quinta-feira, 20 de abril de 2017

QUANDO, COMO E ONDE?

Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido ao sentido de viver, amar, morrer?
(Carlos Drummond de Andrade)
 
Enquanto não se descobre a fonte da eterna juventude, nós, simples mortais, almejamos vida longa e saudável. Já que a morte é inevitável, que seja mansa, sem dores e sem sofrimentos. Tudo isso foi conseguido pela francesa Dominique Deschamps. Viveu um século gozando de ótima saúde física e mental. Seus filhos se casaram e se multiplicaram. Cada um seguiu sua sina, mundo afora. Apenas ela permaneceu apegada à terra natal, à casa, ao jardim, aos animais de estimação...  Com o tempo, aprendeu a apreciar o silêncio, parceiro constante da solidão. Dia após dia, clarões de lembranças adentravam-se pelas janelas da rotina. Gostava do cantinho escolhido para aguardar o fim.  Não era luxuoso, nem grandioso, mas aconchegante e repleto de reminiscências. Bastava fechar os olhos e viajar no tempo, para reviver a vitalidade e a alegria ali reinantes durante décadas. Filhos, netos, bisnetos correndo, subindo e descendo a escadaria; mesa grande e farta, rodeada de olhos cobiçosos; narizes sensíveis e paladares vorazes, prestes a atacar o repasto cotidiano.

Dominique morava sozinha. Vivia totalmente independente da família. Tinha uma doméstica para as tarefas pesadas, mas era ela própria que pilotava o fogão e os eletrodomésticos. Aos noventa e oito anos, certo dia, estando sozinha, escorregou, desequilibrou-se, e caiu. Não houve nenhuma fratura, mas ela não dispunha força suficiente para se erguer. As vãs tentativas duraram horas, até que, depois de ter se arrastado, conseguiu se apoiar num móvel e se aprumar. No dia seguinte, ao receber a empregada, disse-lhe:

- Isabelle, vou morrer daqui a dois dias.
- Como assim, Madame?
- Estou velha. Não quero mais viver.
- Mas a família precisa ser avisada. Façamos um encontro de despedida. A senhora não pode partir sem dizer adeus aos que a amam.
- Está bem. Então convoque-os.

No final de semana seguinte, a família reunida tentou dissuadi-la do intento. Durante o almoço de domingo, estando à mesa, ela pediu a palavra, agradeceu a presença de todos e explicou o motivo de sua decisão irrevogável.

- Vivo sozinha, nesta casa, desde que vocês se foram. Gosto do cantinho onde ancorei minha solidão. Aqui tenho sossego. Sempre tive boa saúde, mas as restrições da idade são implacáveis. Não gostaria, em hipótese alguma, de ficar dependente de outrem para as necessidades básicas. Enquanto tive autonomia para viver sem ajuda de quem quer que fosse, não pensei na morte. Nesta semana, levei uma queda e tive muita dificuldade para me levantar. Qualquer dia desses, pode me acontecer algo pior. Não quero tropeçar na própria sombra, nem me sustentar em bengalas de decrepitude até que uma enfermidade qualquer me leve daqui. A vida é minha. Tenho o direito de acabar, quando quiser, com a dor de existir. O tempo não tem pressa, mas eu tenho. Prefiro partir antes da chegada do sofrimento. No entanto, gostaria de ficar eternamente rodeada por essa linda família, que tanto amo.

- Mas mamãe, disse Paul, pretendemos fazer uma grande festa, daqui a dois anos, para comemoração do centenário de seu nascimento. Será uma cerimônia inesquecível para todos os descendentes. Depois disso, a escolha é sua, já que, mais cedo ou mais tarde, a partida é inexorável. Não discordo de sua decisão. A meu ver, todos deveríamos ter o direito de escolher como, quando e onde vamos dar o último suspiro. Mas, por favor, não encurte seu caminho. Espere pela festa. Fazemos questão disso.

- Está bem. Já que é importante para vocês...
- Ôba!!!

Todos aplaudiram em sinal de contentamento, fizeram um brinde à sua saúde, e partiram contentes.

Dois anos se arrastaram, morosamente. Dominique se sentia cada dia mais fraca. Dez dias antes da festa, decidiu que, dali em diante, não comeria mais. Tomaria apenas líquidos, para aguardar o encontro do adeus. Informados da estranha decisão, os filhos decidiram mantê-la sempre acompanhada, para que não cometesse nenhum desatino. Não poderia lhes fazer a desfeita de partir antes da hora (como se a festa fosse mais importante que a partida). A celebração, organizada com pompa e entusiasmo, não tinha nuances sombrias de despedida, nem de luto.

