segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A MAGIA DO BELO

 Jô Drumond

Aficionada às artes, sempre gostei de visitar museus, sobretudo aqueles voltados para pintura, escultura e mobiliário antigo. Certa vez, em Bruges (Brugge), na Bélgica, tive a oportunidade de apreciar uma retrospectiva de um dos meus pintores prediletos: Paul Cézanne (1839-1906). Foi sorte rara ver reunida, em um só espaço, grande quantidade de obras do renomado artista. Cézanne, muitas vezes enquadrado entre os pós-impressionistas, abriu novos caminhos para a arte do século XX e trouxe uma nova concepção de percepção da realidade. Em algumas de suas obras, ele prenuncia as pesquisas do Cubismo.

Ao percorrer lentamente as galerias, observando cada quadro, deparei com uma obra que me deixou paralisada. Um frisson percorreu todo meu corpo. Mal pude disfarçar as lágrimas. Para um visitante qualquer, poderia ser a representação de uma floresta. Para mim, era muito mais que uma pintura a óleo. Era o Belo absoluto, arrebatador. celestial.  Mergulhei o olhar naquele suposto arvoredo e deixei-me enveredar por trilhas sinestésicas, tentando prolongar ao máximo possível aquele momento de pura estesia. Era como se a obra tivesse sido especialmente concebida para meu deleite pessoal. Não sei por quanto tempo estive estática diante do quadro. Perdi a noção temporal. Alguém esbarrou em mim. Percebi então que todos se movimentavam. Devia seguir o fluxo dos visitantes. Por duas ou três vezes, fiz a volta completa naquele recinto e parei diante do “meu” Cézanne, para uma última mirada. Tratava-se de uma oportunidade única. Dificilmente poderia postar-me novamente diante daquele original. Nenhuma reprodução surtiria o mesmo efeito; nem mesmo o original, em outras circunstâncias.

Na sequência organizada pela curadoria, o visitante não tinha retorno. Tão logo entrava, já seguia obedientemente em direção à saída.  Antes de abandonar o museu, desobedeci às setas e deslizei discretamente até meu ponto predileto. Ao entrar pela porta de saída, percebi a inquietação do vigilante. A contração dos sobrolhos e o olhar sobranceiro demonstravam seu nervosismo causado por meu inusitado retorno. Antes que a segurança do museu fosse acionada, saí rapidamente e me misturei à multidão. Caso fosse autuada por atitude suspeita, não saberia me justificar nem a mim mesma; muito menos aos guardas, em língua flamenga (neerlandês).

Já estive assim (enlevada, extasiada, arrebatada, maravilhada), por diversas vezes, diante do Belo. É algo inexplicável, um momento epifânico. Isso já me aconteceu diante de uma vitrine, ao observar um carrilhão barroco absolutamente deslumbrante, dourado, repleto de curvas, contracurvas, volutas e arabescos. Aconteceu de outra feita, no teatro Opéra Bastille, em Paris, diante da cena final do ballet,  Le lac du Cygne, numa  coreografia mesclada de projeção de imagens, no qual, o bailarino se transforma em cisne e alça voo. Aconteceu também durante um espetáculo de tango, em Buenos Aires, no qual dois dançarinos, olhos nos olhos, em perfeita sintonia, pareciam estar alhures, longe de tudo e de todos. Senti-me assim durante o filme Retratos da vida, ao som do “Bolero” de Ravel, com a inefável leveza de um único bailarino, num palco postado diante da torre Eiffel. O mesmo me aconteceu ao visualizar a antológica cena final do filme Rapsódia de agosto, na qual, uma velhinha centenária, com um guarda-chuva revirado às avessas, sob uma borrasca, corre contra o vento no meio de um capinzal que se curva em reverência à sua passagem.

Dizem que os artistas, de modo geral, são mais predispostos a isso. Na antiguidade, os gregos consideravam divinos esses momentos. A estesia diante do Belo assim como a comoção diante do Grandioso ou do Insólito indiciavam a presença de uma divindade. Talvez por isso se manteve, através dos tempos, desde tribos primitivas, a tradição de que a arte esteja, de algum modo, ligada ao absoluto, e de que o artista tenha dons que o distinguem dos simples mortais.

