sábado, 2 de abril de 2016

O CONTADOR DE CAUSOS

*Jô Drumond

De minha infância, na fazenda Capão Chato, só tenho boas lembranças, exceto as dos casos de assombração que me assombraram vida afora. Na década de cincoenta, ainda não havia eletrificação rural; por conseguinte, nem luz, nem televisão. À noite, sem nada a fazer, o passatempo preferido dos adultos era o de se reunir em volta de uma lamparina ou lampião, para contar causos do sertão. 

Cada um se comprazia em contar as mais escabrosas histórias, para assombrar a meninada, o que, muitas vezes, acabava por afugentar o sono. No inverno, improvisava-se calefação: uma lata de 50 litros, repleta de brasas. Em volta dela, as crianças ouviam os relatos comendo pipoca. O negror daquelas noites era povoado de fantasmas, alguns deles tão poderosos, que, às vezes, até hoje ainda tentam destelhar minha memória, embora sejam imediatamente rechaçados.

Era usual a organização de reuniões para audição de literatura oral, principalmente nos finais de semana. Xibiu, um famoso contador de causos, era sempre convidado pelos fazendeiros dos arredores, para contar suas lorotas. Tratava-se de um pequeno ancião de fala mansa. Sua pele era tão escura que brilhava feito diamante negro. Naquela região, os pequenos diamantes eram chamados de xibius. Daí, a origem de seu apelido. As famílias fazendeiras da circunvizinhança reuniam-se sob um mesmo teto para ouvi-lo. Formava-se uma pequena plateia que, muitas vezes, atravessava horas sem perceber o fluir do tempo, presa ao fio narrativo.

Esse contador de histórias tinha o dom da eloquência. Associava intuitivamente o volume, a entonação da voz e a mímica à narrativa, de modo a causar comoção. Despertava, na audiência, os mais diversos e contraditórios sentimentos: alegria, tristeza, ira, paixão, enternecimento, medo, coragem, suspense, terror... Nessas noitadas do sertão, o deleite, tanto dos ouvintes quanto do contador, era recíproco. Xibiu, sem eira nem beira, sentia-se poderoso ao ter diante de si uma plateia seleta, manipulada a seu bel prazer. O público, já predisposto, extasiava-se com facilidade, ao sabor das aventuras e dos mistérios. Nas soirées literárias, o “senhor da palavra” tinha seus momentos de glória em sua vida severina. Aplicava-se na arte de encantar e de conduzir os ouvintes a universos nunca dantes vislumbrados.

Xibiu nunca frequentou sala de aula, nem sala de projeções. Nunca teve acessos a livros, nem ao saber convencional, mas carregava muita sabedoria nos bolsos da vida. Apesar de jamais ter se deslocado do sertão, era o guia perfeito para grandes viagens míticas. Em sua única e eterna viagem, levou consigo muitos causos inéditos, que devem estar fazendo a alegria dos querubins ou serafins.

Como dizia o poeta Fernando Pessoa, “o mito é o nada que é tudo”. O mito é, muitas vezes, mais forte que a realidade. Ele se torna real a partir do momento em que há um natural contrato fiduciário entre o contador de histórias e o ouvinte, ou entre o escritor e o leitor, assim como entre o cineasta e o espectador. A fidúcia transforma a ficção em realidade. 
Ao nos embrenharmos nas aventuras rocambolescas de uma película cinematográfica ou na leitura de um bom livro, deixamos de lado a faina do cotidiano, fugimos do tempo cronológico e entramos no tempo mítico. Podemos alçar voos, conhecer novos mundos, viver outras vidas. O cinema, o teatro, a literatura, enfim, a arte em geral tem essa capacidade arrebatadora de subverter a noção espaço-temporal, de nos adentrar no antitempo.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)


terça-feira, 22 de março de 2016

O TERROR DOS CALOTEIROS

* Jô Drumond

Em meados do século XX, não havia cobrador melhor que Zé Bernardim, na zona rural da Charneca (MG). Se porventura um fazendeiro não conseguisse receber uma dívida, acionava seus préstimos. Bernardim tinha um modo peculiar de cobrar dívidas dos maus pagadores. Gabava-se de nunca voltar para casa sem receber o devido montante. Mineiro matreiro, astuto e sem instrução, apreendeu toda sua argúcia na escola da vida. Era educado, amigável, cortês e tranquilo. Com fala macia e melindrosa, sempre atingia seu objetivo sem desagradar nem magoar o devedor.


