Jô Drumond
Este relato abaixo, escrito há sete anos, é um
simples registro de minha primeira experiência na Semana Literária Roseana, em
Cordisburgo. Trata-se de uma semana cultural, com palestras, mesas-redondas,
debates, minicursos, leitura dramática, representações teatrais, exposições e
diversos eventos, todos eles dedicados à obra do ilustre filho da terra,
Guimarães Rosa. Essa imersão no universo roseano foi, para mim, uma experiência
fascinante.
RELATO
Em 2010, voei do litoral para as alterosas,
para participar, pela primeira vez, da semana Roseana, já em sua décima segunda
edição, em Cordisburgo. O foco do evento é sempre a obra do escritor Guimarães
Rosa. Do aeroporto de Confins, dirigi-me diretamente à rodoviária de Belo
Horizonte. No guichê, pedi passagem de ida e volta, mas o atendente me disse
que só dispunha da de ida. A de volta poderia ser adquirida dentro do ônibus,
após o embarque. Disse-lhe então que fazia questão de comprá-la tão logo
chegasse à cidade, para garantir o retorno, no final do evento.
▬ Impossível, minha senhora ▬ respondeu-me ▬ lá não tem rodoviária.
Só aí me dei conta da pequenez da cidade. Tanto
melhor! É nas pequenas cidades que se fazem grandes amizades.
Estava embarcando sozinha, sem conhecer viva
alma na região, mas era como se estivesse me dirigindo a um encontro familiar.
Isso porque faço parte da grande “família Roseana”, composta de leitores,
pesquisadores, professores e aficionados à obra do renomado autor.
Antes de embarcar, telefonei para a Pousada das
Flores, para confirmação de reserva. Foi-me
sugerido que pedisse ao motorista para me deixar à porta da pousada. Esse
privilégio remeteu-me aos velhos tempos vividos no interior. Na rodoviária de
BH, foi-me dito que haveria baldeação na cidade de Sete Lagoas. Estranhei o
fato de ter que fazer baldeação num percurso de apenas 120 km. Embarquei pela
Viação Pássaro Verde. No meio do caminho, fui transferida para a Viação
Expresso Setelagoano.
Cheguei em Cordisburgo na segunda-feira, segundo dia da Semana Roseana. No Domingo, havia
tido apenas uma missa e a cerimônia de abertura. Encantei-me com os ares
interioranos da cidade: ruas pacatas, silenciosas e vazias; crianças brincando
nas calçadas; cachorros soltos por todo lado; algumas carroças, puxadas a
cavalo; poucos carros...Tudo isso me remetia à Guimarânia (terra dos
Guimarães), onde meus pais passaram grande parte de suas vidas e escolheram
para derradeira e eterna morada. Sou descendente dos Guimarães, pelo lado
materno, nascida e criada no sertão mineiro, assim como Rosa. Daí minha grande
paixão pelo linguajar e pelo cenário de seus contos.
Uma fresca brisa de inverno brincava nos galhos
das árvores, entre os quais uma infinidade de faixas remetia o visitante ao
grande evento anual. Em cada faixa, lia-se um pensamento do escritor,
acompanhado do nome do estabelecimento que havia patrocinado sua confecção.
Parece-me que a grande maioria dos comerciantes aderiu à ideia, pois o número
de faixas era surpreendente. As frases, todas elas minhas velhas conhecidas,
haviam sido muito bem selecionadas: frases sentenciosas (que expressam verdades
oriundas da secular experiência do povo); outras de cunho filosófico, e algumas
de temática sertaneja. Vejamos algumas delas.
Frases sentenciosas:
“Quem
desconfia fica sábio”
“Não
se deve parar no meio da tristeza”
“Mestre
não é aquele que sempre ensina, mas quem de repente aprende”
“Para
as coisas que há de pior, a gente não alcança fechar as portas”
“Carece
de ter coragem”
“Quem
castiga cumpre também”
“Choca
mal quem sai do ninho”
“Felicidade
se acha é só em horinhas de descuido”
“Infelicidade
é questão de prefixo”
“Mocidade
é tarefa para mais tarde se desmentir”
“Cavalo que ama o dono até respira do mesmo
jeito”
“Antes
trabalhar no domingo do que furtar na segunda”
“Mulher
só fica velha é da cintura para cima”
“Só
aos poucos é que o escuro fica claro”
Filosofemas:
“Tudo
é e não é”
“Vida-coisa
que o tempo remenda, depois rasga”
“Viver
é muito perigoso”
“A
vida é um vago variado”
“A
vida não dá demora em nada”
“As
pessoas não estão sempre iguais; ainda não foram terminadas”
“Nonada,
o diabo não há! O que existe é o homem humano. Travessia!”