Debilitada pela inanição, manteve-se assentada o tempo todo, durante a festa, sem grandes alegrias, nem desassossegos. Seu olhar percorria o amplo salão: os antigos lustres de cristal, os móveis estilo Luís XVI, a imponente escadaria com corrimão dourado, as paredes decoradas com quadros valiosos de Corot, Delacroix, Renoir, Gauguin, preciosidades passadas de geração em geração; provável motivo de desavenças, na hora da partilha. Fitava tudo e todos longamente, como se fosse pela última vez. Parecia querer levar, para o além, as minudências da vida, presas à memória visual.

A decisão de não deixá-la sozinha foi mantida durante a festa. Para surpresa de todos, ao lhe servirem suco de uva, ela exigiu seu champanhe preferido, Veuve Clicquot, chamado afetivamente por ela de “La Grande Dame”. Após tragos e mais tragos, num vislumbre de outrora, Dominique chegou a esboçar alguns passinhos de dança. Aplausos entusiásticos.  Sentia-se radiante, como centro de todas as atenções. Disse que não faria discurso de despedida. No entanto, ao se ver diante de um microfone, e de dezenas de olhares interrogativos, não resistiu.

- Meus queridos! Como lhes disse, há dois anos, se pudesse, eu ficaria eternamente com vocês. No entanto, tenho que respeitar as leis da natureza. Diz o adágio popular que cada um tem sua vez e sua hora. Agora é minha vez de partir. No futuro, estaremos todos em outra dimensão, dentro da grande incógnita, da qual nada sabemos e de onde não poderemos voltar. Por isso, meu último conselho é que vivam a vida em toda sua plenitude. Não desperdicem tempo com inutilidades nem patifarias. Saúde e vida longa a todos vocês. Tim-Tim!

Aplausos e mais aplausos. A festa transcorreu normalmente, mas com visível ansiedade no ar. Ninguém lhe perguntar como nem quando seria a partida. Tratava-se de uma decisão de foro íntimo, pessoal e intransferível.

No dia seguinte, todos se dirigiram à “salle-à-manger”, para o desjejum. Somente a vovozinha continuou em sua alcova. Um sono profundo, de conluio com a eternidade, providenciou seu último desejo. Partira no oco da madrugada, sem sofrimento algum (como desejava), deixando, no aconchego do leito, apenas a carcaça para as devidas exéquias e prováveis prantos.

Jô Drumond

domingo, 9 de abril de 2017

TESOURO SOB A PONTE DA PASSAGEM

*Jô Drumond
Ponte velha
Ciente da onda de larápios que se esgueiram pelas sombrias ruas de Vitória, em busca de residências vulneráveis, Estela teve a ideia de esconder as joias da família dentro de sapatos velhos, na véspera da viagem de férias rumo ao litoral nordestino. Caso um arrombador encontrasse a casa deserta, e quisesse surrupiar alguns de seus pertences, certamente vasculharia o quarto do casal e adjacências. Jamais atentaria para sapatos velhos, no cômodo de despejo.

Ao voltar de viagem, encontrou tudo na mais perfeita ordem. Só se lembrou do esconderijo num dia de festa. Não encontrando um de seus colares no devido lugar, dirigiu-se ao despejo. Não havia sapato algum. Procurou por toda a casa, em vão. Após ter revirado os armários, com a ajuda dos filhos, comentou o ocorrido com o marido, tão logo ele chegou do trabalho.

─ Ah! Uns sapatos deixados no cômodo de despejo? Eu os dei a um pedinte que passou com uma carrocinha, recolhendo roupas e objetos usados.

A mulher esbravejou aos quatro ventos, descabelou-se e chorou, desolada pela grande perda. Tratava-se de joias acumuladas ao longo de três gerações. A notícia espalhou-se pela vizinhança. Tal mendigo era visto frequentemente naquela rua, recolhendo doações. Os vizinhos vaticinaram que, de posse das joias, certamente desapareceria do bairro. Qual nada! Poucos dias depois, lá vinha ele, de porta em porta, empurrando sua alquebrada carrocinha de entulhos. Ao tocar a campainha de Estela, foi indagado pelos calçados. Ele os havia deixado em casa, juntamente com as tralhas recolhidas.