Certa vez foi à fazenda Rio Comprido, cobrar a dívida da venda de uma boiada. Fora contratado por Jacintho, Bento que ouvira falar de seu infalível método de persuasão. Sr. Bento temia não receber a vultosa dívida de seu aparentado João Gabão, que lhe comprara trezentas cabeças de gado. Comentava-se, à boca pequena, que grande parte da boiada fora fulminada por peste bovina que assolara a região. Assim sendo, Jacintho sentia-se constrangido em cobrar a malfadada dívida a seu ex-amigo e atual devedor.

Zé Bernardim seria sua única salvação. Corria de boca em boca que seus métodos eram mais eficazes do que qualquer cobrança judicial ou qualquer ameaça policial. Os meios legais podiam provocar alguma eficácia junto aos devedores, mas eram muito morosos e, às vezes, ineficazes. A presença, ou melhor, a persistência de Zé Bernardim junto ao inadimplente atingia diretamente os sentidos, sobretudo a audição, o olfato e a visão.

Ao Chegar à fazenda Rio Comprido, cumprimentou alegremente a família de João Gabão, como se fosse uma visita de cortesia. Instalou-se confortavelmente num canapé da sala de visitas e proseou longamente com as pessoas presentes. Almoçou com os anfitriões, sempre sorridente e cheio de causos interessantes. Todos apreciavam sua presença, exceto o chefe da família que, conhecedor de sua fama, estranhava aquela aparição inesperada. Lá pelas tantas, após o terceiro cafezinho, encontrando-se a sós com o pretenso caloteiro, abordou com brandura o assunto que o levara àquela fazenda.

–Sabe, Sinhô João, muito apreceio sua prosa, e é de gosto que aqui estô. De modos que o senhor sabe como a vida é... cheia de subidas e descidas. Pois bem, de maneiras que, meu cumpade Jacintho, estando desendinheirado, numa situação de grande arrocho,  ficaria muito sastifeito com o acerto da pendência da boiada. O sinhô sabe cumo ele é; pessoa de bem, home mui cordato. De maneiras que nunca me serviria de mandalete, num fora o grande aperto financêro do cumpade. De modos que aqui vim e aqui estô, sem nenhuma pressa. O sinhô num precisa se apertá. Eu espero o tempo que precisá. Só que num posso vortá de mãos vazia, sem a encomenda. Seria grande desfeita pra meu cumpade, a quem devo muita gratidão. De modos que, quando o sinhô fizé o acerto, eu vô s’imbora, mas não carece de tê pressa.

Para o matuto, a repetição das conjunções consecutivas “de modo que” e “de maneira que” tinha a função de tornar o discurso mais formal. Zé Bernardim sorveu outra golada de café, mudou de assunto e foi ficando, cada vez mais à vontade, sem nenhuma menção de partida. Sentou-se à mesa, para o jantar, aceitou pouso, tomou leite ao pé da vaca na manhã seguinte, fez caminhada pelos pastos, apreciou a paisagem, proseou com todos, sempre tranquilo e alegre, com fala mansa e pausada. Almoçou novamente com a família, jantou, dormiu, passeou, proseou e por ali foi ficando, sem repetir o motivo que o levara àquela fazenda. Sua presença incomodava cada vez mais devido a uma sutileza de seu estratagema de cobrança. Nunca se banhava, nem se trocava. Com a roupa do corpo suja e fétida, o comensal indesejável postava-se à mesa todos os dias como se nada estivesse acontecendo. Para caprichar no visual, em suas andanças matinais, tirava a roupa, esfregava-a nos cupinzeiros, para aumentar a sujeira. Os odores corporais, cada vez mais intensos, somados à figura nauseabunda, causavam nojo a todos. As poltronas usadas pelo convidado porcalhão tornavam-se inutilizáveis. 