Temática
sertaneja:
“O
sertão é dentro da gente”
“O
sertão é uma espera enorme”
“Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos...”
“O sertão está em toda parte”
“O
sertão é do tamanho do mundo”
“O
sertão é confusão em grande e demasiado sossego”
Deixei a bagagem na Pousada e saí para
reconhecimento do terreno. Como já era hora do almoço, entrei num restaurante
chamado Sarapalha, título de um conto do livro Sagarana. Na parede de entrada do restaurante, à esquerda, havia o
resumo do conto Sarapalha. Nas outras paredes, havia frases de Guimarães Rosa.
Degustei uma ótima comidinha caseira a preço de banana.
Após o almoço, voltei à Pousada, liguei meu lap
top e consegui conexão com a Internet. Maravilha!!! Pensei que fosse ficar
desconectada do mundo durante toda a semana.
O alojamento era perfeito. Quarto espaçoso,
banheiro amplo, geladeira, televisor, mesa com cadeiras, uma cama de casal e
outra de solteiro. Do lado de fora, varanda florida, que dava para um grande
quintal. Desfiz a mala e saí novamente. Flanei pelas ruas da cidade. Dei uma
volta no comércio local, fui ao centro de artesanato, localizado na entrada da
cidade e fiz uma longa caminhada em linha reta até o portal recém-inaugurado,
no outro extremo da cidade. Trata-se de um largo portal retangular, sob o qual
há seis cavaleiros e um cachorro, em bronze, em tamanho natural, todos eles
personagens de Guimarães Rosa. Ao lado há uma estátua do autor e diplomata, em
pé, também em bronze, vestido a rigor, com sua tradicional gravata borboleta.
Na volta, passei pelo Museu Casa Guimarães Rosa, antiga residência da família,
na qual ele fora criado. É um belo exemplar de casarão em estilo colonial, com
mobiliário antigo e um amplo jardim, nos fundos. À noite, fui ao auditório da
Academia de Letras, onde houve uma mesa redonda abordando quatro itens: o
Projeto Lang (que engloba o Circuito das 3 Grutas), o museu GR, o Circuito
Turístico Guimarães Rosa e as
potencialidades turísticas da região. Falou-se também do sucesso da caminhada eco
literária, que havia começado com poucos participantes e que já contava com
mais de 400 pessoas. Tal caminhada, assim como os Miguilins foram dois projetos
que obtiveram êxito. Miguilins são crianças cordisburguenses de 12 a 18 anos, treinadas para
contar os causos roseanos. Os ex-Miguilins ajudam na coordenação e no
treinamento dos atuais. O coordenador frisou que o surgimento de vários focos
de grupos parecidos, em outras cidades, é uma consequência, não um objetivo do
grupo. Alguns dos Miguilins foram à Itabira, para passar sua experiência aos
itabiranos, onde se criou o grupo dos drummonsinhos.