─ Vamos imediatamente até sua casa ─ disse-lhe a senhora. Preciso dos sapatos.
          
  ─ Não tenho casa, dona, moro debaixo da ponte da passagem, com a mulher e duas crianças.

Lá foram eles, de carro, para recuperar o pequeno tesouro. No vão da antiga ponte, entre a Av. Fernando Ferrari e a Av. N.S. da Penha, via-se um amontoado de quinquilharias catadas no lixo: papelões, colchões velhos, cobertores ensebados e um fogareiro improvisado sob fumegante panela de barro. Lá estavam também os sapatos, porém vazios. Em tom lacrimoso e convincente, Estela abordou a esposa do mendigo, dizendo-lhe que dentro deles havia joias de pouco valor comercial, mas de inestimável valor afetivo. Disse-lhe também que devido ao apreço pelas joias perdidas, estava disposta a oferecer uma boa uma quantia pelo resgate.

─ A sinhora me discurpa, dona, mas eu num vi nada não! Num tinha nada dentro dos sapato não.

Antes de se afastar, Estela deu a cartada final.

─ É uma pena, minha senhora. Eu poderia até mesmo lhes doar um terreno e ajudar na construção de uma casa, caso recuperasse minhas joias.

A mulher havia escondido o grande achado debaixo de uma pilha de pedras, ao lado do canal, sem dizer nada ao marido. Ainda não sabia o que fazer com o tesouro. Se tentasse vender parte dele, seria presa como ladra. A promessa do terreno e o vislumbre da casa própria provocaram um revertério em sua cabeça. Decidiu mostrar as joias ao marido.

Ponte nova
Juntos, naquela noite, fizeram planos mirabolantes. Assentados sobre pedras e recostados num dos pilares da ponte, velavam o sono dos filhos e apreciavam a lua refletida nas águas do canal. O céu parecia mais brilhante que de costume. Imaginavam noites vindouras, sem vaga-lumes rabiscando a escuridão, sem o piscar de estrelas, mas com lâmpadas elétricas, sob um teto de verdade, camas macias... Não veriam mais o espetáculo das garças riscando de branco as brasas do poente, mas teriam água tratada, chuveiro, instalação sanitária... quiçá um velho televisor descartado numa lixeira qualquer. Ao observar os barcos no espelho d’água, embarcaram no sonho da casa própria e velejaram suas fantasias em direção ao futuro. Vislumbravam, por mínimo que fosse, um barraco que pudesse ser chamado de “lar”. Parecia milagre! O milagre da est(r)ela.

As joias foram devolvidas. Enquanto aguardava a aquisição do terreno, a família sem teto passou a viver às expensas da família adotiva. Inicialmente, Estela fez para eles uma grande compra de víveres e produtos de higiene. A partir de então, frequentemente, o mendigo batia à sua porta com outras solicitações, cada vez mais acintosas. Ela se sentia extorquida, mas sem coragem de recusar ajuda.

Certo dia ele tocou a campainha, aturdido, pedindo outro tipo de amparo. Havia levado uma facada no ombro esquerdo, segundo ele, numa briga. Perdia sangue, mas não queria acionar a polícia, nem o Serviço de Assistência Médica. Ela o acolheu meio a contragosto, limpou o ferimento, preparou-lhe um banho, providenciou roupas limpas, e pediu a um médico da família que se ocupasse do caso, em sigilo. Tal fato a deixou apreensiva. Não conhecia o terreno no qual pisava. Não sabia com que tipo de gente estava se envolvendo e tampouco como sair daquela enrascada. Mesmo doando o terreno, o vínculo com aquela gente não se apagaria facilmente.

Certo dia, demonstrou seu desassossego, em conversa informal com um amigo. Ele tentou serenar suas inquietações, dizendo-lhe que refletiria sobre o assunto. Tentaria encontrar uma solução que não prejudicasse nenhuma das partes. A partir daquele dia, o mendigo desapareceu, como num passe de mágica. Estela passou até mesmo a sentir falta daquele nefasto assédio. Intrigada com o desaparecimento, procurou seu amigo e se inteirou do desfecho do caso.