Pode ser que haja pessoas com maior ou menor sensibilidade ao Belo. O certo é que momentos mágicos como esses podem ocorrer no dia-a-dia de todos nós, graças a uma obra literária, a uma música, a uma imagem, ou simplesmente à observação das belezas da natureza. Isso faz com que a vida valha a pena ser vivida.

Segundo Hume Hogarth, “A beleza não é uma qualidade das coisas propriamente ditas; existe tão-só na mente que as contempla; e cada mente percebe uma diferente beleza”

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

domingo, 6 de novembro de 2016

O PADRE ATEU

*Jô Drumond


Nunca havia imaginado a possibilidade de existir um padre ateu, avesso a qualquer tipo de religião e, sobretudo, inimigo ferrenho do catolicismo. Tal antagonismo me incitou a obter maiores detalhes sobre a vida e a obra de um pároco aparentemente tão contraditório. Há um ditado popular, segundo o qual “para tudo neste mundo, há uma explicação”. Decidi buscar tal explicação, que muito me surpreendeu. É difícil acreditar que a grande guinada das concepções religiosas do século XVIII, chamado “O século da razão”, tenha sido provocada justamente por um virtuoso padre. Segue uma síntese do que foi pesquisado a respeito desse fato, a quem interessa possa.

Antes do século XVIII havia muito respeito com relação ao cristianismo e aos eclesiásticos. Ao longo desse século, as concepções dos descrentes, céticos e ateus, antes ocultadas e despercebidas, tornaram-se, aos poucos, públicas e notórias. Por isso as concepções filosóficas de Padre Meslier (1678/1733) só emergiram algum tempo após sua morte.

Jean Meslier, vigário durante mais de quarenta anos da igreja de um vilarejo chamado Étrépigny, no norte da França (região de Champagne-Ardennes), teve uma história de vida antagônica. Suas ações eram absolutamente incompatíveis com seus pensamentos.

Certa vez ele recriminou o homem mais poderoso do povoado, Sr. Touilly, por  ter maltratado camponeses. Sentindo-se ofendido, Touilly deu queixa à autoridade competente, o Arcebispo de Reims, que repreendeu veementemente o padre. Este, sentindo-se injustiçado por ter dito a verdade, “botou a boca no trombone”, no sermão do domingo seguinte, diante dos fiéis:

Eis aqui a sorte costumeira dos pobres párocos do interior; os Arcebispos, que são os grandes Senhores, os desprezam  e não os escutam. Recomendemos portanto o Senhor deste lugar. Oremos a Deus para Antoine de Touilly: que Ele o converta e lhe dê a graça de não maltratar o pobre e de não despojar o órfão.

Voici le sort ordinaire des pauvres Curés de Campagne ; les Archevêques, qui sont de grands Seigneurs, les méprisent & ne les écoutent pas. Recommandons donc le Seigneur de ce lieu. Nous prierons Dieu pour Antoine de Touilly ; qu'il le convertisse & lui fasse la grâce de ne point maltraiter le pauvre, & dépouiller l'orphelin.

Estando presente na pregação, Touilly sentiu-se novamente incomodado e voltou a dar queixa ao Arcebispo, que, desta vez, ordenou que o padre se apresentasse pessoalmente diante de si, para as devidas repreensões e ameaças. Desde então, Meslier silenciou e foi mantido, até o fim de seus dias, no mesmo lugarejo, sem nenhuma promoção, sem nenhum benefício. Desgostoso da subordinação clerical, ele poderia ter-se desligado da Igreja, mas não o fez. 