Na
terça-feira,
logo após o café da manhã, fomos todos convidados para o primeiro evento do
dia, no bairro Buritis. Como era um pouco distante, o presidente da Academia de
Letras providenciou condução para os visitantes. A partir de certo ponto do
caminho, saltamos dos carros e juntamo-nos a um grande grupo festivo e alegre
que subia a ladeira com a criançada da cidade. Várias brincadeiras infantis iam
sendo feitas à medida que nos dirigíamos à praça Francisco Timóteo Pereira,
onde haveria contação de histórias e distribuição de balas, picolés, algodão
doce e pipocas. A peça encenada foi “O casamento da Mula sem Cabeça com o
Saci”, com direção de Rodolfo Goulart, na qual entremearam-se vários
personagens do folclore nacional. Como o evento foi feito em pleno sol, e como
eu estava com vestimentas de inverno, não pude aguardar até o final, devido ao
calor. Eu havia me esquecido que, no inverno daquelas paragens, há brusca
mudança de temperatura da noite para o dia. Peguei carona no primeiro carro que
se deslocava em direção ao centro e fui à loja “Ave Palavra” (título de uma
obra roseana) comprar camisetas mais condizentes ao clima. Percebi que o
proprietário da loja, conhecido como Brasinha, era o mesmo palestrante da véspera
e organizador do circuito GR e da caminhada eco literária. Começamos um bate-papo
informal sobre a obra roseana. Juntou-se a nós um casal de paulistanos, Júlio e
Bia, que também participavam do evento. Não percebemos o fluir do tempo. A
manhã passou num piscar de olhos.
Às 13:00 horas, houve a abertura de uma
exposição de pintura do artista Mura, com a narração de um trecho da obra
roseana, e às 13:30, comecei a participar da oficina de bordados típicos da
região. Escolhi, para bordar, um motivo bem cordisburguense.
A
igrejinha São José, o portal G.R., a lemniscata (símbolo do infinito), inserida
no final na obra Grande sertão: veredas,
para demonstrar justamente a ausência de fim da busca riobaldiana, ou seja, o
entendimento de si, das coisas, do mundo e da vida.
No curso de
bordados, fiz amizade com uma espanhola de Barcelona, chamada
Mercedes. Como ela era francófona, e
tinha muita dificuldade em falar português, optamos pela língua francesa para
nos comunicar. Após a oficina, passei na Academia de Letras para o lançamento
da exposição de pinturas e tive o prazer de ouvir a apresentação do conto “Luas
de mel”, de GR. O pintor nos apresentou cada uma de suas obras, todas elas
ligadas à obra de GR.
Aos poucos, fiquei conhecendo diversos
participantes da semana roseana. No final da tarde encontrei um grupo, na loja
do Brasinha, em vias de discutir a obra de GR. Entrei no bate-papo e por lá
fiquei, durante horas. Depois, Mercedes, convidou-me para uma cervejinha, num
quiosque próximo dali, onde dois violeiros cantavam modas sertanejas. Ela fez
questão de lhes pagar a cerveja, mostrou-se muito interessada no que ouvia e
pegou seus nº de telefone. Soube depois que seu objetivo ali era gravar todos
os sons do sertão, até mesmo de água e de pássaros, para uma peça de teatro.
Soube também que ela era especialista em teatro de sombras e que havia se
embrenhado na obra roseana, pela qual se apaixonara, havia 9 anos.
É interessante como a obra Roseana desperta
paixões. Assim como nós duas, há centenas de “roseanos de carteirinha”
espalhados pelo Brasil afora e até mesmo no exterior. Eu mesma conheci um
professor universitário de Montpelier (França), cuja especialidade é justamente
a obra Roseana.
O estilo e a linguagem, ou seja, a “escritura”
Roseana apresenta grande dificuldade para nós, brasileiros. Imagino as agruras para o entendimento dos
estrangeiros, por melhores que sejam os tradutores. Traduzir Guimarães Rosa é
tarefa quase impossível. Seus primeiros tradutores mantinham constante contato
com o autor, para sanar as inúmeras dificuldades. Após sua morte, os tradutores
de hoje têm que lançar mão de traduções já existentes em diversas línguas, para
a transposição linguística.
Retomando o relato, na noite de terça feira,
fui com tal espanhola ao Sarapalha, para uma noite musical, oferecida aos
convidados da semana Roseana. O volume da música estava tão alto, que preferi
voltar para a pousada logo após uma fumegante caneca de vaca atolada, para
espantar o frio. (obs. Em 2016, ao chegar em Cordisburgo, soube da morte de
Mercedes, ocorrida na Espanha)
Na manhã de quarta-feira, houve uma palestra sobre Cordisburgo, sua história e
sua gente, com abertura dos Miguilins, cujas apresentações precedem cada
evento. Dei umas voltas pela cidade. À tarde fui à oficina de bordados. À noite
participei dos eventos culturais: Sarau
poético, com poemas do livro Magma, nos jardins do Museu Casa GR, números de
dança, num tablado colocado diante do museu, congado, banda de música e
quadrilha junina. Tudo ao ar livre, sob frio enregelante. Passei novamente pelo
Sarapalha, para um reconfortante caldo quente, antes do repouso noturno.