Acompanhado de quatro policiais fardados e armados, ele tinha ido ao dito local, sob a ponte. Em tom peremptório havia afirmado aos desabrigados que eles não haviam feito nada além da obrigação, ou seja, devolver o que não lhes pertencia. Disse-lhes ainda que a família lesada não tinha obrigação nenhuma para com eles, e que não permitiria a doação de terreno algum, pois o fato de esconder as joias configurava má fé e desonestidade, por parte da esposa. Além de ter escondido o fato do marido, havia mentido à proprietária das joias. Caso voltassem a incomodar a dita família, ele tomaria as providências cabíveis. Concluiu dizendo que não permitiria que o casal continuasse sendo por eles extorquido. Os mendigos não sabiam o que significava “extorquir”, muito menos “providências cabíveis”. Considerando as fisionomias austeras dos fardados, o tom de voz e os gestos imperiosos do “doutor” engravatado, inferiram que coisa boa não devia ser.

Quando a esperança perde fôlego, o caminhar fica mais trôpego. Sem adeus definitivo à Esperança, partiram em busca de outros vãos, sob outras pontes, acreditando poder, no futuro, navegar suas minguadas veleidades. Nos descaminhos da vida, haveriam de encontrar, um dia, sobretudo para as crianças, sendas menos ásperas a trilhar, com vislumbres de atalhos.

sexta-feira, 31 de março de 2017

XXII SEMANA ROSEANA EM CORDISBURGO

Jô Drumond

Este relato abaixo, escrito há sete anos, é um simples registro de minha primeira experiência na Semana Literária Roseana, em Cordisburgo. Trata-se de uma semana cultural, com palestras, mesas-redondas, debates, minicursos, leitura dramática, representações teatrais, exposições e diversos eventos, todos eles dedicados à obra do ilustre filho da terra, Guimarães Rosa. Essa imersão no universo roseano foi, para mim, uma experiência fascinante.

RELATO

Em 2010, voei do litoral para as alterosas, para participar, pela primeira vez, da semana Roseana, já em sua décima segunda edição, em Cordisburgo. O foco do evento é sempre a obra do escritor Guimarães Rosa. Do aeroporto de Confins, dirigi-me diretamente à rodoviária de Belo Horizonte. No guichê, pedi passagem de ida e volta, mas o atendente me disse que só dispunha da de ida. A de volta poderia ser adquirida dentro do ônibus, após o embarque. Disse-lhe então que fazia questão de comprá-la tão logo chegasse à cidade, para garantir o retorno, no final do evento.

▬ Impossível, minha senhora  ▬  respondeu-me ▬ lá não tem rodoviária.

Só aí me dei conta da pequenez da cidade. Tanto melhor! É nas pequenas cidades que se fazem grandes amizades.

Estava embarcando sozinha, sem conhecer viva alma na região, mas era como se estivesse me dirigindo a um encontro familiar. Isso porque faço parte da grande “família Roseana”, composta de leitores, pesquisadores, professores e aficionados à obra do renomado autor.

Antes de embarcar, telefonei para a Pousada das Flores, para confirmação de reserva.  Foi-me sugerido que pedisse ao motorista para me deixar à porta da pousada. Esse privilégio remeteu-me aos velhos tempos vividos no interior. Na rodoviária de BH, foi-me dito que haveria baldeação na cidade de Sete Lagoas. Estranhei o fato de ter que fazer baldeação num percurso de apenas 120 km. Embarquei pela Viação Pássaro Verde. No meio do caminho, fui transferida para a Viação Expresso Setelagoano. 

Cheguei em Cordisburgo na segunda-feira, segundo dia da Semana Roseana. No Domingo, havia tido apenas uma missa e a cerimônia de abertura. Encantei-me com os ares interioranos da cidade: ruas pacatas, silenciosas e vazias; crianças brincando nas calçadas; cachorros soltos por todo lado; algumas carroças, puxadas a cavalo; poucos carros...Tudo isso me remetia à Guimarânia (terra dos Guimarães), onde meus pais passaram grande parte de suas vidas e escolheram para derradeira e eterna morada. Sou descendente dos Guimarães, pelo lado materno, nascida e criada no sertão mineiro, assim como Rosa. Daí minha grande paixão pelo linguajar e pelo cenário de seus contos.