Sabe-se que até meados do século XX, os longos estudos nos seminários não habilitavam os aspirantes a nenhuma função, a não ser o sacerdócio. Com o intuito de evitar a evasão do clero, a Igreja e o Estado tinham um acordo tácito, para que os seminaristas não tivessem diplomas estatais. Assim, não eram habilitados para nenhum trabalho fora do que lhes era proposto. Se Meslier abandonasse a Igreja, perderia a oportunidade de ajudar seus paroquianos, não teria o que fazer, quiçá nem meio de subsistência. Descrente do texto bíblico desde o início, ele se deu conta de que a única maneira de ajudar seu povo seria justamente manter o cargo e distribuir a arrecadação obtida com os mais necessitados.

Meslier se indignava pelo fato de a Igreja proteger os parasitas que oprimiam e exploravam o povo: soldados, eclesiásticos, juristas, e a nobreza. O rei (que para ele não tinha poder divino, como se acreditava na época), em conluio com o clero, dominava toda a tirania. Abaixo o rei! Os homens deveriam viver sem opressões político-religiosas. Há uma frase muito contundente e extremamente revolucionária de Meslier, muito citada por seus estudiosos:

Eu queria, e esse seria o último de meus desejos, eu queria que o último dos reis fosse estrangulado com as tripas do último padre.

Je voudrais, et ce serait le dernier de mes souhaits, je voudrais que le dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre.

O santo homem consagrou seus dias a ajudar o próximo. O desvelo e a dedicação para com os paroquianos o teriam conduzido a uma possível beatificação ou canonização, não fosse a herança deixada intencionalmente a seu rebanho, que reverteu seu status de “bendito” para “maldito”. Ao morrer, além de deixar seus parcos pertences para os pobres, deixou também, registrado em cartório, algo que estarreceu toda a gente: um testamento filosófico manuscrito dedicado a seus paroquianos, contendo trezentos e sessenta e seis páginas, recopiado manualmente duas vezes. Destarte, deixou 3 exemplares para expressar sua última vontade: a de desvelar um segredo que o violentava cotidianamente, guardado a duras penas por mais de quatro décadas. 

Advertiu, por escrito, dois amigos seus, Voiri (vigário de Guignicourt) e Delavaux (vigário de Boulzicourt) que um dos três exemplares tinha sido entregue ao Cartório de Mézières, e mencionou a possibilidade de darem sumiço em tal texto, devido ao “mau hábito (do poder estabelecido) de impedir que as pessoas humildes se instruam e busquem a verdade”. O manuscrito depositado em cartório, embrulhado num grosso papel cinza, à guisa de envelope, foi endereçado ao Sr. Roux, Procurador e Advogado Oficial de Mézières. Do outro lado do pacote, ele deixou a seguinte mensagem:

Eu vi e reconheci os erros, abusos, vaidades, loucuras e maldades dos homens; eu os odiei e os detestei ; eu não ousei dizer durante minha vida, mas direi pelo menos ao morrer e após minha morte; e é para que o saibam, que eu fiz e escrevi o presente Memorial para que ele possa servir de testemunha de verdade a todos os que o verão e que o lerão, se lhes aprouver.

J'ai vu & reconnu les erreurs, les abus, les vanités, les folies & les méchancetés des hommes ; je les ai haïs & détestés, je ne l'ai osé dire pendant ma vie, mais je le dirai au moins en mourant & après ma mort ; & c'est afin qu'on le sache, que je fais & écris le présent Mémoire, afin qu'il puisse servir de témoignage de vérité à tous ceux qui le verrons & qui le liront si bon leur semble.

Ainda jovem, aos 55 anos de idade, Meslier morreu por inanição, de forma lenta, natural e intencional. Seus biógrafos não mencionam “suicídio”, termo muito forte em se tratando de um representante da Igreja. Dizem apenas que, desgostoso da vida, ele passou a recusar os alimentos necessários à sobrevivência; não bebia nem mesmo uma taça de vinho (o que é de se estranhar, em se tratando de um francês).