A família não podia expulsá-lo dali, nem dispunha de fundos para quitar a dívida. Com o passar do tempo, a situação tornou-se insustentável. Como justificariam a situação junto aos amigos que porventura viessem visitá-los? Dona Maroca e os filhos, cansados de reclamar da indesejável presença, ameaçavam abandonar a fazenda.  Seu João temia o constrangimento de ser rotulado de caloteiro, e de se tornar alvo da maledicência alheia. Além do mais, sentia-se no dever de fazer sala àquela educada e repugnante figura. Na iminência de perder a família e de ficar a sós com Zé Bernardim no casarão, acabou decidindo ir à cidade levantar fundos para se livrar daquele encosto.
Ao quitar a dívida, foi obrigado a ouvir o discurso de agradecimento do gentil cavalheiro.
– Meu caro sinhô João Gabão, home bão e de palavra! Eu sabia que o sinhô num ia fartá cum meu cumpade! O sinhô é home zeloso, temente a Deus e cumpridô de seus devê. De maneiras que muito lhe admiro. Muito agradecido ao sinhô e à sua famía pela hospedage. De modos que é com pesar que lhes digo adeus. Nunca vô me esquecê desse tempo que aqui passei em tão boa companhia...

Apertou a mão do dono da casa, foi até o curral, arreou seu cavalo baio, prendeu na cabeça do arreio as alças dos embornais contendo a dinheirama, instalou-se na cela e aflorou docemente as esporas na pança do pangaré, para o arranque. A trote manso, repicado, foi-se pelas trilhas do sertão, “satisfeito” pelo dever cumprido.

Há poucos dias, divulgou-se na mídia uma nota que me remeteu à tática usada por Zé Bernardim. Segundo consta, atualmente, na Espanha, ou seja, em outro século e em outro continente, usa-se a mesma estratégia de cobrança, em que o constrangimento dá melhores resultados do que a intimidação. Baseando-se no princípio de que ninguém gosta de ser ridicularizado em público, surgiu, na Espanha, El Cobrador del Frac, firma especializada em cobrança de dívidas difíceis. 

Quando todos os meios legais se esgotam, entra em cena a figura mais temida pelos inadimplentes espanhóis. Inspirado na indumentária em preto e branco de Cervantes (autor de D. Quixote), o mais célebre arrecadador de impostos da Espanha, o cobrador se posta à porta da residência ou do trabalho do caloteiro, vestido de fraque, gravata-borboleta, cartola e uma maletinha de circo na qual se lê em letras brancas El Cobrador del Fraque. Parecido a um pinguim falante, o simpático cobrador distribui sorrisos e cartões aos vizinhos ou colegas de trabalho do devedor, declinando as particularidades da dívida do espertalhão. Educado, gentil e sempre sorridente, nunca desrespeita o código de conduta e nunca faz ameaças físicas a quem quer que seja.

A ideia deu tão certo, que já surgiram firmas concorrentes, como El Torero del Moroso [O Toureiro do Inadimplente], inspirado no El Monastério de Cobro [O Mosteiro da Cobrança]. O cobrador usa a mesma tática vestindo-se de monge, com um “modelito” do século XVIII.
Com a mesma eficácia do método Zé Bernardiniano, o pinguim e o toureiro dos dias atuais não arredam pé de seu posto enquanto não conseguem o que querem. Ao constrangimento, acrescenta-se paciência e persistência, tríade infalível junto aos maus pagadores.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)


quarta-feira, 16 de março de 2016

BRIQUITANDO COM PALAVRAS

 *Jõ Drumond
  
Como filha temporã, a grande diferença de idade entre mim e meu genitor deu-me o privilégio de tê-lo como misto de pai e avô. A defasagem de gerações era bem nítida em nosso registro linguístico.

Ele dizia “mentecapto” em vez de “louco”; “estorvar” em vez de “incomodar”; “estúrdio” em vez de “esquisito”; “chaleirar”, em vez de “bajular”, e assim por diante. 

Nascido e criado no sertão de Minas Gerais, no final do século XIX, usava um vocabulário rico, porém arcaico e démodé. Eu, nascida na segunda metade do século XX, utilizei, desde a juventude, um vocabulário contemporâneo e citadino. Após nossa mudança para a capital mineira, ele fez questão de manter seu registro linguístico, mesmo percebendo os olhares zombeteiros dos interlocutores. Às vezes, criavam-se situações cômicas. Certo dia ele solicitou minha ajuda para escolher um par de sapatos, numa loja chamada Praça 7 Calçados, situada no centro de Belo Horizonte. Ao entrar, abordou uma jovem vendedora, da seguinte maneira:
- Boas tardes, senhorita! Gostaria de adquirir um calçado singelo, porém de cabedal bom. Mas não carece ser coisa cara!

A vendedora lançou-me um olhar inquiridor, como se estivesse pedindo socorro. Certamente desconhecia os termos “singelo”, “cabedal” e “carecer”. Tive então que lhe traduzir o pedido para um vocabulário usual, ou seja, troquei o filet mignon pelo feijão com arroz.