Uma fresca brisa de inverno brincava nos galhos das árvores, entre os quais uma infinidade de faixas remetia o visitante ao grande evento anual. Em cada faixa, lia-se um pensamento do escritor, acompanhado do nome do estabelecimento que havia patrocinado sua confecção. Parece-me que a grande maioria dos comerciantes aderiu à ideia, pois o número de faixas era surpreendente. As frases, todas elas minhas velhas conhecidas, haviam sido muito bem selecionadas: frases sentenciosas (que expressam verdades oriundas da secular experiência do povo); outras de cunho filosófico, e algumas de temática sertaneja. Vejamos algumas delas.

Frases sentenciosas:

“Quem desconfia fica sábio”
“Não se deve parar no meio da tristeza”
“Mestre não é aquele que sempre ensina, mas quem de repente aprende”
“Para as coisas que há de pior, a gente não alcança fechar as portas”
“Carece de ter coragem”
“Quem castiga cumpre também”
“Choca mal quem sai do ninho”
“Felicidade se acha é só em horinhas de descuido”
“Infelicidade é questão de prefixo”
“Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir”
 “Cavalo que ama o dono até respira do mesmo jeito”
“Antes trabalhar no domingo do que furtar na segunda”
“Mulher só fica velha é da cintura para cima”
“Só aos poucos é que o escuro fica claro”

Filosofemas:

“Tudo é e não é”
“Vida-coisa que o tempo remenda, depois rasga”
“Viver é muito perigoso”
“A vida é um vago variado”
“A vida não dá demora em nada”
“As pessoas não estão sempre iguais; ainda não foram terminadas”
“Nonada, o diabo não há! O que existe é o homem humano. Travessia!”

Temática  sertaneja:

“O sertão é dentro da gente”
“O sertão é uma espera enorme”
“Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos...”
 “O sertão está em toda parte”
“O sertão é do tamanho do mundo”
“O sertão é confusão em grande e demasiado sossego”


Deixei a bagagem na Pousada e saí para reconhecimento do terreno. Como já era hora do almoço, entrei num restaurante chamado Sarapalha, título de um conto do livro Sagarana. Na parede de entrada do restaurante, à esquerda, havia o resumo do conto Sarapalha. Nas outras paredes, havia frases de Guimarães Rosa. Degustei uma ótima comidinha caseira a preço de banana.


Após o almoço, voltei à Pousada, liguei meu lap top e consegui conexão com a Internet. Maravilha!!! Pensei que fosse ficar desconectada do mundo durante toda a semana.

O alojamento era perfeito. Quarto espaçoso, banheiro amplo, geladeira, televisor, mesa com cadeiras, uma cama de casal e outra de solteiro. Do lado de fora, varanda florida, que dava para um grande quintal. Desfiz a mala e saí novamente. Flanei pelas ruas da cidade. Dei uma volta no comércio local, fui ao centro de artesanato, localizado na entrada da cidade e fiz uma longa caminhada em linha reta até o portal recém-inaugurado, no outro extremo da cidade. Trata-se de um largo portal retangular, sob o qual há seis cavaleiros e um cachorro, em bronze, em tamanho natural, todos eles personagens de Guimarães Rosa. Ao lado há uma estátua do autor e diplomata, em pé, também em bronze, vestido a rigor, com sua tradicional gravata borboleta. 

Na volta, passei pelo Museu Casa Guimarães Rosa, antiga residência da família, na qual ele fora criado. É um belo exemplar de casarão em estilo colonial, com mobiliário antigo e um amplo jardim, nos fundos. À noite, fui ao auditório da Academia de Letras, onde houve uma mesa redonda abordando quatro itens: o Projeto Lang (que engloba o Circuito das 3 Grutas), o museu GR, o Circuito Turístico Guimarães Rosa  e as potencialidades turísticas da região. Falou-se também do sucesso da caminhada eco literária, que havia começado com poucos participantes e que já contava com mais de 400 pessoas. Tal caminhada, assim como os Miguilins foram dois projetos que obtiveram êxito. Miguilins são crianças cordisburguenses de 12 a 18 anos, treinadas para contar os causos roseanos. Os ex-Miguilins ajudam na coordenação e no treinamento dos atuais. O coordenador frisou que o surgimento de vários focos de grupos parecidos, em outras cidades, é uma consequência, não um objetivo do grupo. Alguns dos Miguilins foram à Itabira, para passar sua experiência aos itabiranos, onde se criou o grupo dos drummonsinhos.