O conteúdo do manuscrito poderia ter passado despercebido se não tivesse caído nas mãos de quem pudesse se interessar por ele. Não por acaso, os enciclopedistas tomaram conhecimento do texto. Informado da existência do manuscrito, o filósofo iluminista francês Voltaire se interessou por ele e, 33 anos após a morte de Meslier, fez uma publicação expondo, por meio de excertos, os sentimentos, os pensamentos e as convicções do padre ateu e anticlerical. Como Voltaire era deísta, incluiu algumas atenuantes que, de certa forma, amputaram ou desvirtuaram parte importante da mensagem. Depois de Voltaire, outros estudiosos se debruçaram sobre o Testamento de Meslier, e possibilitaram a divulgação de suas reflexões, seus “sentimentos e pensamentos”, como ele próprio havia intitulado. O longo título, bem abrangente, apresenta uma síntese do que está por vir: 

Memorial dos pensamentos e sentimentos de Jean Meslier, cura de Étrépigny e de Balaives, sobre uma parte dos erros e dos abusos da conduta e do governo dos homens, onde se veem demonstrações claras e evidentes da vaidade e da falsidade de todas as divindades e de todas as religiões do mundo, para ser endereçado a seus paroquianos após sua morte, e para lhes servir de testemunho de verdade, para eles e para todos os seus semelhantes.

Mémoire des pensées et des sentiments de Jean Meslier, curé d’Étrépigny et de Balaives, sur une partie d’erreurs et des abus de la conduite et du gouvernement des hommes où l’on voit des démonstrations claires et évidentes de la vanité et de la fausseté de toutes les divinités et de toutes les réligions du monde, pour être adressé à ses paroissiens après sa mort, et pour leur servir de témoignage de vérité, à eux et à tous leurs semblables.

Numa carta inicial, à guisa de prefácio, ele prepara o espírito do leitor para a revelação de sua verdade. A seu ver, todas as religiões são invenções humanas calcadas na mentira, na ilusão e na impostura. Em tom peremptório, incita os fiéis a abandonar a religião.

Justifica o fato de ter abraçado uma profissão diretamente oposta às suas concepções e esclarece que teria dito tudo em vida, se tivesse podido fazê-lo. Afirma ter sempre desprezado aqueles que se aproveitavam da simplicidade e da cegueira do povo, aqueles que recebiam somas consideráveis na compra de preces; os mesmos que engordavam à custa do suor e da labuta do povo. Fala de seu sofrimento, sendo forçado à pregação de piedosas mentiras que tanto detestava. Afirma ter evitado o máximo possível, dentro de suas funções, mencionar os odiados dogmas. Desprezava seu ministério, particularmente a “supersticiosa missa” e as “ridículas administrações de sacramentos”, sobretudo os que exigiam solenidade para atrair a piedade e a boa-fé de todos. 

Quanto remorso ele demonstra ter carregado devido à credulidade dos fieis! Padre Meslier se penitenciava por ter que passar aos paroquianos concepções que não eram suas e que deveriam ser combatidas. Não acreditava no Deus cristão, nem na imortalidade da alma. A seu ver, os Evangelhos eram repletos de baboseiras e contradições; os milagres eram fraudes; a dita “Divina Providência” era perversa; Jesus teria sido apenas um fanático, que dava conselhos contrários à natureza humana, tais como aspirar à pobreza, recusar os prazeres e se resignar aos sofrimentos.

Termina a nota explicativa dizendo que esteve mil vezes a ponto abrir os olhos dos paroquianos, mas um temor superior às suas forças o conteve e o manteve em silêncio até à morte.


Sua filosofia se alastrou mundo afora de maneira extraordinária. Seu texto é considerado fundador do ateísmo e do anticlericalismo militante na França. Meslier pode ser considerado precursor do Iluminismo francês, da Revolução Francesa, da mudança de concepções religiosas, do Socialismo, do Anarquismo e de outras tantas tendências oriundas do Racionalismo.