Quando morávamos Belo Horizonte, com certa frequência, eu parafraseava prazerosamente sua fala, para auxiliar a compreensão de amigos e de colegas. Ele dizia, por exemplo: “esse trancelim custou uma tutaméia”, para se referir ao baixo preço de um cordão de ouro. Ou então, “Esse mandalete é muito enredeiro; vai acabar provocando uma ingrisia entre amigos”, para dizer que ou menino de recados era muito mexeriqueiro e que ia acabar provocando uma contenda entre amigos.

Certa manhã, ao deparar com minha irmã ainda despenteada, disse-lhe: “deixe de ser desmazelada, menina! pegue umas ramonas e prenda essa gaforina”, ou seja, deixe de ser desleixada! pegue uns grampos e prenda esses cabelos desgrenhados. Certa vez, perguntado se estava triste, respondeu que estava um pouco chateado por ter levado prejuízo, num pequeno negócio, com um mercador ambulante esperto e inteligente. Se me lembro bem, expressou-se mais ou menos assim: – Estou meio jururu, pois, levei manta numa catira com um danisco dum mascate ladino.

O linguajar do sertão (faixa interiorana, de Minas ao Nordeste), durante séculos, manteve o uso de certos termos do vernáculo, totalmente desconhecidos nos centros urbanos. A carência de meios de comunicação e de estradas de rodagem dificultava o contato com as cidades, local onde a renovação linguística é mais acelerada. Mesmo nos dias atuais, no limiar do terceiro milênio, na era da propalada globalização, apesar da eletrificação rural e do boom midiático, certos rincões mantêm um linguajar peculiar, dificilmente decifrável, sobretudo pelos jovens citadinos.

Quando visito o interior de Minas, acompanhada de alguém de outro Estado ou até mesmo da capital mineira, acabo tendo que atuar como tradutora, ao parafrasear certas expressões idiomáticas.

Quem lê Guimarães Rosa, percebe que sua prosa é salpicada de termos inusitados como aqueles usados por meus antepassados. Em verdade, nem sempre se trata de regionalismos. Muitas vezes são arcaísmos usados ainda hoje pelos anciões. Ao ler Guimarães Rosa volto às raízes e reencontro, a todo instante, o léxico outrora habitual aos meus ouvidos. Destarte, a leitura de sua obra tem, para mim, sabor de infância. Carrego na memória termos e expressões usuais daquele tempo e espaço, abolidos de meu vocabulário desde a mocidade, quando passei a viver em grandes centros urbanos e a utilizar um vocabulário mais condizente com a nova realidade.


Daí a razão pela qual me dediquei, apaixonadamente, aos estudos da obra roseana. No período de meu doutoramento, na PUC/SP, durante a abordagem da produção literária desse autor, por especialistas, em congressos ou em grupos de estudos avançados, percebia que minha compreensão às vezes superava à dos demais pelo simples fato de estar mais familiarizada com tal matriz estilística. Podia apreender mais facilmente as respectivas corruptelas ou neologismos dela oriundos.

Por exemplo, numa abordagem do conto “Nós, os temulentos”, publicado no livro “Tutameia”, um bêbado ao se ver seminu, diante do espelho, pensa que se trata de outra pessoa, e a ataca: “Sai, ou eu te massacro! E avançando contra o armário, e vendo o outro arremeter também ao seu encontro, assestou-lhe uma sapatada, que rebentou com o espelho nos mil pedaços de praxe [...] o Chico se arrependeu. E com isso, lançou; tumbou-se pronto na cama; e desapareceu de  si mesmo.”
Perguntei ao professor e aos colegas o que tinham entendido por “E, com isso lançou”. Todos foram unânimes em dizer, erroneamente, que ele havia se jogado sobre a cama. No sertão de Minas, “lançar”, nesse contexto, significa “vomitar”.

Enganam-se os que acreditam que Rosa reproduz a fala sertaneja. Ele explora certas peculiaridades orais para seu fazer literário, mas cria uma linguagem estilizada, mais ideal do que real.
Alguns de meus leitores dizem que, às vezes, o léxico utilizado em meus “causos mineiros” os remete à linguagem roseana. Sinto-me extremamente honrada com isso. Como diriam os franceses, ça va de soi! Rosa e eu somos oriundos do sertão mineiro e herdamos de nossos ancestrais o mesmo comprazimento de contar causos et de briquitar com palavras.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)