Na terça-feira, logo após o café da manhã, fomos todos convidados para o primeiro evento do dia, no bairro Buritis. Como era um pouco distante, o presidente da Academia de Letras providenciou condução para os visitantes. A partir de certo ponto do caminho, saltamos dos carros e juntamo-nos a um grande grupo festivo e alegre que subia a ladeira com a criançada da cidade. Várias brincadeiras infantis iam sendo feitas à medida que nos dirigíamos à praça Francisco Timóteo Pereira, onde haveria contação de histórias e distribuição de balas, picolés, algodão doce e pipocas. A peça encenada foi “O casamento da Mula sem Cabeça com o Saci”, com direção de Rodolfo Goulart, na qual entremearam-se vários personagens do folclore nacional. Como o evento foi feito em pleno sol, e como eu estava com vestimentas de inverno, não pude aguardar até o final, devido ao calor. Eu havia me esquecido que, no inverno daquelas paragens, há brusca mudança de temperatura da noite para o dia. Peguei carona no primeiro carro que se deslocava em direção ao centro e fui à loja “Ave Palavra” (título de uma obra roseana) comprar camisetas mais condizentes ao clima. Percebi que o proprietário da loja, conhecido como Brasinha, era o mesmo palestrante da véspera e organizador do circuito GR e da caminhada eco literária. Começamos um bate-papo informal sobre a obra roseana. Juntou-se a nós um casal de paulistanos, Júlio e Bia, que também participavam do evento. Não percebemos o fluir do tempo. A manhã passou num piscar de olhos.

Às 13:00 horas, houve a abertura de uma exposição de pintura do artista Mura, com a narração de um trecho da obra roseana, e às 13:30, comecei a participar da oficina de bordados típicos da região. Escolhi, para bordar, um motivo bem cordisburguense.

 A igrejinha São José, o portal G.R., a lemniscata (símbolo do infinito), inserida no final na obra Grande sertão: veredas, para demonstrar justamente a ausência de fim da busca riobaldiana, ou seja, o entendimento de si, das coisas, do mundo e da vida.

No curso de  bordados, fiz amizade com uma espanhola de Barcelona, chamada Mercedes.  Como ela era francófona, e tinha muita dificuldade em falar português, optamos pela língua francesa para nos comunicar. Após a oficina, passei na Academia de Letras para o lançamento da exposição de pinturas e tive o prazer de ouvir a apresentação do conto “Luas de mel”, de GR. O pintor nos apresentou cada uma de suas obras, todas elas ligadas à obra de GR.

Aos poucos, fiquei conhecendo diversos participantes da semana roseana. No final da tarde encontrei um grupo, na loja do Brasinha, em vias de discutir a obra de GR. Entrei no bate-papo e por lá fiquei, durante horas. Depois, Mercedes, convidou-me para uma cervejinha, num quiosque próximo dali, onde dois violeiros cantavam modas sertanejas. Ela fez questão de lhes pagar a cerveja, mostrou-se muito interessada no que ouvia e pegou seus nº de telefone. Soube depois que seu objetivo ali era gravar todos os sons do sertão, até mesmo de água e de pássaros, para uma peça de teatro. Soube também que ela era especialista em teatro de sombras e que havia se embrenhado na obra roseana, pela qual se apaixonara, havia 9 anos. 

É interessante como a obra Roseana desperta paixões. Assim como nós duas, há centenas de “roseanos de carteirinha” espalhados pelo Brasil afora e até mesmo no exterior. Eu mesma conheci um professor universitário de Montpelier (França), cuja especialidade é justamente a obra Roseana.

O estilo e a linguagem, ou seja, a “escritura” Roseana apresenta grande dificuldade para nós, brasileiros.  Imagino as agruras para o entendimento dos estrangeiros, por melhores que sejam os tradutores. Traduzir Guimarães Rosa é tarefa quase impossível. Seus primeiros tradutores mantinham constante contato com o autor, para sanar as inúmeras dificuldades. Após sua morte, os tradutores de hoje têm que lançar mão de traduções já existentes em diversas línguas, para a transposição linguística.