A quinta-feira
superou os dias anteriores. De manhã, houve uma palestra seguida de debate,
sobre GSV, com Luiz Claudio Vieira de Oliveira, doutor em Literatura e
especialista na obra de Rosa. Grande
parte da plateia, além de ser aficionada à obra Roseana, era composta por
especialistas no assunto, o que contribuiu para o alto nível do debate. À
tarde, participei de uma oficina de leitura. O conto abordado foi “Recado do
morro”. Às dezenove horas, houve uma apresentação de nove Miguilins, no
auditório da escola Mestre Candinho. Logo após, começou a encenação do conto
“Recado do Morro”, em frente ao Sarapalha. Os sete recadeiros seguiram pela rua
Padre João até o Museu, onde houve o término da encenação, com participação de
um violeiro e da banda da Guarda de Nossa Senhora do Rosário. Não esperei pelo
número de dança do grupo “Estrela do sertão”, nem pelo show musical “Cordis ao
Luar”, devido ao cansaço e ao frio.
Na sexta-feira
de manhã, houve duas palestras: uma sobre a tradução intersemiótica do conto
Famigerado, feita por um doutorando, e outra sobre Guimarães Rosa e Borges,
pelo prof. Dr. Luiz Claudio Vieira de Oliveira. Não fui à Oficina de Leitura.
Toninho, meu irmão, chegou a Cordisburgo. À noite, fui com ele a um evento
organizado pela Assembleia Legislativa e depois fomos jantar. Demos uma volta
pela rua central, com o intuito de assistir ao espetáculo musical, mas nossos
ouvidos não suportaram o volume das caixas de som.
No sábado,
antes da caminhada eco literária, houve o tradicional café da manhã sertanejo,
na Escola Mestre Candinho, com grande variedade de quitutes, e com direito à
apresentação musical do violeiro Elvis, e à apresentação de alguns Miguilins.
Saímos da cidade em grande comitiva, a pé, em direção à fazenda do saco. Demos
uma parada na ponte do Onça, cenário natural do desfecho do conto “O recado do
morro”, tema escolhido dessa caminhada. Depois, passamos pela fazenda de
Saturnino, a primeira propriedade visitada pela comitiva do Recado do Morro,
quando foi dado um dos sete recados. Um carro de apoio, contendo água gelada,
nos acompanhou até esse local. A partir daí, seguimos por uma trilha íngreme,
estreita e cascalhosa. Paramos para contações de estórias, à margem de um
pequeno córrego, cenário de um excerto de Ave Palavra. A subida não foi nada
fácil, mas íamos parando de tempos em tempos, para audição da viola, que sempre
precedia às apresentações dos Miguilins, em cada parada. Todos se assentavam no
chão para descansar. Quando havia arbustos por perto, colocavam-se à sombra. A
penúltima parada foi num lugar muito bonito e aprazível, à beira d’água. A
última foi próxima ao asfalto, onde um carro da Copasa nos aguardava com água
geladinha, à nossa disposição. O último texto apresentado, extraído de Ave
Palavra, levou-me às lágrimas, ao falar de Minas Gerais. Senti algo inexplicável.
Queria fixar aquele momento, parar o tempo, permanecer o máximo possível,
naquele matagal já praticamente sem trilha alguma. A perspectiva do fim da
caminhada e do fim da semana roseana me deixava profundamente nostálgica. Na
porta de saída do sertão, eu já sentia saudades do lugar e do ambiente nos
quais eu ainda me encontrava.
Descemos a pé, pelo asfalto, até o restaurante
da Gruta de Maquiné, onde almoçamos. Voltamos num ônibus escolar, para
Cordisburgo. Fim de percurso, fim de evento, fim de semana, fim de um sonho.
Segui imediatamente para BH, de onde voaria para a rotina do cotidiano
litorâneo, levando boas lembranças do sertão.