que viesse pela frente. Se era para morrer ou matar, fazer o quê? O trintaeoitão carregado e a excelente pontaria que sempre tivera o tranquilizavam, em parte.

- Com tanta mulher no mundo, meu Deus, por que fui bulir logo com a comadre? - perguntava a si próprio - Não sou o único culpado. Ela sempre me deu trela: olhares de soslaio, sorrisos brejeiros, ares maliciosos, o balanço das ancas, da cozinha para a sala de visitas. Era mais graciosa comigo que com os demais. Estou certo disso. Gostava de exibir seu decote recheado de predicados, ao me servir cafezinho. Puxa vida! Não tenho sangue de barata!

Num rompante, jogou fora o pito, montou o bainho e cavalgou até o temido destino. Chegando lá, foi muito bem recebido pelo compadre. Engataram conversa sobre amenidades campesinas: a beleza dos pastos na invernada, a produção leiteira, a última safra, a comercialização dos produtos... jogaram conversa fora até a chegada do balanço das ancas, do decote e do cafezinho. Comadre Mariinha os serviu toda acanhada, sem olhar enviesado, sem sorrisinho zombeteiro. Seu semblante demonstrava um misto de medo, apreensão e interrogação. Olhava ora para um, ora para outro, sem dizer palavra. Servido o café, fez menção de sair. Quando ela pediu licença, o marido lhe determinou que tomasse assento e ouvisse a prosa. Dirigiu-se a Jacintim, que se mostrava muito tenso, cruzando e descruzando os dedos.

- Meu caro compadre, tenho muito apreço por sua pessoa e não quero ingresia consigo. De modo que, como você se enrabichou por minha Mariinha, a partir de agora ela é sua. Vou-me embora desta terra e aqui não volto mais. A casa e o terreno são dela. O telhado é meu. Você me paga o telhado, se não quiser vê-la exposta ao tempo. Só exijo uma coisa. Você vai ter que cuidar muito bem de minha Mariinha pelo resto da vida. Apesar de distante, vou ficar de olho. Se pisar na bola, será homem morto.

Jacintim não se encontrava em condições de recusar nada. Isaura, sua mulher, aperreada com o acontecido, não fez escândalo algum. Mineiramente, a artimanhosa esposa traída viabilizou um estratagema para se vingar do marido. Solicitamente, fez questão de ajudá-lo a cumprir o prometido. Preparava latas de carne conservada na banha de porco, rapaduras, queijos, polvilho, farinha de beiju, compotas variadas e demais víveres. Enviava-os à comadre Mariinha, por meio de Salustiano, um jovem vaqueiro de sua fazenda, viril e muito bem-apessoado. Para alegria e alívio da patroa, o esperado aconteceu. Em pouco tempo, Salustiano se engraçou pela dita cuja e acabou tomando o lugar de Jacintho no coração da traidora. Cada vez mais amiúde, a patroa o encarregava da aprazível tarefa de levar até à amada, ao cair da noite, alguns ingredientes da baixa gastronomia, para o jantar dos deuses, preparado por sua Maricotinha (era assim que ele a chamava, na intimidade), com direito a pernoite e usufruto da deleitosa anfitrionagem.

A estratégia previamente estudada e posta em prática por Isaura, para propiciar o novo relacionamento de sua comadre, funcionou a contento. O jovem Salustiano, mais bonito e mais atraente que o descaído e alquebrado Jacintim, conseguiu tirar do caminho da esposa traída o estorvo capaz de revirar os miolos do marido e de perturbar sua insossa vida familiar. Tendo atingido o objetivo proposto, Isaura parou, por completo, a solicitude na preparação dos víveres.

Como penitência pelo desairoso ménage à trois, Jacintho teve que bancar, sozinho e pelo resto da vida, não apenas a comadre, mas também seu novo companheiro, que trocou a vida de vaqueiro pela doce vida de teúdo e manteúdo da vitalícia teudice e manteudice custeada por seu ex-patrão.


Jô Drumond