Retomando o relato, na noite de terça feira, fui com tal espanhola ao Sarapalha, para uma noite musical, oferecida aos convidados da semana Roseana. O volume da música estava tão alto, que preferi voltar para a pousada logo após uma fumegante caneca de vaca atolada, para espantar o frio. (obs. Em 2016, ao chegar em Cordisburgo, soube da morte de Mercedes, ocorrida na Espanha)

Na manhã de quarta-feira, houve uma palestra sobre Cordisburgo, sua história e sua gente, com abertura dos Miguilins, cujas apresentações precedem cada evento. Dei umas voltas pela cidade. À tarde fui à oficina de bordados. À noite participei dos eventos culturais:  Sarau poético, com poemas do livro Magma, nos jardins do Museu Casa GR, números de dança, num tablado colocado diante do museu, congado, banda de música e quadrilha junina. Tudo ao ar livre, sob frio enregelante. Passei novamente pelo Sarapalha, para um reconfortante caldo quente, antes do repouso noturno.

A quinta-feira superou os dias anteriores. De manhã, houve uma palestra seguida de debate, sobre GSV, com Luiz Claudio Vieira de Oliveira, doutor em Literatura e especialista na obra de Rosa.  Grande parte da plateia, além de ser aficionada à obra Roseana, era composta por especialistas no assunto, o que contribuiu para o alto nível do debate. À tarde, participei de uma oficina de leitura. O conto abordado foi “Recado do morro”. Às dezenove horas, houve uma apresentação de nove Miguilins, no auditório da escola Mestre Candinho. Logo após, começou a encenação do conto “Recado do Morro”, em frente ao Sarapalha. Os sete recadeiros seguiram pela rua Padre João até o Museu, onde houve o término da encenação, com participação de um violeiro e da banda da Guarda de Nossa Senhora do Rosário. Não esperei pelo número de dança do grupo “Estrela do sertão”, nem pelo show musical “Cordis ao Luar”, devido ao cansaço e ao frio.

Na sexta-feira de manhã, houve duas palestras: uma sobre a tradução intersemiótica do conto Famigerado, feita por um doutorando, e outra sobre Guimarães Rosa e Borges, pelo prof. Dr. Luiz Claudio Vieira de Oliveira. Não fui à Oficina de Leitura. Toninho, meu irmão, chegou a Cordisburgo. À noite, fui com ele a um evento organizado pela Assembleia Legislativa e depois fomos jantar. Demos uma volta pela rua central, com o intuito de assistir ao espetáculo musical, mas nossos ouvidos não suportaram o volume das caixas de som.

No sábado, antes da caminhada eco literária, houve o tradicional café da manhã sertanejo, na Escola Mestre Candinho, com grande variedade de quitutes, e com direito à apresentação musical do violeiro Elvis, e à apresentação de alguns Miguilins. Saímos da cidade em grande comitiva, a pé, em direção à fazenda do saco. Demos uma parada na ponte do Onça, cenário natural do desfecho do conto “O recado do morro”, tema escolhido dessa caminhada. Depois, passamos pela fazenda de Saturnino, a primeira propriedade visitada pela comitiva do Recado do Morro, quando foi dado um dos sete recados. Um carro de apoio, contendo água gelada, nos acompanhou até esse local. A partir daí, seguimos por uma trilha íngreme, estreita e cascalhosa. Paramos para contações de estórias, à margem de um pequeno córrego, cenário de um excerto de Ave Palavra. A subida não foi nada fácil, mas íamos parando de tempos em tempos, para audição da viola, que sempre precedia às apresentações dos Miguilins, em cada parada. Todos se assentavam no chão para descansar. Quando havia arbustos por perto, colocavam-se à sombra. A penúltima parada foi num lugar muito bonito e aprazível, à beira d’água. A última foi próxima ao asfalto, onde um carro da Copasa nos aguardava com água geladinha, à nossa disposição. O último texto apresentado, extraído de Ave Palavra, levou-me às lágrimas, ao falar de Minas Gerais. Senti algo inexplicável. Queria fixar aquele momento, parar o tempo, permanecer o máximo possível, naquele matagal já praticamente sem trilha alguma. A perspectiva do fim da caminhada e do fim da semana roseana me deixava profundamente nostálgica. Na porta de saída do sertão, eu já sentia saudades do lugar e do ambiente nos quais eu ainda me encontrava.


Descemos a pé, pelo asfalto, até o restaurante da Gruta de Maquiné, onde almoçamos. Voltamos num ônibus escolar, para Cordisburgo. Fim de percurso, fim de evento, fim de semana, fim de um sonho. Segui imediatamente para BH, de onde voaria para a rotina do cotidiano litorâneo, levando boas lembranças do sertão.