*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

QUESTIONAMENTOS RELIGIOSOS

*Jô Drumond

Oriunda de família extremamente religiosa, fui batizada, catequizada e crismada. Repetia como papagaio o que me havia sido ensinado pelas freiras, durante a catequese. “Quem é Deus? Deus é um espírito perfeitíssimo e eterno, criador e redentor do Céu e da Terra”. Na minha ingenuidade, repetia aquilo de cor, sem saber o que era “espírito”, o que era “redentor” e muito menos quem era “Deus”. A distinção entre Céu e Terra era simples. Sabia que o céu era azul; e a terra, marrom; que o primeiro ficava sobre minha cabeça; e a segunda, sob meus pés.

Minha primeira Comunhão, aos 7 anos
Quando criança, eu me ajoelhava semanalmente num confessionário, em vista da comunhão dominical. Toda boa menina tinha que mostrar sua pureza no ato da comunhão. Lembro-me que, como não tinha pecados, fiz uma lista de eventuais deslizes, considerados por mim faltas graves, como, por exemplo: eu me esqueci de rezar antes de dormir; ataquei a despensa sem pedir permissão à mamãe (a despensa de minha casa era repleta de guloseimas); falei palavras feias; desejei mal ao próximo; tive maus pensamentos...  Recitava a mesma listinha todos os sábados, diante de um confessor que nada dizia. Apenas passava a penitência, que pouco variava: rezar um Pai Nosso e duas ou três vezes a Ave Maria. Um belo dia ele me perguntou que mal eu havia desejado ao próximo. - Desejei que minha coleguinha tropeçasse e caísse - respondi. A penitência não mudou. Pensei que fosse me perguntar também quais eram os maus pensamentos. Certamente ele não se animou. Seria pura perda de tempo inquirir os pecados de uma garotinha de sete ou oito anos de idade. Além do mais, a fila tinha que andar.

Na adolescência, fui membro efetivo da Legião de Maria. Fiz trabalhos legionários em enfermarias de hospitais e em favelas. Rezava diariamente, antes de dormir, a catenas legionis, cuja antífona ainda permanece em minha memória: “Quem é essa que avança como a aurora, formosa como a Lua, brilhante como o Sol, terrível como o exército em ordem de batalha?” Naquela mesma época, como catequista, continuava repetindo aos pimpolhos o que havia aprendido no ensino religioso.

Aos 17 anos, todas as normalistas deveriam comungar durante a missa de formatura. Minha classe era numerosa. Fomos juntas, cerca de sessenta colegas, à igreja dos padres capuchinhos, em Patos de Minas, para a confissão. O padre, ao se dar conta da quantidade de moçoilas, não se animou a atender uma a uma. Disse que faríamos uma confissão comunitária. Eu nunca havia ouvido tamanho disparate. O que seria confissão comunitária? Teríamos que dizer publicamente, em voz alta, nossos pecados?

Ele fez uma pequena pregação, solicitou alguns minutos de silêncio para que pensássemos,  nos arrependêssemos de nossos pecados e pedíssemos perdão, em linha direta com o Todo Poderoso. Depois de algumas orações, abençoou-nos e nos liberou. Não entendi a razão pela qual ninguém nunca havia mencionado essa possibilidade de ser perdoada pela divindade, sem me ajoelhar diante de um confessor. Fiquei revoltada por ter-me submetido inutilmente ao rito semanal de ir à igreja, durante tantos anos, desde a primeira comunhão. Enfrentava fila todos os sábados, repetia minha inútil lista fictícia diante do confessor, pagava penitência em falso alto de contrição, visto que os pecados eram inventados, para poder comungar durante a missa dominical, usando mantilha branca, símbolo da pureza.
Diziam no catecismo que, ao recebermos a hóstia consagrada, na ponta da língua, ela deveria ser colada no céu da boca até à dissolução completa. Como se tratava do corpo de Jesus, se a mastigássemos, o sangue escorreria boca abaixo. Eu tinha ao maior cuidado para que a hóstia nem tocasse os dentes. Não queria aparecer com a boca suja de sangue, dentro da igreja. Após a “famosa” confissão comunitária, comecei a duvidar desses disparates. Certo dia, em ato de rebeldia, fiz questão de mastigar a hóstia. Nada aconteceu.

Aos 18 anos, mudança radical de vida. Entrei para uma Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, na capital do Estado. Tive então oportunidade de conhecer jovens de minha idade, leitores de Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, entre outros existencialistas. O universo das Letras e da Filosofia se descortinava para a crédula provincianinha, que começava a questionar tudo o que lhe havia sido inculcado até então.

Toda noite, em vez de rezar, eu matutava. Se matar é pecado capital,  como e por que dizimar cidades inteiras em nome de Deus? Em Sodoma e Gomorra apenas uma parte da população masculina era pecadora, por que a mortandade geral de velhos, mulheres e crianças? E as guerras? Se “Deus é amor”, como justificar as guerras santas, feitas em Seu nome, desde tempos idos? Sabe-se que a religião foi a causa da maioria das guerras, em todo o mundo. O Islamismo e o Cristianismo, ambos monoteístas, se envolveram na origem das primeiras guerras “ditas” santas. A Bíblia relata milhões de mortes em nome de Deus. Só o dilúvio matou vinte milhões, salvo engano. E as pragas divinas? As sete pragas do Egito foram justas? E as pestes que assolaram o mundo? Acrescente-se a isso a morticínio das Cruzadas e a da Santa Inquisição. Se Deus é um “espírito perfeitíssimo”; Ele deve ser justo. Como explicar tantas injustiças, doenças, catástrofes, acidentes, crueldades e tanta dor? A resposta já vinha pronta: “é castigo!”. Não, não pode ser! Sendo Ele um pai bondoso e amoroso, não poderia castigar, mas sim orientar e conduzir seus filhos, sobretudo protegê-los.

Recai então, sobre nós, a questão do livre-arbítrio. O Pai, nesse caso, “lava as mãos” e deixa os filhos agirem por conta própria, vulneráveis aos males do mundo, ou seja, “ao deus-dará”. Isso seria justo? Sendo onisciente e onipresente, Ele sabe de antemão tudo o que vai acontecer. Por que então não evita terremotos, furacões, inundações, acidentes, guerras, pestes, doenças, desastres (sejam eles físicos, morais, materiais, emocionais), enfim, todos os revezes causadores de sofrimentos?

As pessoas religiosas são naturalmente fatalistas. Para elas, quando algo de bom ou de ruim acontece, é porque “estava escrito”. Escrito onde, quando, por quem e por quê? Como poderíamos ser responsáveis por nossos atos, se houvesse um destino pré-existente já traçado para cada um? Tudo que fizéssemos recairia na responsabilidade de quem o traçara? Para quem acredita em destino, o livre-arbítrio cai por terra. Não tem razão de ser. Desde o nascimento, caberia ao destino definir se o indivíduo seria crédulo ou incréu.

Nos dias de hoje, sabe-se que ter fé não é questão opcional. Com a ajuda da ciência, prova-se que o fato de ter fé não acontece por vontade própria, nem pelos ditames do destino. No início deste terceiro milênio, pesquisas científicas confirmam que os indivíduos portadores do gene VMAT2 são intuitivos e mais religiosos. Os que não possuem tal gene são mais reflexivos, têm raciocínio lógico e dificuldade em acreditar em algo impreciso. Sabe-se que esse gene “é responsável pela regulação das chamadas monoaminas, que têm papel importante na construção da realidade e na percepção das alterações da consciência, situações comuns em experiências místicas.” Ter fé significa crer prontamente, sem exigir comprovação científica. Os místicos, diferentemente dos racionais, preferem acreditar a perscrutar. Destarte, bem-aventurados sejam os portadores do VMAT2, pois crer dói menos que não crer.
Isso nos remete às reflexões de Nietzsche, contidas em O livro do filósofo: “O fato de acreditar na verdade é precisamente loucura [...] Ninguém pode, sem um pouco de loucura, acreditar tão firmemente possuir a verdade: o ceticismo não tardará a chegar [...] Até o ceticismo contém em si uma fé: a fé na lógica.”

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias

de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)